Existe quem resista mais à dor, mas percepção pode mudar ao longo da vida
A dor é sempre um alerta para informar que algo não está bem e, ao contrário do que muita gente pensa, suportá-la não faz ninguém mais forte que outro, pois a percepção é diferente para cada um, sendo, ainda, subjetiva e mutante com o passar dos anos.
Contudo, é fato que muitas pessoas apresentam mais resistência à dor e isso se deve a uma série de condições relacionadas à maneira como a algia é percebida e a forma como se lida com ela, além dos aspectos: educação, alimentação, qualidade do sono, vivência em situações de estresse, estado inflamatório e estresse oxidativo.
"Em quadros crônicos, muitas pessoas desenvolvem uma maior capacidade de conviver com a dor, sem que, na realidade, ela tenha diminuído ou se transformado. Além dela, a disfunção do sistema límbico —sistema responsável pelo controle das emoções— gera alterações emocionais, como depressão, ansiedade e outros. Dessa forma, um percentual expressivo de vítimas de dores crônicas convive com quadros de dor e de disfunções emocionais", afirma Dirceu de Lavôr Sales, médico especialista em acupuntura, homeopatia e dor, coordenador da cadeira de dor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e responsável pelo ambulatório de tratamento da dor do Hospital das Clínicas da UFPE.
Como é formada a percepção de dor?
"A percepção do fenômeno de dor é criada ao longo do desenvolvimento. Existe uma neuromatriz que consiste em uma rede de neurônios programada para perceber a algia. É uma programação genética que faz com que cada um aprimore a capacidade de distinguir mais ou menos dor", informa Victor Cicone Liggieri, fisioterapeuta e coordenador de fisioterapia e atividade física no Centro de Dor do HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Além disso, há fatores diversos que influenciam na formação dessa percepção: genéticos, epigenéticos —capacidade de ativar ou desativar alguns dos genes de acordo com o ambiente ou o estilo de vida, sem alterar a sequência de nucleotídeos do DNA—, culturais, sociais, psíquicos e emocionais.
Em muitos momentos da vida, é possível estar mais suscetível a apresentar uma sensação mais intensa, devido ao estresse, por exemplo.
O cérebro tem uma capacidade enorme de proteger da dor e muitos neurotransmissores, como serotonina e noradrenalina, atuam nesse controle da sensação de dor também. Quando se está feliz, passando por uma situação bacana na vida, percebe-se menos dor, seja física ou psíquica. Afinal, a mente está repleta de neurotransmissores positivos. Victor Cicone Liggieri
Crianças e adolescentes
Segundo David Nordon, ortopedista pediátrico e pesquisador do Instituto de Ortopedia do HC-FMUSP, é um grande erro achar que as crianças sentem menos dor. "Na 29ª semana gestacional, os bebês já sentem. Apesar de os neurônios não estarem totalmente mielinizados, os impulsos passam mais devagar e demora mais para o bebê senti-la. Mas há cientistas que acreditam que é mais intensa, ou seja, demora mais para sentir, mas quando sente é mais forte."
Tanto crianças como adolescentes podem ter dor crônica também. As mecânicas, que são em sua maioria as relativas à postura, como ficar muito tempo sentado, carteiras e cadeiras inadequadas, uso excessivo de celular, são bem comuns, além da dor do crescimento.
"As queixas não devem ser negligenciadas, afinal ter dor constantemente não é normal; é um sinal de que algo não vai bem e precisa ser investigado", pontua o ortopedista pediátrico.
Existem dificuldades de tratamento de dor nas crianças, principalmente, em relação a determinadas crenças a respeito de medicamentos, como as que os relacionam a risco de vícios ou reações. "Após uma cirurgia ou um trauma, a chance de ficar crônica é muito grande, se não for tratada corretamente."
Mulheres sentem mais dores?
De acordo com o Sales, estudos têm demonstrado que as mulheres sofrem de dor mais do que os homens. "Várias patologias álgicas são mais frequentes nelas, por exemplo, fibromialgia e enxaqueca, mas não há nenhuma explicação científica a respeito."
Ainda segundo o professor da UFPE, tanto homens como mulheres padecem até conseguirem um diagnóstico e tratamento corretos para as suas dores, devido à falta de profissionais capacitados para diagnosticar e tratar a condição.
"Cerca de 30% da população do mundo convive com quadros crônicos, o estudo do diagnóstico e tratamento da dor deveria ser prioritário, mas, surpreendentemente, essa realidade não sensibiliza os gestores e reitores no país."
A opinião é compartilhada pelos demais especialistas entrevistados. "É muito comum ver um paciente que vai à procura de uma assistência à saúde chegar com um exame de imagem, só que, muitas vezes, o recurso não é capaz de acusar nada relativo à dor. Apenas 3% das ressonâncias realizadas são necessárias para o diagnóstico de dor de coluna, por exemplo", relata Liggieri.
De acordo com ele, muitos pacientes, após obterem o resultado que acusa alguma lesão específica e sem relação com o quadro de dor, pioram e, com isso, todo o processo e prognóstico de melhora tornam-se mais complexos.
