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Mulher relata luta contra alcoolismo: 'Pensei que poderia morrer'

Getty Images
Imagem: Getty Images

Letícia Sé

Colaboração para o VivaBem

12/05/2022 04h00

Juliana Amado, 45, afirma que a primeira vez em que experimentou bebida alcoólica foi na infância, entre os seis e sete anos. Ela levava garrafas de bebida até o avô, para ele preparar drinques. "Eu pedia para experimentar e ele deixava. Naquela época, não havia uma consciência sobre os problemas disso. Acreditavam que molhar a chupeta das crianças com bebida as fazia dormir melhor", lembra.

Os primeiros porres foram na adolescência, quando bebia garrafas inteiras sozinha. Mas, na época da faculdade, a cerveja era um problema silencioso. Nas festas da família, Juliana não ficava muito alterada. Isso permitia uma negação, tanto dela quanto de seus familiares.

De acordo com Arthur Guerra, psiquiatra e coordenador do Núcleo de Álcool e Drogas do Hospital Sírio-Libanês, a negação é um estágio inicial no quadro de alcoolismo. "O paciente chega no consultório dizendo que o cônjuge o mandou ir à consulta e age como se não tivesse o vício. Depois, vem o comportamento de onipotência, a ideia de 'eu consigo parar de beber quando eu quiser'. Também há a projeção, colocando uma causa externa para se beber, a ideia de que se bebe por causa dos problemas", explica Guerra.

O estágio de negação de Juliana começou a ruir há cinco anos, quando se submeteu a uma cirurgia bariátrica. Na recuperação, ela ficou um mês sem beber. Mas quando a médica liberou o consumo de álcool de forma moderada, o alcoolismo se tornou algo incontornável.

"Passei a beber diariamente bebidas destiladas que eu nem gostava, para me dar 'o grau' da bebida com menos quantidade do líquido", conta.

Além do comportamento de risco em casa, o consumo de álcool se tornou frequente mesmo em compromissos fora de casa. "Meu marido é comerciante e compra coisas no centro de São Paulo para revender. Quando eu o acompanhava, eu levava conhaque dentro de um cantilzinho, ou cervejas na bolsa, e me despistava dele no meio das compras para ir bebendo ao longo do dia", lembra.

Esse estilo de vida perigoso durou três anos, quando começou a pandemia, em 2020. "Na pandemia, as pessoas estavam fazendo isolamento e eu passava a madrugada na rua bebendo. Num fim de semana, me deu um desespero: eu tinha bebido álcool de limpeza. Cheguei a cheirar perfume. Meu marido começou a sentir falta do álcool de cozinha em casa e me questionou se eu estava bebendo. Pensei que poderia morrer."

Depois disso, ela foi procurar ajuda.

Juliana Amado - Letícia Sé - Letícia Sé
Juliana admite que a bebida ocupou um grande espaço em sua vida como uma tentativa de tapar buracos emocionais, algo comum em mulheres
Imagem: Letícia Sé

Quando se descobre um alcoolista

Os familiares e amigos frequentemente não sabem lidar com o alcoolista como um dependente químico, tratando o problema como uma escolha pessoal do adicto. A distinção na compreensão do transtorno também está no uso da palavra "alcoolista", e não "alcoólatra", para se referir aos pacientes. "Alcoólatra remete à ideia de adoração e ao preconceito. Quando se fala em alcoolista, tratamos como doença, o que faz muita diferença", diz Claudia Leiria, psicóloga especialista em alcoolismo pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), cofundadora e diretora da AAF (Associação Alcoolismo Feminino).

O alcoolismo de Juliana se desenvolveu ao longo de sua juventude, mesmo não bebendo com frequência diária, mas indo até seu limite físico aos fins de semana. De acordo com Leiria, a frequência em si não é um fator definidor do quadro de alcoolismo, e sim a presença de alguns sinais. "Se de hoje a um ano atrás o paciente apresentou três deles, o quadro é classificado como alcoolismo", afirma a especialista.

Os critérios da OMS (Organização Mundial da Saúde) para classificação do alcoolismo são:

1. Tolerância ao álcool: à medida que a pessoa consome álcool ao longo da vida, ela precisa ingerir mais bebida para o mesmo efeito entorpecente.

2. Síndrome de abstinência: é a "fissura", impaciência, necessidade grande de beber.

3. Beber para aliviar sintomas de abstinência: momento em que o alcoolista bebe para amenizar os reflexos da falta do álcool.

4. Estreitamento do repertório: comportamento em que a pessoa bebe a mesma quantidade, sozinho ou acompanhado, apesar de restrições sociais, como no trabalho e antes da reunião na escola dos filhos.

