Faixa para prender seios: homens trans relatam falta de ar e feridas
Erick Ferreira é um homem transexual de 36 anos que espera há sete anos na fila do SUS (Sistema Único de Saúde) pela sua "carta de alforria" do gênero feminino: a mastectomia. Enquanto não vem, Erick precisa fazer uso do binder —acessório estilo espartilho ou top que disfarça o volume das mamas no intuito de reduzir o desconforto pessoal—, provocado pela desconformidade entre o sexo anatômico e a identidade de gênero —e os episódios de transfobia.
Para que produza o efeito desejado, a maioria dos homens trans que usam essa peça de roupa comprimem bastante a caixa torácica, o que pode acarretar lesões na pele, falta de ar e até mesmo comprometimento do aparelho respiratório.
Essa foi a conclusão a que chegou uma equipe de pesquisadores do HC-UFPE (Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco). Eles divulgaram recentemente o estudo inédito "Chest binding and respiratory complaints in transgender men" (Uso de binder e queixas respiratórias em homens transexuais)", na Revista Fisioterapia em Movimento.
O estudo consistiu em duas etapas. Na primeira, foram realizadas entrevistas com 60 homens transexuais com mais de 18 anos e 53,3% afirmaram utilizar a faixa para disfarçar as mamas. A eles também foi questionado se tinham queixa na região do tórax (aperto, ferida, sensação de claustrofobia), dor e dificuldade para respirar.
Com essas informações, os pesquisadores puderam observar a prevalência desses sintomas entre os homens trans que usam e os que não usam o binder. E os principais resultados foram:
- Quem veste essa peça apresenta quase três vezes mais queixas do que aqueles que não usam;
- Quem usa o binder tem duas vezes mais dificuldade de respirar;
- Quem usa binder apresenta quase duas vezes mais dores no tórax do que aqueles que optaram por abdicar dessa peça de roupa.
O fisioterapeuta Washington Santos, do HC-UFPE, é um dos profissionais que conduziu a pesquisa. Ele explica que o binder se tornou parte do processo de reconhecimento de gênero para os homens trans, porque a mama é um símbolo de identidade feminina muito forte em nossa sociedade. Mas é preciso cuidado na sua utilização.
"O binder tem que ser usado no tamanho certo, não pode estar muito apertado, de forma a provocar uma grande compressão no peito. Também não deve ser usado por mais de oito horas seguidas", destaca Santos, que ainda investiga a repercussão desse acessório nas alterações posturais.
A segunda etapa do trabalho consistiu em realizar avaliações pulmonares nos entrevistados, como a força muscular da caixa torácica, a capacidade pulmonar e o fluxo de ar que saía dos pulmões. Os resultados dessa segunda etapa ainda serão divulgados.
Constrangimentos, dor física e psicológica
"Como sou gordinho, as mamas são um marcador de gênero muito forte em mim. Para esconder e evitar passar por constrangimentos, às vezes preciso usar dois ou mesmo três binders. Isso aperta, me causa dor, machuca, especialmente o mamilo", relata Ferreira.
Para Erick, mesmo que o tempo indicado para utilização desse acessório seja de oito horas seguidas, nem sempre é possível cumprir. "Quando estava trabalhando, saía de manhã, voltava de noite, e acabava passando muito tempo com o binder comprimindo meu tórax. É um incômodo muito grande", completa.
Para tentar reduzir as dores e os danos, alguns homens trans substituem o binder, que tem um material mais grosso e pesado, por faixas de compressão ou até mesmo um top de alta compressão.
"Fabrico meus próprios binders. Faço com um elástico específico, que permite transpirar, respirar e não machuca tanto. Porque o binder aperta, esquenta, corta e sempre que uso sinto muitas dores na coluna e falta de ar", afirma Hecthor Iago Paladino Silva, 32, que trabalha como costureiro e barbeiro.
O desconforto emocional com as mamas se torna ainda maior entre os homens trans que já passaram pelo processo de transição e conseguiram alterar o nome na certidão de nascimento.
Quando isso acontece, mas as mamas continuam lá, situações de transfobia acabam se tornando mais frequentes, submetendo muitos homens transexuais à dor física a ponto de afetar sua saúde respiratória.