A automedicação é relatada a fim de aliviar o sofrimento por não ter encontrado respostas e isso acaba tendo um preço alto, que é a postergação do tratamento adequado.
Há casos de procedimentos invasivos, como operar a coluna e, após a cirurgia, não ocorrer a melhora. Para exemplificar, o fisioterapeuta comenta que muitos pacientes chegam a passar por até sete cirurgias, que são desnecessárias ou errôneas, sem melhora e até agravam porque outros motivos envolvidos, além daquela lesão, influenciam na dor.
Outra consequência é o fato que tanto os exames quanto as cirurgias —indevidas— oneram o sistema de saúde, seja o público ou privado. Não é necessário ter lesão para haver dor, por isso é fundamental investigar as questões físicas, psíquicas, ambientais, culturais e todos os demais fatores relacionados ao sistema de dor do paciente.
Toda dor tem causa e tratamento
Acreditar que se tem dor por causa da idade ou da obesidade, por exemplo, são crenças errôneas, da mesma forma que muitos pacientes são tidos como poliqueixosos, taxados de histéricos, que visam um ganho secundário, entre outros estigmas.
"Muitas vezes, o profissional tem dificuldade de definir se esse ou aquele paciente está realmente com algia; se necessita de afastamento do trabalho, ou apenas está maximizando a sua dor no sentido de conseguir um afastamento definitivo ou temporário das suas ocupações profissionais. Por outro lado, existem aquelas pessoas que por suas fragilidades emocionais, familiares ou matrimoniais, usam a dor como uma forma de sentirem mais olhadas, mais acolhidas, o que resulta em dificuldades adicionais ao diagnóstico do seu quadro álgico. Certa vez, uma paciente estando bem melhor das suas dores, me solicitou que não contasse ao filho que estava melhor, pois ele não iria mais ligar para ela", relata o responsável pelo ambulatório de tratamento da dor do Hospital das Clínicas da UFPE.
Como já foi dito, as causas vão além do físico e necessitam ser investigadas para obter o tratamento mais assertivo. Por isso, trata-se a percepção, sendo modulada e regulada por meio de diversos tratamentos —os farmacológicos e os não farmacológicos.
Técnicas de fisioterapia que usam o próprio corpo, hipnose, psicoterapia, terapia cognitivo comportamental são algumas linhas usadas para trabalhar a sua modulação.
Há também a educação em dor, que ocorre quando o paciente desenvolve a consciência necessária para identificar os fatores que levam a ter mais ou menos naquele momento da vida, conseguindo, assim, gerenciá-la e ter mais autonomia.
"Para 90% das condições dolorosas crônicas, o que irá fazer com que seja reduzida não são os medicamentos, mas a atividade física. O tratamento farmacológico auxilia a construir a ponte para que o indivíduo chegue à atividade física", esclarece o coordenador de fisioterapia e atividade física no Centro de Dor do HC-FMUSP.
"A medicina intervencionista da dor oferece possibilidades de diagnóstico e tratamento para diversos tipos de dor com procedimentos menos invasivos com o uso de agulhas ou cânulas, que são aplicadas em pontos específicos, sem nenhum corte, chamadas de técnicas percutâneas", explica Amelie Falconi, médica especialista em tratamento da dor e docente da pós-graduação de medicina intervencionista da dor no Einstein.
Segundo ela, a radiofrequência é uma dessas técnicas que por meio de uma corrente elétrica altera o nervo responsável por transmitir o impulso de dor do paciente, interrompendo, ou reduzindo, a transmissão do dele.
"Há, ainda, medicamentos, como os antidepressivos, que modificam a forma com que os nervos processam a dor e reduzem a sensibilização central, ampliando a qualidade de vida."
Intensidade e tolerância
É chamada de limiar de dor a intensidade que o fenômeno álgico é percebido por uma pessoa e a tolerância à dor refere-se à maneira que ela responde aos estímulos dolorosos.
Existem inventários, protocolos e escalas de dor para medição. A EVA (Escala Visual Analógica) e o algômetro de pressão analógico ou digital são ferramentas usadas para aferir a intensidade.
"Na prática, a melhor forma de definir a intensidade da dor de um paciente é uma anamnese bem feita com o estabelecimento de um vínculo de respeito e confiança entre o médico e o doente", conclui o responsável pelo ambulatório de tratamento da dor do Hospital das Clínicas da UFPE.
Extremo: disfunção genética
Existem casos raros como insensibilidade congênita à dor em que não se percebe os estímulos, provocando uma série de ferimentos e sofrimentos no corpo por não reconhecer, por exemplo, o quanto é nocivo permanecer numa posição ruim ou encostar em algo muito quente.
"Além disso, levando em consideração que a dor de natureza aguda é um alarme que informa sobre o surgimento de uma determinada doença ou disfunção, essas pessoas são consideradas de risco, pois chegam a desenvolver quadros graves sem notar", explica Sales.
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