Com cão de serviço, autista ganha independência e qualidade de vida
Morador de Brasília (DF), Arthur França, 22, foi diagnosticado com autismo há mais ou menos um ano e meio. Inicialmente, ele fez acompanhamento com psiquiatra e psicólogo e chegou a tomar medicamentos para controle das crises. Mas sem sucesso. As coisas só melhoraram depois que ele teve acesso a um cão de serviço (ou cão de assistência).
O animal da raça pastor belga malinois, batizado de Atlas, está sendo treinado desde filhote pelo próprio condutor. Dentre as suas funções estão auxiliar na locomoção do dia a dia e, principalmente, alertar e responder a uma crise —o cachorro pode, por exemplo, chamar ajuda, buscar remédios e até abrir portas e apagar a luz.
No depoimento a seguir, o jovem conta como era a sua vida antes da chegada do cão e o que mudou depois que o recebeu, e também dá detalhes de como ele contribui para lhe garantir mais independência e autonomia na rotina.
"Desconfiava que era autista desde os 18 anos, mas só fui diagnosticado há mais ou menos um ano e meio. O fato é que sempre apresentei muitos dos sinais. Por exemplo, dificuldade de comunicação e de socializar, movimentos repetitivos, hiperfoco e não conseguir fazer contato visual.
Me consultei com psiquiatra e psicólogo, e, depois de um tempo, finalmente tive a confirmação. A partir desse momento, iniciei o acompanhamento e cheguei a tomar remédios, só que eles nunca funcionaram muito bem. Mesmo fazendo uso, tinha crises frequentes.
Durante esses episódios, perco a visão e a habilidade de me locomover com racionalidade e fico desorientado, não sei onde estou. É até difícil descrever muito bem, porque cada vez acontece de um jeito. Mas o fato é que precisava de ajuda. Então, alguns amigos que moram nos Estados Unidos me falaram dos cães de serviço. Lá, é supercomum pessoas com deficiência terem esse tipo de assistência, e muitas delas até são responsáveis pelo treinamento dos animais.
Quando descobri isso, fui pesquisar sobre o assunto. No Brasil, achei apenas alguns poucos profissionais que faziam esse trabalho, mas, quando os procurei, não fui muito bem recebido, não encontrei abertura.
Na época, já me interessava por adestramento e aí pensei: 'Se as pessoas treinam seus cães lá fora, posso tentar fazer o mesmo aqui'. Li muitos livros, assisti seminários, palestras, ouvi podcast, vi vídeos. Peguei todo o tipo de informação que podia e fui me especializando nessa área.
O primeiro cachorro que treinei foi o Oliver, um beagle. Mas tive de aposentá-lo logo. Primeiro porque ele não tem tanta energia para o trabalho e, segundo, porque eu precisava de um animal maior.
Naquela época, conheci o canil Vale dos Carcarás, especializado em cães de trabalho, e não exatamente em cães de serviço. Ainda assim, o pessoal de lá me cedeu o Atlas, um pastor belga malinois. Ele está comigo tem pouco mais de um ano e eu sou o responsável por todo o seu treinamento.
Antes dele, basicamente não tinha momentos de lazer por causa das crises. Mas depois que ele entrou na minha vida, as coisas mudaram completamente. Hoje, tenho mais qualidade de vida e consigo me incluir na sociedade de maneira mais eficaz. Nenhum remédio ou terapia havia me dado essa possibilidade.
Companheiro ideal
O Atlas é um cão com ótimos impulsos e tem o temperamento perfeito para um cão de serviço. É o meu companheiro ideal. Ele me ajuda em crises, alertando antes ou agindo durante elas. Através do meu comportamento, odor e batimentos cardíacos, por exemplo, ele é capaz de perceber que estou entrando em uma, antes mesmo que eu note, e me avisar.
Nestes momentos, e também quando a crise acontece, ele pode executar uma série de tarefas, como buscar remédios ou água, chamar ajuda, me guiar para um local mais calmo, achar um banco para eu me sentar, abrir portas, chamar o elevador, apagar as luzes, não deixar que pessoas se aproximem e interromper comportamentos autolesivos.