"Já passei por muitas situações de assaduras, porque o calor esquenta e assa. Em alguns amigos, já vi bolhas que se tornaram grandes feridas. Mas a dor psicológica de carregar mamas é tão grande que faz com que a dor física seja menos torturante", lamenta Hecthor, que também aguarda na fila do SUS para realizar a cirurgia de retirada das mamas.
Geraldo Moura, psicanalista, professor e pesquisador da UFRRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco), explica que a submissão à dor física vem de um processo de dor psíquica muito forte, pelas quais passam quase todos os homens transexuais. Muitos relatos como o de Erick chegam ao seu consultório.
"É uma dor que é fruto do autorreconhecimento, de um processo identificatório consigo mesmo e com a conjuntura em que o sujeito está inserido. É compreensível o porquê do paciente se submeter a essa dor física para se livrar de um incômodo psíquico maior", afirma o profissional, que também atende na Sociedade Psicanalítica do Recife.
Julio Mota de Oliveira, 27, advogado, mestrando em Serviço Social pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) e homem trans, explica que a supressão das mamas chega a ser uma questão de sobrevivência num país como o Brasil.
"O volume dos peitos não é apenas uma necessidade estética de se identificar com o gênero masculino. Mas também de poder transitar nos lugares sem ser identificado o tempo inteiro como homem trans. Não que isso seja um problema, mas a transfobia no Brasil é real. As pessoas te apontam na rua. E a partir do momento que você não tem mamas, isso fica um pouco mais difícil", afirma o advogado.
Incômodo fez Caio abandonar binder
Em meio ao processo de transição e durante o longo período entre a tomada da decisão de realizar a mastectomia e de fato fazê-la, muitos preferem abandonar o binder devido ao desconforto e aos problemas provocados pelo acessório.
Foi o caso de Caio Thompson, 23, analista de monitoramento digital pleno, que usou o binder durante um ano e seis meses e depois optou por não usar mais. Ele conta que o que fez dar um basta foi uma situação vivida dentro do ônibus.
Ele já havia passado mais de oito horas com o binder e dentro do coletivo estava muito quente. "O binder que estava usando tinha 10 cm a menos da minha medida, porque ele tinha quebrado e eu emendei. Como ficou muito apertado, com o calor dentro do ônibus, comecei a passar mal. Estava com uma camisa de botão, me abaixei um pouco e precisei tirá-lo. A partir dali decidi que nunca mais passaria por isso", conta.
Após esse episódio, Caio diz que não pretende nem mesmo fazer a mastectomia. "Tomar hormônios mexe demais com a cabeça, com a saúde física, com o humor. A transição é em si um processo doloroso. E hoje vejo que a sociedade só consegue enxergar uma pessoa trans se ela fizer cirurgia ou usar o binder", reflete Caio.
Ampliar o olhar para a saúde da comunidade trans
Para Albanita Gomes, professora do Departamento de Saúde Coletiva do Centro de Ciências Médicas da UFPE, que também assina o estudo, os resultados mostraram que a população transexual ainda é invisibilizada dentro dos serviços de saúde, especialmente o público.
Ela lembra que há uma escassez de pesquisas com essa temática e o trabalho foi fundamental para que se conheça as necessidades e dificuldades pelas quais passa a população transexual.
"Nós conseguimos demonstrar que a aceitação do corpo vai além das questões de ordem social. Ela afeta a saúde mental, mas também a física. Problemas posturais, dificuldades respiratórias e de desenvolvimento de atividades físicas e laborais a longo prazo estão entre as consequências do uso prolongado e indiscriminado do binder", coloca Albanita.
Do ponto de vista médico, segundo Albanita, o estudo também foi relevante para entender a necessidade de uma maior celeridade na realização da mastectomia naqueles homens que estejam preparados para fazê-la.
Atualmente, no Brasil, apenas cinco centros públicos de saúde realizam a cirurgia para a retirada das mamas em homens trans. São os hospitais universitários de Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. E a média é de uma a duas cirurgias do tipo por mês.
"Por mais que tenhamos avançado em algumas questões, os médicos ainda não sabem lidar muito bem com questões envolvendo saúde e mudança de gênero. E estudos como esses ajudam a entender melhor questões sociais e fisiológicas dos homens trans", diz Albanita.
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