5. Saliência do comportamento de uso: é a perda do controle sobre o consumo. Grande parte do tempo do cotidiano é ocupada procurando bebida, consumindo, ou se recuperando.

6. Reinstalação da síndrome após abstinência: são as recaídas após um tempo sem beber. É preciso buscar ajuda psicológica, médica e social (em casos de reinserção no mercado de trabalho, e ao buscar novas amizades, por exemplo) para tratar o alcoolismo permanentemente. "A dependência química não tem cura", afirma Leiria.

O que faz alguém ser dependente de álcool?

Expor crianças e adolescentes ao álcool, como aconteceu com Juliana, pode gerar dependência. O processo não se dá de forma tão direta, mas sim por meio de fatores sociais e fisiológicos. É o que explica Liana Morais, farmacêutica, doutora em psicofarmacologia pela UFPB (Universidade Federal da Paraíba) e professora na instituição.

Segundo ela, fatores sociais e culturais da família têm um peso importante e biologicamente a pessoa pode ter facilidade de interação com o álcool, uma propensão a ser dependente químico.

Um fator que pode desencadear a dependência de álcool em crianças que experimentaram a bebida é a ativação do sistema de recompensa, áreas cerebrais que estimulamos ao longo da vida com comportamentos, e que nos guiam sobre o que é bom e ruim para o corpo. "Um exemplo disso são crianças que foram condicionadas a tomar álcool para dormir mais tranquilas. Aí, o sistema de recompensa foi ativado. O uso de drogas ativa esse sistema, acontece um condicionamento", diz a professora.

Juliana Amado  - Acervo pessoal - Acervo pessoal
O processo, apesar de doloroso, dá esperança de uma vida mais equilibrada. "Hoje, me sinto muito bem sem o álcool", diz Juliana Amado
Imagem: Acervo pessoal

Ao tratar do tema do alcoolismo hoje, Juliana admite que a bebida ocupou um grande espaço em sua vida como uma tentativa de tapar buracos emocionais: ela foi adotada quando recém-nascida e, apesar de satisfeita com sua família adotiva, questões de rejeição fizeram parte de suas crises internas.

Esse é um comportamento que diferencia homens e mulheres, de acordo com Claudia Leiria, psicóloga especialista em alcoolismo pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), co-fundadora e diretora da AAF (Associação Alcoolismo Feminino), organização da qual Juliana participa. Segundo Leiria, geralmente mulheres desenvolvem o comportamento alcoolista para lidar com a depressão e outros transtornos psicológicos. Já os homens são geralmente incentivados a beber socialmente, sendo os transtornos resultantes do alcoolismo.

O tratamento

Era maio de 2020. Usando o Instagram, Juliana achou a página da AAF (Associação Alcoolismo Feminino), um grupo online de mulheres alcoolistas, em que foi acolhida e ouvida em atendimentos gratuitos. "Elas conversaram comigo sem me julgar". Com o apoio do grupo, Juliana conseguiu ficar em abstinência até agosto de 2020, quando teve uma recaída. Mas ela não desistiu: está sem beber desde então, há um ano e nove meses, graças ao apoio psiquiátrico, psicológico e social que tem recebido.

Atualmente, Juliana lida com o luto relacionado ao alcoolismo, tendo uma vida social mais restrita. "É preciso se afastar dos lugares de ativa, que são os locais em que o alcoolista bebia antes de parar. Nesse processo, perdi muitos amigos, os amigos de copo, porque deixei de ser a Juliana engraçada, bêbada. Eu não culpo ninguém. Fico chateada, mas paciência. É um processo de luto."

Dentro desses dois anos, Juliana se associou à AAF. Mulheres podem buscar ajuda e serem atendidas gratuitamente por psicólogas e médicas. Também é possível se associar com uma mensalidade. A organização funciona virtualmente e promove encontros presenciais pelo Brasil esporadicamente.

"Eu gosto de estar no grupo, porque a mulher é muito julgada pela bebida. A alcoolista é xingada, é tida como vagabunda. Isso é uma questão no casamento das mulheres. Parar de beber com ajuda do grupo ajuda muito, porque as histórias são parecidas."

Os impactos do alcoolismo na saúde de Juliana ainda hoje são os tremores nas mãos, perda de memória e gastrite. O processo, apesar de doloroso, dá esperança de uma vida mais equilibrada. "Hoje, me sinto muito bem sem o álcool. É sempre 'bem só por hoje', porque estarei nesse processo a vida toda. Tenho que agradecer por estar viva —tanto pela saúde quanto pelos perigos aos quais eu me expus quando estava bêbada."