Alterações cardíacas, complicações e intervenções: bebê fica 9 meses na UTI
O sonho de Nilvânia Santos Oliveira, 25, era igual ao de qualquer gestante: sair da maternidade carregando seu bebê nos braços, poucos dias após o parto. O tempo que a analista imobiliária precisou esperar até poder ir para casa com o filho, porém, ultrapassou o período em que ele ficou dentro de seu próprio útero: foram 9 meses e 19 dias no hospital.
Nascido em 11 de junho de 2021, o bebê Théo foi direto para a UTI neonatal e permaneceu internado até 30 de março de 2022. "Durante praticamente toda a gravidez esperei ter o meu filho e voltar para casa com ele, no máximo, em três dias. Tinha um bebê ideal na minha cabeça, mas o Théo veio como um bebê real", recorda Nilvânia.
Théo não era um prematuro extremo, como é o caso de muitos recém-nascidos que precisam receber cuidados intensivos. Ele nasceu com 37 semanas de vida (a média é de 40), 2,400 kg e 49 cm, valores dentro do esperado para um bebê no início do nono mês de gestação.
O problema do primogênito de Nilvânia e Iafélice Magalhães Moço, 27, na verdade, era outro: ele nasceu com uma dupla de alterações cardíacas —e não foi só isso.
Surpresa no 7º mês
A suspeita de que havia algo de errado com o coração de Théo surgiu quando Nilvânia estava no início do sétimo mês da gravidez. Foi nessa época que uma ultrassonografia feita em uma clínica de medicina fetal levantou a hipótese de que o bebê podia ter tetralogia de Fallot, um defeito cardíaco congênito raro.
Embora Nilvânia já tivesse tido algumas surpresas ao longo de sua primeira gestação —um quadro leve de covid-19 e uma alergia na pele que persistiu por semanas—, não havia sido detectado nenhum problema com o feto durante os exames de pré-natal, realizados em um hospital próximo à sua casa, em Santana de Parnaíba, na Grande São Paulo.
A notícia de que o bebê poderia ter alguma disfunção àquela altura da gravidez foi uma surpresa. O exame também mostrou que o volume do líquido amniótico (fluido que envolve o embrião dentro do útero) estava acima do normal, o que aumentava o risco de um parto prematuro.
O casal foi orientado pela clínica a procurar o quanto antes um hospital com mais estrutura e recursos para atender o caso. A indicação foi o Hospital e Maternidade Santa Joana, estabelecimento situado na cidade de São Paulo conhecido por ser referência no atendimento de gestações de alto risco no Brasil —categoria na qual Nilvânia passou a se enquadrar a partir daquele momento.
Esse dia ainda está vivo nas memórias da analista imobiliária: "Lembro como se fosse hoje: era quarta-feira, um feriado, nós saímos dessa clínica, em Barueri, e fomos imediatamente de carro até o hospital, no bairro Paraíso. Estávamos sem chão".
A longa jornada desembocou em um misto de alívio e surpresa.
Alívio porque, ao chegar lá, a hipótese de tetralogia de Fallot foi descartada pelos médicos. Mas um ecocardiograma, ultrassom específico do coração, indicou que Théo possuía outras alterações no órgão: isomerismo atrial esquerdo e comunicação interatrial e interventricular (CIV). Duas anormalidades cardíacas raras que não têm uma causa definida e que ocorrem esporadicamente durante a formação do embrião.
Aos pais, a equipe médica explicou que o tratamento seria decidido em conjunto e realizado após o nascimento do bebê —já que, se fosse necessária, a intervenção para corrigir os problemas seria cirúrgica. "Como meu líquido amniótico estava em volume aumentado, eles também me passaram algumas injeções para amadurecer o óvulo no caso de um nascimento prematuro. Voltei para casa e fiz repouso absoluto até o dia do parto", lembra Nilvânia.
Com os profissionais de saúde e os pais cientes das particularidades no coração de Théo, agora restava aguardar a sua chegada ao mundo.
Dez a cada mil
A médica neonatologista Filomena Bernardes de Mello, chefe da UTI Neonatal do Hospital e Maternidade Santa Joana, explica que, embora o ecocardiograma não seja capaz de detectar anormalidades no coração fetal com 100% de acurácia, o exame é o principal recurso para diagnosticá-las com antecedência.