Outra coisa que ele faz é terapia de pressão. Para aliviar a crise, ele se deita sobre o meu corpo ou apenas sobre as minhas pernas e faz pressão. Esse método tem um efeito terapêutico que traz calma e conforto.
A vida antes e depois do Atlas
Antes do Atlas, não tinha expectativa nenhuma de viajar sozinho. Mas este ano fui para São Paulo só com ele. Também não saia à noite e, muitas vezes, nem de dia, e não fazia coisas básicas como ir ao mercado. Por duas vezes tentei cursar uma faculdade, mas não deu certo e acabei trancando.
Eram muitas as coisas que não conseguia fazer, e que agora consigo por causa dele. Inclusive, este ano vou voltar a estudar. No segundo semestre começo o curso de análise e desenvolvimento de sistemas. Também estou me preparando para ir ao meu primeiro show, do Louis Tomlinson, que vai acontecer em maio em São Paulo.
O treinamento dele agora está sendo bem focado nisso para prepará-lo —e a mim também— para o dia. O que temos feito é ir a locais movimentados, com bastante barulho e luzes, como parques de diversão e lojas de games. Procuro os que tenham uma atmosfera próxima do que encontraremos no show.
Apesar de eu ser o responsável por treinar o meu cão, preciso deixar claro que nem todo autista conseguirá fazer o mesmo. Esse é um processo difícil e que exige responsabilidade e conhecimento, por isso, é sempre importante procurar um especialista. Para mim é mais fácil porque já havia treinado um cão anteriormente e porque estudo muito o assunto. Me preparei para isso.
Além do suporte emocional
O Atlas é um cão de serviço que não somente me provém suporte emocional, mas que realiza tarefas específicas para mitigar a minha deficiência. Hoje em dia, tenho independência para fazer coisas que antes não eram possíveis. Ele mudou completamente a minha vida e dependo muito dele no meu dia a dia, inclusive para me locomover.
Apesar disso, já fomos impedidos de entrar em alguns lugares. Logo no início, nos barraram em um supermercado e, depois, tentaram fazer o mesmo em um hospital. No ano passado, aconteceu no metrô. Mesmo apresentando o crachá e a carteira de vacinação dele, cópias da Lei da Pessoa com Deficiência e meu laudo médico, os agentes não quiseram nos deixar passar.
Este ano, tive problemas para pegar ônibus. Teve um dia que dois motoristas passaram reto por nós e um terceiro até parou, mas não quis abrir a porta. Em um outro dia, o motorista também se recusou a abriu a porta para entrarmos. Pedi para conversar, para explicar que se trata de um animal treinado, mas ele não quis saber.
As pessoas precisam ter mais empatia e entender que o Atlas é uma extensão de mim, uma tecnologia assistiva, um equipamento médico. Assim como um cadeirante não pode ficar sem sua cadeira de rodas, eu não posso ficar sem ele."
Cães de serviço são aliados para autistas
O TEA (transtorno do espectro autista), ou simplesmente autismo, é um distúrbio do neurodesenvolvimento que se manifesta já na primeira infância —geralmente o diagnóstico é feito entre 1 e 2 anos de idade— e afeta a comunicação (verbal e não verbal) e a capacidade de interação com as pessoas e o meio.
"O autista, em diferentes níveis de intensidade, apresenta um padrão de comportamento restritivo de interesses, movimentos repetitivos e estereotipados, dificuldade de socializar, atrasos na linguagem e hipersensibilidade a estímulos sensoriais", explica Hélio Van der Linden, representante do Departamento Científico de Neurologia Infantil da ABN (Associação Brasileira de Neurologia).
Até hoje, as causas desse conjunto de sinais e sintomas ainda não são totalmente conhecidas. Contudo, sabe-se que existe uma influência de fatores genéticos e ambientais. "A pessoa pode nascer com uma alteração genética, que em alguns casos é determinante e, em outros, é um predisponente para a manifestação", relata o médico.
Em relação aos fatores ambientais, ele complementa que os mais bem definidos são alterações intraútero, como diabetes gestacional, sangramento, infecções e uso de medicações e drogas durante a gravidez, idade paterna e materna mais avançada e prematuridade.
