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Saúde mental pós 'boa noite, Cinderela': insegurança, ansiedade e pânico

Giovani Faccioli desenvolveu ansiedade - Arquivo pessoal
Giovani Faccioli desenvolveu ansiedade Imagem: Arquivo pessoal

André Aram

Colaboração para o VivaBem

28/05/2022 04h00

"A pessoa levou, naquela noite, minha integridade, minha moral. Eu aprendi a seguir, mas foi um processo traumático". O desabafo do DJ e organizador de eventos Giovani Faccioli, 28, é de uma vítima do "boa noite, Cinderela", um golpe antigo, em que a pessoa é dopada após ingerir bebida alcoólica "batizada" com substâncias químicas. A intenção pode ser roubar e/ou abusar sexualmente da vítima.

Segundo José Olinda Braga, professor do departamento de psicologia da UFC (Universidade Federal do Ceará), o golpe pode desencadear crises de pânico, posteriormente tornadas síndrome do pânico, e/ou problemas psicossomáticos envolvendo com frequência o trato gastrointestinal, respiratório e áreas da pele. "A ansiedade em níveis razoáveis faz parte da vida humana, no entanto, quando exacerbada por questões externas, passa a ser esteio para o advento de uma enorme quantidade de males de ordem emocional ou fisiológica", afirma Olinda.

Faccioli estava numa festa diurna realizada em um quiosque numa praia em Santos, litoral de São Paulo, quando foi abordado por uma pessoa que lhe ofereceu uma bebida. Após isso, ele alega ter sofrido um apagão, e acordou horas depois em um quarto de hotel, nu, confuso e sem nenhum pertence pessoal. Havia apenas um short e muitas garrafas de bebidas vazias. Sem apoio da gerência do estabelecimento, o DJ saiu atordoado pelas ruas, sem saber onde estava e o que havia feito antes, tendo apenas alguns flashes de memória. Ele conseguiu retornar à praia, onde pediu ajuda, sendo socorrido por familiares em seguida. "Eu não sabia dizer meu nome. O prejuízo financeiro é pequeno perto do dano emocional, tive dificuldade de voltar a me socializar", diz.

Rafael Medeiros, 29, amigo da vítima, também sofreu uma tentativa em uma festa no centro de São Paulo, após aceitar uma bebida de um desconhecido enquanto estava na pista de dança. Segundos depois, com a visão turva e sentindo-se fraco, ele notou ter caído no golpe, logo pediu ajuda a um amigo que o levou para casa. Medeiros lembra como foi o dia seguinte: "Eu tive uma rebordosa gigantesca, não conseguia comer, dores no corpo inteiro, mas fiquei mais atento após isso", diz ele.

Rafael Medeiros - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Rafael Medeiros sofreu uma tentativa do golpe em São Paulo
Imagem: Arquivo pessoal

Para Daniel Vasques, psiquiatra e coordenador de residência em psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, o sentimento de culpa é comum nesses casos: "quando analisamos algo que ocorreu e que poderíamos ter evitado, em teoria, faz com que nos sintamos culpados". Faccioli relembra como superou o fato: "você só consegue seguir adiante quando você se perdoa por permitir em algum momento ter vacilado para que outra pessoa fizesse algo tão ruim a você", desabafa.

Tentativa de golpe em Istambul

Há dois anos, Luiza Marques, 26, e sua mãe Maria Augusta, 53, de Belo Horizonte (MG), decidiram viajar juntas para a França. Como havia uma conexão na Turquia, elas ficaram alguns dias em Istambul. Após alguns dias agradáveis provando comidas típicas e fazendo compras, mãe e filha saíram a noite para beber algo em um lugar mais tranquilo, visto que a avenida principal estava muito cheia, afastando-se um pouco do centro turístico. Perto dali, entraram em um pequeno restaurante, onde beberam cerveja e conversaram com o simpático garçom. Antes de deixar o local, o funcionário ofereceu como cortesia duas xícaras de chá, que apenas Luiza bebeu.

"Logo após beber o chá, comecei a passar mal, suava frio, a visão estava turva, as coisas ao meu redor pareciam lentas, minhas pernas pareciam que iam falhar, como se eu não tivesse forças para ficar em pé, foi horrível. A minha mãe não sabia o que estava acontecendo e ficou muito preocupada". O garçom as seguiu até um certo trecho da rua e as observava à distância. As duas entraram em uma loja, mas foram impedidas de usar o banheiro. Luiza achou que fosse desmaiar, caminhava apoiada em sua mãe.

"Acho que a droga estava nas duas xícaras, a intenção dele era que bebêssemos o chá, mas somente eu bebi. Logo que entramos no banheiro de uma lanchonete, caí no chão e consegui vomitar muito. Minha mãe estava em pânico, pois não sabia como pedir ajuda. Ficamos uns 40 minutos ali, então voltamos para o hotel e apaguei", diz. No dia seguinte, ambas estavam arrasadas, sentindo-se impotentes e com medo da situação se repetir. A mineira acredita que ele tinha outras intenções além de furtá-las.

Luiza Marques - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Luiza Marques e sua mãe, em Istambul, na Turquia
Imagem: Arquivo pessoal

"Não achei que estaria em risco bebendo um chá oferecido pelo garçom de um restaurante, um lugar teoricamente seguro, mas foi um aprendizado no âmbito geral; hoje não confio tanto nas pessoas, tomo mais precauções e vejo os comentários dos viajantes", relata Marques. Assustadas, elas preferiram cancelar a visita para a região da Capadócia agendada para o dia seguinte.

O caminho para a superação

O acolhimento com um profissional é fundamental para a vítima que se encontra em fragilidade emocional. "A condução terapêutica costuma ser na forma de escuta ativa (antes, durante e depois do ocorrido), em que são oferecidas condições para facilitar a elaboração do trauma, num clima empático e de aceitação", esclarece Olinda.

Para Patrícia Bader, coordenadora de psicologia da Rede D'Or São Luiz, em São Paulo, externalizar o fato é importante durante o processo terapêutico. "À medida que você divide isso com um profissional, consegue dar um significado para aquele acontecimento, não se sentindo responsável, afinal, você não responde pelo ato do outro", diz. A especialista recomenda atenção às opiniões de terceiros, sobre falas como "não pensa nisso, não vamos mais falar disso", aplacando dessa forma os sentimentos da vítima.

Esconder o ocorrido pode voltar como um evento pós-traumático, com sintomas de ansiedade, depressão, como uma fuga a tudo que está associado com o ocorrido. "Então, deixar de sair, de se relacionar, vai tomar sempre o outro como um potencial agressor. