Brasil testará pela 1ª vez cogumelos psicodélicos para criar medicamento
Um estudo pioneiro para desenvolvimento de medicamentos derivados de psicodélicos será realizado por um laboratório público no Brasil, segundo os pesquisadores do Certbio (Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste), da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande). O laboratório, que ganhou fama de Vale do Silício do agreste, pelo seu enorme potencial tecnológico, acaba de receber autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para testar a psilocibina, o princípio ativo presente nos chamados cogumelos mágicos.
A pesquisa irá avaliar a quantidade e componentes psicoativos e testar a potência (nível de psilocina e psilocibina) do psicodélico para uso final em pacientes no Brasil. Outras medições importantes também serão realizadas, como para observar a ausência de metal pesado, pesticida e contaminantes, além de estudos de estabilidade para determinar prazos de validade da substância.
Os pesquisadores afirmam que o projeto abre caminhos para o desenvolvimento de medicamentos que poderão, em um futuro breve, estar disponíveis para a população. Num horizonte próximo, acredita-se que esses produtos derivados dos cogumelos psicodélicos possam ser indicados para condições graves ou de grande impacto na saúde pública, como depressão, ansiedade, dependência química, traumas, entre outros.
"Esta autorização permite a coleta e extração da psilocibina a partir de cogumelos e a preparação de extratos para testes in vitro e em animais para depois iniciar testes clínicos", diz a professora Suedina Silva, pesquisadora da UFCG que integra a coordenação do projeto Psilocibina, uma parceria entre a UFCG, o Certbio e a empresa Biocase Brasil, que também atua com cannabis medicinal.
"É o primeiro passo para termos um laboratório especializado nessas medições mais finas e mais tecnológicas", afirma o médico Cesar Camara, CEO da Biocase Brasil. Ele acrescenta que se trata também da primeira parceria público-privada para desenvolvimento de um produto psicodélico para uso médico no país. "Essa autorização inaugura um ciclo que deverá colocar o Brasil dentro de uma onda virtuosa que já acontece ao redor do mundo e que busca um novo olhar para tratamentos ancestrais", comenta o médico.
Avanços na pesquisa psicodélica
Embora seja ainda o início de um longo caminho, o projeto de desenvolver medicamentos derivados dos cogumelos psicodélicos parece ter encontrado um terreno fértil para isso. A UFCG liderou a lista de pedidos de registro de patentes por invenção no país em 2020, de acordo com o último ranking do Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial).
Segundo Marcus Fook, professor da UFCG que também está à frente do projeto Psilocibina, o laboratório é o único do país a produzir quitosana em grau médico, um biopolímero natural obtido a partir da casca de crustáceos, como do camarão, que possui diferentes aplicações para a saúde humana e animal e é atualmente um dos mais pesquisados do mundo. "É esse composto que será testado no nanoencapsulamento da psilocibina para administração sublingual", explica o pesquisador.
A meta é avançar até o final do ano com o desenvolvimento de patentes, afirma o CEO da Biocase. "Isso é mais para mostrar o que estamos fazendo para o mundo, do que para impor restrições, afinal é um produto natural", afirma Camara. O objetivo, segundo ele, é avançar nas etapas até chegar em um produto final para uso clínico no Brasil.
Após as pesquisas com a psilocibina pelo Certbio, quando o produto estiver pronto ou bem próximo disso, a Biocase é quem assume os estudos clínicos nas fases 1 (com pessoas sadias para determinar segurança), 2 (com pacientes para definição de dosagem) e 3 (para verificar a eficácia), determinante para solicitar o registro.
"Mas, nada disso vai acontecer sem autorizações adicionais da Anvisa e Conep [Comissão Nacional de Ética e Pesquisa, do Conselho Nacional de Saúde]", ressalta o médico.
Benefícios da psilocibina
A terapia psicodélica permite um tratamento longevo e com efeitos imediatos, comenta o médico Romeu Fadul, diretor científico da Biocase Brasil. "No caso da psilocibina, uma única sessão a cada seis meses ou por ano pode ser suficiente para tratar, por exemplo, depressão grave, vícios, ideação suicida de adolescentes e adultos, traumas e o medo da morte em pacientes com doenças oncológicas avançadas."
"É uma mudança completa de paradigma", complementa Camara. Segundo o médico, se as apostas na psilocibina e nas terapias psicodélicas de um modo geral se confirmarem, representam o maior avanço em saúde mental desde o Prozac (antidepressivo mais usado do planeta). "Além da qualidade de vida proporcionada aos pacientes, estima-se que o impacto na economia mundial seja de até 2 trilhões de dólares por ano."
Mas ainda tem muito chão pela frente, reconhece o médico. "Pelas nossas contas, ainda vamos precisar de mais quatro licenças até solicitar o registro de um novo medicamento", detalha Camara. E isso, segundo ele, pode levar até cinco anos.
"Cada etapa será uma batalha, pois teremos que mostrar a necessidade e os resultados científicos documentados que justifiquem esse novo produto", explica o médico.
Depois da fase conduzida pelos pesquisadores da UFCG e Certbio, os estudos clínicos com a psilocibina dentro de protocolos de pesquisa serão realizados pelo Instituto Alma Viva, braço da Biocase para o desenvolvimento de terapias psicodélicas no Brasil. Esta etapa, de acordo com o CEO da empresa, deve iniciar ainda este ano, em São Paulo.
Uma primeira pesquisa que a Alma Viva deve realizar com pacientes brasileiros está cientificamente embasada em um estudo autorizado pelo FDA (agência americana de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos), que marcou há cerca de uma década a retomada das investigações sobre essas substâncias, abrindo os caminhos para a atual fase, conhecida como renascença psicodélica.
Pesquisadores do Centro de Pesquisa Psicodélica e da Consciência da Universidade Johns Hopkins (EUA), coordenado pelo cientista Roland Griffiths, administraram psilocibina para pacientes com ansiedade existencial (medo da morte) em estágios terminais de câncer. "O estudo demonstrou 80% de resposta positiva no controle desse tipo de ansiedade no grupo de pacientes estudados", comenta Camara.
Psicodélicos fora do armário
Um dos principais entraves é que a psilocibina, tal como outros psicodélicos, ainda constam na lista de substâncias psicotrópicas da Anvisa, observa o advogado Konstantin Gerber.
"Isso significa que somente medicamentos registrados podem ser prescritos com estas substâncias, sendo necessária uma autorização especial para pesquisar e manipular."
Por isso, ainda é cedo para sondar se, de fato, algum dia, um medicamento à base de psilocibina chegará ao SUS, ou prever quando estará disponível fora dos protocolos de pesquisa.
Mas, principalmente em clínicas particulares, outras terapias psicodélicas já são uma realidade. Por exemplo, para tratamentos com ketamina, que no Brasil já estão autorizados. Atendimentos com ibogaína (derivada da iboga, planta africana com propriedade psicodélica) também estão disponíveis há tempos no país. Embora não tenha uma previsão regulamentar, terapias com a droga não são ilegais por aqui, comenta o advogado Emílio Figueiredo. "Como não há regulamentação específica, estão sob o manto da anomia [ausência de regras]."
Uma novidade no cenário brasileiro são as clínicas assumidamente psicodélicas. É o caso, por exemplo, da clínica Bienstar, do empresário Marco Algorta. A ideia, segundo ele, é combater o preconceito que ainda existe em relação a essas substâncias. "Queremos sair do armário, mostrar que somos mesmo psicodélicos", afirma Algorta.
O empresário pretende criar em parceria com médicos uma rede de clínicas de psicoterapia assistida por psicodélicos no Brasil. "As nossas clínicas já estão funcionando e já recebemos nossos primeiros pacientes para tratamentos com ibogaína, em Ourinhos, no interior de São Paulo.
Algorta prevê ainda que em menos de um mês sua clínica estará também atendendo na cidade de São Paulo com ketamina. "Nosso objetivo é ampliar os tratamentos usando outras substâncias, sempre dentro do marco regulatório."
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