Primeira médica com tetraparesia do Brasil usa o olhar para se comunicar
Quando cursava o 3º semestre de medicina, uma estudante paranaense de 33 anos sofreu um AVC na ponte do tronco encefálico. Elaine Luzia dos Santos viu sua vida mudar a partir daquele momento. Mais tarde, teve a notícia de que, devido ao AVC, desenvolveu tetraparesia, uma condição na qual pernas e braços experimentam fraqueza anormal por causa de danos aos nervos ou porque os músculos não funcionam normalmente. Elaine perdeu os movimentos destes membros e a capacidade de fala, mas a condição não a impediu de concluir a faculdade.
Com o passar dos semestres, precisou aprender a se comunicar apenas piscando os olhos e está prestes a se tornar a primeira médica do Brasil com tetraparesia. Enquanto se recuperava do AVC na UTI, descobriu por um colega a "prancha alfabética", ferramenta que hoje possibilita que ela fale e se expresse sem utilizar as cordas vocais.
"Em 2010, com 22 anos, me formei em farmácia na Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná). Naquele ano, decidi prestar vestibular para medicina, que era um sonho de criança. Minha opção então seria fazer cursinho e passar em uma universidade pública, considerando que não tinha condição financeira de pagar uma faculdade particular.
E foi assim em 2011. Fiz dez meses de cursinho pré-vestibular e passei na mesma universidade da primeira formação. De 2013 a 2014, cursei medicina normalmente. Me engajei na parte de pesquisa de biologia molecular, cirurgia gastrointestinal experimental e neurocirurgia.
Mas as coisas mudaram. No dia 14 de novembro de 2014, com 25 anos de idade, eu tive um AVE (acidente vascular encefálico isquêmico), também conhecido como AVC. Naquela noite, retornei da aula às 21h, e fiz minha rotina: jantei, fui para academia, retornei para casa e fui dormir.
Me lembro de acordar com uma forte dor de cabeça, pegar um analgésico, mas não consegui tomar, porque vomitei em seguida e caí, sem movimentos, mas consciente.
Morava sozinha e passei um longo período imóvel no chão, tentava pedir ajuda, mas ninguém ouvia. Uma vizinha me ouviu gemer, olhou pela janela e percebeu a situação. Ela chamou um chaveiro para abrir a porta, e só então fui socorrida, já no fim da tarde.
É importante dizer que até esse momento eu era perfeitamente saudável. Não havia diagnóstico algum anterior. Nunca fumei ou bebi, fazia atividades físicas regulares e mantinha uma alimentação saudável. O único sintoma era dor de cabeça, que eu associava a poucas horas de sono, nada além disso.
Meu acidente vascular aconteceu de madrugada e como morava sozinha, demorou mais de 15 horas para que eu pudesse ser encontrada e socorrida, fator que contribuiu consideravelmente para ter acentuado as sequelas. Como os movimentos não voltaram, tive um primeiro diagnóstico de síndrome do encarceramento, mas logo em seguida ficou constatado que o AVC provocou a tetraparesia.
Da noite para o dia, tinha perdido todos os movimentos do corpo e a fala: tinha noção da gravidade das sequelas.
Dali, se passaram 30 dias de tratamento na UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Passei por uma traqueostomia e uma gastrostomia, além de muita fisioterapia em prol da reabilitação. Fiquei internada no mesmo hospital em que estudava, o HUOP (Hospital Universitário do Oeste do Paraná).
Meus professores e colegas auxiliaram na minha recuperação, mas o prognóstico era muito ruim. A primeira era de que não acordaria, e dificilmente sairia da ventilação mecânica, porque o AVE foi muito próximo do centro respiratório.
Quando abri os olhos e mostrei consciência, todos ficaram surpresos e animados. Os profissionais da UTI e minha família buscavam saber se estava lúcida, então pediam para eu fechar os olhos se estivesse entendendo o que eles estavam dizendo. Ali começou uma forma de comunicação.
Reaprendendo a se comunicar
Meu amigo, doutor Lázaro Teixeira, me apresentou ainda na UTI a prancha alfabética. Eles apontavam para as letras e eu ia piscando para selecioná-las, e assim se formavam as palavras e frases, expressando o que queria comunicar. Ainda na UTI, iniciei a reabilitação, dei continuidade em casa e estive em um hospital de reabilitação seis meses depois, no qual fiquei internada por dois meses.
Só em setembro de 2015 retornei para a faculdade. Foi muito difícil e desafiador enfrentar as dificuldades pela imobilidade física e falta de expressão vocal. Havia muita resistência dos docentes e colegas do curso, mas eu tinha claro e firme meu objetivo de concluir o curso e me tornar médica. Queria e tinha direito de estar ali, mas para isso dependia de uma cadeira de rodas.
Esse processo de retorno, como deficiente, foi orientado pelo PEE (Programa de Educação Especial da Unioeste). Contei com o apoio das transcritoras, a primeira foi a Vanderlize Dalgalo, pedagoga disponibilizada pelo PEE, que muitas vezes falou por mim frente aos professores e colegas em defesa dos meus direitos enquanto pessoa com deficiência e em prol da adaptação necessária as minhas dificuldades para realizar e concluir as matérias do curso.
Claro que nessa jornada tive apoio da minha família, principalmente dos meus pais, Dalva e Josué, bem como das cuidadoras e de todas as outras transcritoras que já me acompanharam e estiveram do meu lado durante as aulas.
