Como é lidar com bipolaridade: 'Não me limita, mas é difícil falar sobre'
"Ser bipolar nunca foi um fator limitante na minha vida. Sou médica, professora universitária, faço mestrado, sou casada. Mas tenho muito medo do estigma social da doença. É muito difícil falar sobre isso com as pessoas", afirma Juliana*, 29, que tem transtorno afetivo bipolar.
A desinformação a respeito do problema psiquiátrico é muito grande, diz ela. Enquanto em alguns ambientes o assunto não é levado a sério, em outros a sensação é de ter uma doença terrível. "Leigos costumam ter a ideia de que se trata de uma doença grave em que a pessoa muda de opinião de uma hora para outra e no mesmo dia em que está rindo está chorando, cheia de impulsividade. E sempre há as gracinhas sobre ser bipolar, como se fosse uma brincadeira", conta.
A barreira da desinformação atrapalha mesmo quando Juliana se dispõe a falar sobre seu problema e explicar a situação a alguém. Via de regra, as pessoas não acreditam e tentam descaracterizar seu relato. "Sempre ouço que não é possível eu ter isso, como se fosse algo ofensivo. Ou então é comum eu ouvir 'É, bem assim mesmo, eu também sou um pouco bipolar, viu?'. É complicado. Aí eu deixo para lá."
De acordo com Milena França, médica psiquiatra e professora da UPE (Universidade de Pernambuco), ainda há um preconceito quando se trata de saúde mental. "Todos falam de diabetes, cardiopatia, pressão alta, obesidade, mas pouco se fala em psiquiatria, em transtornos mentais. Todo mundo dá a dica de seu dermatologista, seu endocrinologista, seu cardiologista, mas duvido indicar um psiquiatra, porque não quer se expor. Temos que mudar isso", diz
O que é o transtorno bipolar?
Trata-se de um distúrbio mental caracterizado por dois polos, afirma França: o depressivo e o eufórico, no qual estão a mania ou hipomania. Os sintomas se manifestam com variações de pessoa para pessoa, inclusive de intensidade, mas seguindo critérios determinantes.
No polo depressivo, os sintomas são os mesmos que os de uma depressão, ou seja, tristeza, perda de prazer nas atividades das quais gosta, choro fácil, prostração, alteração do sono e da alimentação (para mais ou para menos, em ambos casos).
Já a mania é um estado em que o pensamento fica acelerado, a pessoa dorme pouco, pois tem energia em excesso, fala exageradamente, pode perder a autocensura e fazer coisas consideradas inapropriadas, afirma Daniel Vasques, médico psiquiatra da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. "Para fazer um diagnóstico de transtorno bipolar, usa-se o quadro de sintomas de mania como critério, ou o de hipomania, que é a manifestação da mania um pouco mais fraca", diz.
Na hipomania, a pessoa fica um pouco mais falante, um pouco mais eufórica, mais irritada, dorme menos, mas não traz tanto problema para a vida dela naquele momento. O problema pode vir depois, quando ela deprime ou se dá conta das coisas inadequadas que fez.
Outro tipo de episódio é o misto, chamado também de fase disfórica, que pode ocorrer na fase depressiva ou na eufórica. "Os sintomas são de irritabilidade, agressividade, intolerância, impaciência. Por qualquer coisa a pessoa já está discutindo, faz uma tempestade em um copo d'agua, principalmente se for contrariada,", diz França.
Uma classificação divide quem tem o transtorno bipolar em dois grupos. No Tipo I, mais grave, a fase de mania é nítida, com alteração de comportamento exagerada, de impacto, fácil de perceber, podendo chegar a episódios psicóticos (perder contato com a realidade) e precisar de hospitalização.
Já no Tipo II, mais brando, ocorre a hipomania, de sintomas mais leves, em que a alteração de comportamento existe, mas em grau menor, podendo passar despercebida aos mais próximos. E por não chamar a atenção, acaba dificultando seu diagnóstico. No Tipo II estão concentrados 77% dos bipolares, e no Tipo I, 23%.
É importante lembrar que o transtorno bipolar tem o componente genético como um forte fator de risco. Quem tem um familiar de primeiro grau com a doença tem um risco 10 vezes maior de desenvolvê-la.
