'Esperei uma vida que nunca chegou': como tentar engravidar afeta a mente
A maternidade sempre foi um sonho para a gerente de conteúdo e empresária Fernanda La Salye, 39. Quando tinha 25 anos, as tentativas começaram. Passaram-se meses, depois anos, e a gestação não acontecia. "Toda ginecologista me dizia que não tinha nada. Cada menstruação que vinha era uma tristeza, uma sensação muito ruim", diz. Por 14 anos, Fernanda foi uma tentante, pessoa que tenta engravidar. "Esperei uma vida que nunca chegou, deixei de alugar apartamentos que cabiam no bolso para escolher maiores, com quarto extra."
É comum que as tentantes se sintam culpadas e frustradas. Em relações heterossexuais também é normal que elas acreditem ser as responsáveis pela infertilidade do casal —mesmo que os índices sejam quase semelhantes entre homens e mulheres. Em alguns casos, podem até mesmo encobrir algum problema do marido.
"Essas mulheres podem ter ansiedade, entrar em depressão. Elas restringem tanto a vida e são tantas negativas mensais que entram em período crítico e desenvolvem crises de estresse elevado, que também compromete o corpo físico", explica a psicóloga Helena Bonasi, doutoranda pela UnB (Universidade de Brasília).
Fernanda conseguiu engravidar em sua primeira FIV (fertilização in vitro), após 10 anos como tentante e pouco mais de um ano depois de descobrir ter endometriose. "Foi o primeiro diagnóstico. Isso me deixou feliz, claramente não queria ter a doença, mas as coisas começaram a fazer sentido", conta. A gravidez foi comemorada com cautela e ela esperou quase quatro meses até compartilhar a notícia nas redes sociais.
"Em uma quinta-feira da semana que antecede a Páscoa, fui ao controle médico, ouvi os batimentos, soube que era menino, e eu sempre senti que teria um. Na sexta contei e, no sábado, senti dor e pontadas que ficavam cada vez mais frequentes", relembra.
Entrei em trabalho de parto natural. Meu corpo expulsou o bebê, que ficou vivo por um tempo, mas com 18 semanas não dá nem para ir para a incubadora, então eu o perdi". Fernanda La Salye
Para as tentantes, o luto pode ser uma realidade e é necessário tempo, apoio e suporte emocional para se recuperar. Perder um filho, mesmo ainda estando na barriga, significar romper com o preparo da maternidade e um sonho muito desejado.
"Existem sentimentos de raiva, e as fases do luto podem estar muito presentes. Da não aceitação e raiva pela perda, até o momento de conseguir superar. Pelo bebê ser uma pessoa ainda não conhecida, quem está de fora ameniza esse luto, mas a criança existe no campo do desejo, apesar de não estar materializada", diz a psicóloga.
Autoestima é afetada e vem a culpa
Muitas mulheres veem a possibilidade de engravidar como um processo fácil e rápido. Essa é, geralmente, a primeira frustração no período como tentante.
No período de tentativas, é natural que a vida se baseie no ciclo menstrual e exista uma avalanche de expectativas até a menstruação chegar ou não. "Se notícia da gestação não chega, é comum a mulher ter um turbilhão de emoções, como raiva, culpa, medo, tristeza, mas também esperança. É difícil contar para os outros que mais uma vez não deu certo. Por isso, a autoestima e a autoconfiança são muito afetadas", explica a psiquiatra Carla Zambaldi, doutora pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
A enfermeira Julyanne Neves Pereira, 36, tentante há cinco anos e criadora da página "Infertilidade Sem Censura", conta que cada ciclo é uma ansiedade. "Sempre tive um estoque de testes de farmácia em casa". Após um ano, ela descobriu uma endometriose assintomática. Dois anos depois e sem sucesso em uma cirurgia para corrigir alterações nas trompas, soube que o último recurso seria uma FIV.
Receber o diagnóstico é um misto de sentimentos. Impotência, angústia, tristeza. Eu me senti culpada por adiar o desejo de mãe, mesmo sabendo que não conseguiria antes. A terapia me ajudou a aceitar o diagnóstico e a controlar ansiedade. É uma jornada solitária, você não conhece outras pessoas". Julyanne Neves Pereira
Foram duas fertilizações em 2019. Trabalhando na linha de frente durante a pandemia, Julyanne decidiu esperar a situação amenizar para tentar pela terceira vez. Agora, aguarda o resultado de alguns exames e, se tudo estiver certo, irá para a terceira tentativa no próximo ciclo.
Há pressão do "mundo grávido"
O querer engravidar pode ser tamanho que, muito comumente, a pessoa se vê em um "mundo grávido". Há a sensação de que todo mundo consegue menos ela. "Para algumas pessoas, a infertilidade pode ser uma das maiores crises existenciais da vida", diz a psicóloga perinatal Allana Pezzi, do Centro de Medicina Integrativa do Hospital e Maternidade Pro Matre Paulista (SP).
Por isso, isolamento é um fator de risco, já que a tentante tende a deixar de compartilhar sua jornada pelo receio de lidar com julgamentos. Grupos de apoio, inicialmente boas alternativas para encontrar histórias semelhantes, podem se tornar ambientes tóxicos à medida que mais e mais mulheres engravidam. Isso gera sensação de incapacidade e surgem sentimentos de desesperança, raiva e frustração, capazes de desencadear questões emocionais.
Além disso, o sexo do casal pode perder a espontaneidade, apenas para cumprir a tentativa de engravidar. A longo prazo, e se a mulher deixou muitas áreas da vida de lado, é possível surgir arrependimento pelo tempo e oportunidades que passaram. Caso o quadro não tenha uma boa elaboração, ela pode desenvolver depressão na sequência.
Se a gravidez vem
"Ser tentante não é fácil, é um misto de sentimentos. Você sente como se não fosse capaz ao ver todo mundo ao seu redor engravidando menos você. Eu me fortalecia porque sabia que Deus tinha um propósito para mim", diz a criadora de conteúdo Valéria Feitosa, 25.
Ela foi tentante por cinco anos até descobrir endometriose profunda e decidiu compartilhar sua jornada na internet, inicialmente de forma anônima. "Não queria que pessoas próximas soubessem, infelizmente isso ainda é um tabu e eu preferi não contar por um bom tempo", conta. Após o período de anonimato, ela compartilhou a identidade e se surpreendeu com o apoio dos conhecidos.
Hoje, Valéria comemora a chegada do filho, que completa um mês em junho. "Eu amei estar grávida, me emocionava com cada chutinho, comemorava cada semana, é uma sensação inexplicável saber que após tanto tempo o milagre chegou."
Em alguns casos, no entanto, é comum que uma gravidez tão desejada seja um momento de tensão. O receio de alguma complicação após um processo demorado pode repercutir na saúde emocional da mulher, que adota cuidados excessivos e o controle rígido das atividades.
"Agora que ela conseguiu, quer fazer de tudo para manter e se certificar que o bebê está bem. Redobra cuidados, fica mais ansiosa, fora as questões hormonais, difíceis de controlar. Junto à felicidade, pode vir a ansiedade", detalha a psicóloga Allana Pezzi.
Hora de parar?
Após sofrer o aborto, Fernanda passou pela fase "mais obscura da vida", descreve. O corpo não entendia o que estava acontecendo e, por isso, ela teve todos os sintomas do pós-parto e puerpério. "Seis meses depois, meu peito ainda jorrava leite." Durante este período, o então marido decidiu seguir outro caminho. "Eu tive que passar por isso sozinha, porque meu casamento acabou", lembra.
Na terapia, ela entendeu a hora de caminhar além da expectativa da maternidade. "As pessoas falam para você desistir e você acha um absurdo. Se ainda não é o seu momento, continue tentando, porque ele vai chegar. Minha menstruação vem e, hoje, eu não sofro, vejo amigas com bebê."
A decisão de deixar de tentar não é pacífica em todos os casos, em especial se não é a mulher quem escolhe encerrar o processo. Tratamentos para fertilidades têm alto custo e é comum ter que interrompê-los por falta de dinheiro, por exemplo.
Segundo a psicóloga Helena Bonasi, é necessário resiliência para lidar com o momento e a atenção às emoções é essencial. "Ser resiliente é enfrentar um desafio que você não esperava e sair com crescimento pessoal. Mas vemos que quando a pessoa não tem direcionamento e cuidado com a saúde mental, há uma debilitação emocional e nem sempre a jornada é de construção positiva."
É importante lembrar que compartilhar a carga é necessário em uma jornada muitas vezes delicada emocionalmente. Além disso, ter apoio psicológico é de extrema importância.
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