Minha formação teria sido em 2017, no entanto, passei a me dedicar às terapias. Na faculdade, fiz poucas matérias até concluir uma a uma. De lá para cá, passei por várias turmas, até chegar na Turma XX, que me acolheu, me apoiou, aprendeu a falar comigo, estava comigo nos atendimentos aos pacientes, nas aulas e ainda nas comemorações da turma, dos churrascos à festa de formatura que se deu em fevereiro de 2022, na qual fui honrosamente homenageada por eles.
Para realizar a festa de formatura alguns professores do curso de medicina, como André Westphalen, professores do curso de farmácia e colegas da turma XVI de medicina, a turma que entrei na faculdade, patrocinaram a minha participação.
Frente ao tratamento igual dos colegas, houve uma mudança na atitude dos que ainda eram céticos. Os professores, ou quase a maioria deles, mudaram suas opiniões e muitos passaram a me apoiar. Não havia diferença de conteúdo ou facilitação nas provas, apenas adaptação na forma de execução.
Visando facilitar minha comunicação, a Unioeste adquiriu um software, com o qual eu me expressava utilizando o movimento ocular. Eu selecionava as letras formando as palavras e ele verbalizava o que eu escrevia, era um processo lento, que logo apresentou problemas, não sendo possível reparar o equipamento. Assim, mantivemos a comunicação pela prancha alfabética, mais ágil, fácil e prática para a comunicação diária.
Nunca pensei em parar, minhas capacidades intelectuais e cognitivas permaneceram e estão intactas. Tenho a total capacidade de conquistar minha formação em medicina. Mesmo sabendo que não posso fazer todos os procedimentos, ainda posso fazer muitas coisas.
Pretendo, após o encerramento da faculdade de medicina, em maio de 2022, me especializar em radiologia, laudando exames de imagem de pacientes e atuando nessa área de especialização.
O AVE mudou minha vida por completo e, sem dúvida, tive inúmeras perdas. Acredito que o que me manteve firme emocionalmente foi focar naquilo que posso fazer. Meu corpo perdeu a mobilidade, a comunicação já não é tão rápida, mas tenho minha mente, minha capacidade intelectual, minha sanidade mental e desejo de realizar muitas coisas na minha vida.
É muito gratificante atender os pacientes diariamente, eles me incentivam a continuar na medicina.
Acredito muito na evolução da medicina e na criação de métodos de reabilitação capazes de facilitar minha comunicação e devolver os movimentos, pelo menos os mais necessários às necessidades cotidianas.
Ter objetivos reais e executar um pouquinho todos os dias é a maneira que encontrei de superar o AVE e me ver como uma pessoa capaz de continuar, mesmo com algumas limitações."
O que é a tetraparesia?
Ana Cláudia Gouveia, neurologista do Real Neuro e do Hospital da Restauração —maior emergência pública de Pernambuco—, conta que a tetraparesia é uma fraqueza nos quatro membros que pode ser provocada por inúmeras causas, desde lesões no sistema nervoso central como também lesões no nervo periférico e lesões musculares.
"A depender da causa, pode ser aguda, como no AVC, ou crônica no caso de doenças neuromusculares. O tratamento e prognóstico vão depender da causa da tetraparesia", explica a VivaBem.
A especialista acrescenta que pessoas acometidas pela doença precisam de fisioterapia, mas que nem sempre a reabilitação é possível.
"A fisioterapia é necessária para esses pacientes. É um tratamento de suporte mais adequado. E a depender da causa, podemos ter medicamentos específicos. A gente pode ter uma remissibilidade total ou parcial dos sintomas, ou uma sequela crônica a ponto de deixar o paciente acamado", destaca.
Reabilitação
Segundo a fisioterapeuta Kátia Monte-Silva, sócia-fundadora do Instituto de Neurociência Aplicada e coordenadora do Laboratório de Neurociência Aplicada da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), a recuperação da tetraparesia provocada por um AVC pode ser um processo longo e dependente de alguns fatores que muitas vezes são negligenciados.
A especialista alerta que estudos científicos apontam que quanto mais rápido a vítima iniciar a reabilitação, maiores são as chances de recuperação das disfunções mentais e físicas resultantes do derrame. A equipe responsável pela reabilitação também pode ser decisiva na promoção da recuperação do paciente, ressalta.
"A reabilitação pós-AVC deve envolver uma equipe especializada de multiprofissionais (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, nutricionistas, psicólogos e assistentes sociais) comprometidos em restaurar as funções perdidas devolvendo ao máximo a autonomia do indivíduo para sua reinserção biopsicossocial. A especialidade da fisioterapia que trata de pacientes com sequelas de doenças neurológicas, como o AVC, é a fisioterapia neurofuncional", explica a VivaBem.
A pesquisadora destaca que o fisioterapeuta neurofuncional ajudará na restauração da função sensorial e motora, do equilíbrio, da coordenação, da mobilidade e da funcionalidade do paciente. A eficácia do tratamento, no entanto, depende da precocidade da intervenção, da intensidade, da duração, além da disponibilidade do uso de tecnologias para a promoção de neuroplasticidade, definida como a capacidade do sistema nervoso de se modificar e se reprogramar frente a estímulos.
"As sequelas sensório-motoras após um AVC na ponte são complexas e podem envolver todo o corpo da vítima. A reabilitação motora destes pacientes é pautada em duas frentes: promoção de neuroplasticidade para restaurar funções perdidas através da remodelagem de áreas cerebrais; e na prevenção de complicações secundárias causada pela falta do movimento, como por exemplo atrofia muscular, deformidades ósseas, trombose venosa, dor etc.", conclui a especialista.
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