"O próprio laudo do exame informa que tem uma margem que você não consegue enxergar tudo. Mas, conforme o feto vai crescendo, aumentam também as possibilidades de enxergar a anatomia do coração e ver se está tudo dentro do normal. O mais importante é fazer o pré-natal desde o início da gravidez e num centro especializado, porque às vezes até mesmo em um serviço de medicina fetal, se não houver uma pessoa que tem essa especialidade, talvez o ecocardiograma fetal nem seja realizado", orienta a especialista.
O exame é indicado especialmente para gestantes de alto risco ou que tenham histórico de doenças congênitas —o que não era o caso de Nilvânia.
Não é possível evitar que um bebê nasça com anormalidades congênitas (isto é, desde o nascimento) na estrutura ou função do coração. Saber que ele tem uma anomalia congênita antes nascer, no entanto, permite programar o local ideal para o seu nascimento e a via de parto mais apropriada, por exemplo.
De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), há cerca de 130 milhões de crianças no mundo que têm algum tipo de cardiopatia congênita.
No Brasil, conforme dados do Ministério da Saúde compilados pela SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia), são dez casos como o de Théo a cada mil nascidos vivos, o que equivale a cerca de 29 mil crianças nascendo com anomalias cardíacas congênitas por ano no país.
'Mãe de UTI'
Defeitos no coração, contudo, não eram o único problema do bebê Théo, que nasceu por meio de uma cesárea sem intercorrências no dia 11 de junho do ano passado, uma semana antes do esperado. O primogênito de Nilvânia e Iafélice também tinha uma malformação congênita que impede a passagem do leite materno, a atresia de esôfago (AE). Para corrigi-la, precisou passar por uma cirurgia de reconstrução com apenas três dias de vida.
E mais: uma semana após o procedimento, o recém-nascido sofreu um derrame pleural —quando há um acúmulo excessivo de líquido no espaço entre o pulmão e a membrana externa que o cobre (a pleura)—, o que levou à necessidade de uma drenagem nos dois lados do pulmão.
O quadro se agravou em meio a uma insuficiência renal, que desembocou na necessidade de diálise. Uma complicação era seguida por outra. "Um bebê poderia ter essas alterações anatômicas no coração e até ficar bem clinicamente, mas o Théo teve um conjunto de outras alterações que fizeram com que ele não tivesse uma evolução boa", resume Mello, a chefe da UTI neonatal.
A luta para sobreviver foi grande. "Lembro que ele não conseguia nem abrir o olho, de tanto edema que tinha", rememora a mãe. Após o nascimento do bebê, a analista imobiliária passou a se deslocar diariamente por meio de transporte público de Santana de Parnaíba até o bairro Paraíso, para visitar o filho. Aos fins de semana, ia de carro junto ao marido. "Com o tempo e os gastos financeiros, precisei começar a visitá-lo um dia sim, um dia não".
Ser "mãe de UTI" foi uma coisa de outro mundo, descreve Nilvânia: "Muito choro, muito desespero. Passava com o psicólogo que fazia escuta e acolhimento no hospital, e precisei procurar atendimento por fora também, virtualmente, em casa. Porque era muito pesado".
A primeira tentativa de extubação de Théo veio quando o recém-nascido tinha cinco meses de vida —mas não foi bem-sucedida. O bebê ainda era incapaz de respirar sem ajuda dos aparelhos.
No 6º mês, foi necessário fazer uma segunda cirurgia para corrigir uma das alterações cardíacas, a CIV. O progresso após a operação foi notável. No entanto, antes da segunda tentativa de extubação, foi detectado através de uma broncoscopia (exame feito para avaliar o trato respiratório) que Théo tinha uma traqueomalácia, anomalia que dificulta a respiração.
Mais um procedimento precisou, então, ser adicionado à lista de necessidades do pequeno: a traqueostomia, com a inserção de uma cânula para ajudá-lo a respirar. Também foi necessário fazer uma GTT (gastrostomia), que consiste na instalação de uma sonda estomacal para alimentação, já que a capacidade de deglutição do bebê havia sido prejudicada devido ao longo período em que ficou intubado.
Foram as últimas intervenções realizadas antes que Théo pudesse, enfim, receber alta hospitalar.