Apesar de o TEA não ter cura, quanto mais cedo for feito o diagnóstico e iniciado o tratamento, mais chance o autista tem para desenvolver seu potencial, conquistar independência e autonomia e melhorar a qualidade de vida.
"Realizamos um tratamento multidisciplinar, com a participação de neurologista, psiquiatra, psicólogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e psicopedagogo. Dependendo do caso, junto com as terapias é preciso incluir o uso de medicações, para controle de alguns dos sintomas, como agitação e agressividade", comenta Paulo Scatulin, neuropediatra da Rede de Hospitais São Camilo, de São Paulo.
Os cães de serviço, como o Atlas, também são importantes aliados nos cuidados às pessoas com autismo. De acordo com Scatulin, a relação humano-animal contribui de forma significativa com a socialização, o desenvolvimento de afeto e empatia, a diminuição de comportamentos disruptivos (se jogar no chão, gritar, se autolesionar, quebrar objetos etc.) e o controle de crises.
"O cachorro proporciona apoio emocional e físico. Com a sua presença, o paciente passa a realizar atividades diárias que, normalmente, são bem desafiadoras e que sozinho ele teria dificuldade. O resultado disso é o ganho de independência e autonomia", destaca o médico.
Van der Linden complementa que os cães de assistência, quando bem treinados, fazem a diferença frente a uma crise de desorganização, além de ajudarem a reduzir estresse e ansiedade.
"Claro que esse papel é individualizado para cada pessoa, mas, de modo geral, ter esse elo de apoio traz calma, conforto e segurança. Na presença do cachorro, o autista consegue vencer barreiras e vai construindo um repertório para se tornar cada vez menos dependente de terceiros e ser cada vez mais funcional na rotina diária."
Treinamento rigoroso
O treinamento de um cão de serviço ou assistência para autistas é bastante rigoroso, podendo levar até 4 anos para ser finalizado. O processo, inclusive, começa antes mesmo de o animal nascer, na seleção dos pais, que devem ser saudáveis e terem uma genética propensa ao trabalho. O objetivo é gerarem filhotes com bons impulsos.
Após o nascimento, os bichinhos passam por testes para confirmar se realmente são aptos para se tornarem cães de assistência. O ideal, segundo Ricardo Textor, treinador e sócio-proprietário do Canil Vale dos Carcarás, de Brasília, é que eles tenham alta treinabilidade e sejam calmos, dóceis, focados e disponíveis para o trabalho.
Feita essa avaliação, é iniciado o período de socialização, na qual o cão é exposto a todo o tipo de estímulo —normalmente, isso se dá até os quatro meses de vida— e, na sequência, o ensinamento de obediência básica e acesso público, para que ele aprenda a se comportar fora de casa.
O próximo passo é o treinamento específico. Nesta etapa, indica Textor, todo o processo é realizado baseado nas necessidades de quem irá conduzir o animal. "Cada autista tem as suas especificidades, então, o que serve para um pode não servir para outro, e o treinamento do cão tem de levar isso em conta", destaca. "O importante é o animal ser apresentado a tudo de antemão para que possa desempenhar as suas funções na hora que elas são exigidas", complementa.
O treinamento é feito diariamente, mas, caso o treinador julgue necessário, pode haver dias de descanso, até para que o cachorro possa absorver melhor os aprendizados. Além disso, é preciso adicionar pausas para que ele brinque, relaxe e estreite ainda mais os vínculos com o condutor.
As raças mais indicadas para cães de serviço são labrador e golden retriever. No caso de França, a opção pelo pastor belga malinois se deu porque ele precisava de um animal mais leve e, sobretudo, por uma necessidade específica da sua deficiência, que envolve sensibilidade tátil a certas pelagens.
Por fim, é preciso advertir que, antes de optar pelo cão de serviço, o autista precisa consultar o médico que faz o acompanhamento do seu caso para certificar-se de que está apto a ter um. Afinal, cuidar de um animal exige responsabilidade e comprometimento, e muitos pacientes têm dificuldade nesta área.
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