Diagnóstico pode demorar 10 anos
A depressão do tipo bipolar costuma ser confundida com depressões de outra natureza (unipolar) e normalmente só se revela com a eclosão de um episódio de mania ou hipomania, o que pode levar anos para ocorrer. Como agravante, segundo Daniel Vasques, há o fato de que no tratamento para a depressão bipolar não podem ser ministrados antidepressivos comumente utilizados. "Digamos que o antidepressivo funcione demais nessas pessoas. Se eu der antidepressivo a uma pessoa deprimida bipolar, ela vai para a fase de euforia; a pessoa sai de um polo e vai para outro."
O transtorno bipolar é considerado de identificação difícil pelos médicos e a demora em seu diagnóstico pode ter implicações graves. Pela literatura médica, leva cerca de 10 anos para o transtorno ser diagnosticado, afirma Milena França. Trata-se de um motivo para preocupação, uma vez que o transtorno bipolar é constituído, em uma descrição simplificada, em processos inflamatórios nas células nervosas do cérebro, os neurônios, e uma vez não tratados, podem levar a perdas cognitivas. "Quanto mais tempo sem tratamento em fase aguda, depressiva ou eufórica, há perda de neurônios, levando a consequências, como alteração emocional, de memória, de atenção, de funções executivas", diz França.
No caso de Juliana, o diagnóstico foi recebido quatro anos após o início das depressões, leves e recorrentes, que a acometiam desde os 18 anos. Bipolar do Tipo II, ela conta que seus episódios de hipomania não eram percebidos quando ocorriam. "Por eu ter uma personalidade mais animada, acabaram passando batido, inclusive para mim. Mas eu me lembro que entre os 19, 20 anos, eu tinha esse aumento de energia, menor necessidade de sono, esse sentimento de 'posso dar conta de tudo'. E aí eu me sobrecarregava, dormia pouco, dirigia sem cuidado. As pessoas pensam que você está só mais animada, mais produtiva, mais sem noção, mas eventualmente tem algum prejuízo."
Ela acredita que sua vida poderia ter sido melhor com o diagnóstico mais cedo, pois acha que teve perdas. "Mas não dá para voltar no tempo, então me conformei", diz. Por outro lado, ter descoberto a causa das antigas depressões permitiu que passasse a ter o tratamento apropriado, com melhor resultado. Outras mudanças vieram em seu estilo de vida como cuidados para prevenir crises do transtorno.
Juliana compreendeu, por exemplo, que no seu caso o plantão noturno do hospital onde trabalhava não era algo viável, pois a cada jornada passava mal por vários dias para se recuperar e ajustar o sono novamente. Da mesma maneira, parou de beber álcool, mesmo em pequenas quantidades, pois pode ser bastante prejudicial para bipolares. "Eu aceitei essas particularidades e junto com a medicação adequada houve uma diferença muito grande no meu tratamento. Melhorou muito, mas compreendo também a cronicidade da coisa. É um manejo, mas não tem uma cura".
Para conhecidos que elogiam seu estado atual, ela diz deixar claro o empenho envolvido. "Eu digo às pessoas que eu estou muito bem, sim. Mas tem todo um esforço, um investimento para eu estar bem. Estou fazendo terapia, indo ao psiquiatra, não vou ao plantão noturno, não bebo mais. Então estou ótima, mas eu estou me cuidando também."
Sobre os altos e baixos a lidar no dia a dia, Juliana afirma que procura administrar dentro dos limites da doença. "São períodos. No geral, entre as crises, minha vida é boa. Tem períodos em que eu estou muito bem, sofro como todo mundo sofre. Eu me descabelo no mestrado, fico feliz com uma coisa boa, me animo com algo que acontece, normal. Não tem essa coisa de oscilações gigantes ao longo do dia quando se está bem", afirma.
Ela ainda faz acompanhamento psicológico semanal e com psiquiatra regularmente. Quando percebe algum sinal de que não está bem, procura ajuda. "Reforço com o cuidado da família e de amigos e melhoro, pois eu sinto que tenho muito apoio e mesmo quando adoeço eu tenho muita gente para me ajudar."
*Nome alterado para preservar identidade da personagem.
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