Maternidade resgatada
Do teto de uma UTI neonatal a um teto com decoração lúdica para estimular o desenvolvimento do bebê. Da possibilidade de fazer visitas limitadas à chance de passar 24 horas ao lado de seu filho.
Nilvânia não conseguiu conter o choro ao assistir, agora tão de perto, aos olhos de Théo atentos à nova paisagem: "Ele já era um bebê grande, ficava olhando para um lado e para o outro, e não parava de olhar aquilo. Fiquei muito feliz e emocionada por vê-lo enxergando coisas novas, ver que existe um mundo além daquele que ele conhecia até então".
O lugar mencionado pela analista de imobiliária ainda não era o lar oficial de seu primogênito. Théo estava, na verdade, em um dos quartos da UDAI (Unidade de Desenvolvimento Assistido Individualizado), espaço recém-criado no Hospital e Maternidade Santa Joana para onde são direcionados os bebês que têm quadro estável e geralmente estão próximos da alta, como era seu caso àquela altura.
Em vigor há pouco mais de dois meses, o lugar serve como uma transição entre o hospital e a casa dos recém-nascidos.
Idealizadora da iniciativa, Mello explica que a UDAI surgiu porque as mães sempre pediam para ficar o dia inteiro com seus filhos na UTI neonatal, o que não é viável. Além disso, na reta final da internação dos pequenos, muitas vezes sentiam-se inseguras de voltar para casa e ter de lidar com as novas necessidades de um bebê que passou tanto tempo hospitalizado.
"Quando a gente manda o bebê para a UDAI, em geral ele já está aqui há meses. Não é uma alta normal, não é como dar mamadeira ou fazer o aleitamento materno, que é o básico. Esses bebês usam gastrostomia para se alimentar, por exemplo. E acompanhar isso é fácil para os pais? Lógico que não é. O tempo todo na internação quem estava fazendo esses cuidados eram os profissionais. Quando a gente fazia o treinamento na UTI, os pais observavam, às vezes colocavam a mão, e iam treinar de fato em casa. Hoje não, agora eles não treinam em casa, treinam aqui", diz a médica.
A chefe da UTI neonatal explica que o treinamento dos pais —que vai desde cuidados simples como a higienização do bebê até os mais complexos, como a aspiração— acontece sob a supervisão de enfermeiras e técnicas de enfermagem.
Como na UTI, os sinais vitais do bebê são monitorados o dia inteiro pelos profissionais de saúde. A diferença, no entanto, é que a mãe está sempre ao lado do recém-nascido e pode dormir no mesmo quarto que ele.
Atualmente limitados a seis unidades, os quartos possuem banheiro individual e televisão. É permitido colocar enfeites na porta e receber visitas de familiares aos finais de semana —como se o bebê tivesse acabado de nascer. "Tentamos resgatar a 'saída da maternidade', com que a mãe tanto sonha e que se perde quando o bebê vai para a UTI", diz Mello.
Segundo a médica, já foi possível observar um aumento na autoconfiança dos pais para retornar para casa com seus bebês, traduzida, por exemplo, em uma diminuição no número de telefonemas ao hospital para tirar dúvidas simples após a alta hospitalar.
Com o novo espaço, o hospital também espera assistir a uma queda no número de reinternações de recém-nascidos que passaram pela UTI neonatal: "A última coisa que a gente quer é uma reinternação de uma criança dessas, que ficou tanto tempo internada. Evitar isso é bom para o bebê e para a família".
Tudo que Nilvânia aprendeu nos 21 dias em que seu filho esteve na UDAI agora ela afirma reproduzir com mais autonomia junto ao marido, longe da unidade, em casa. Os pais de Théo também são acompanhados pelo home care.
Hoje, com 11 meses de vida, o pequeno evolui bem e deverá fazer uma cirurgia para reverter a traqueostomia, ainda sem data definida.
"Só tenho a agradecer a toda a equipe médica do Hospital e Maternidade Santa Joana, que fizeram de tudo para salvar a vida do meu filho e para que essa experiência não fosse tão traumatizante para ele e nem para mim. Eles tiveram participação nessa história de vitória do Théo, que hoje é um bebê muito agitado e esperto. Nem dá para perceber que foi uma criança que ficou tanto tempo intubada e em estado grave. Quem olha para o Théo hoje, não acredita que ele passou por tudo que passou", celebra a mãe.
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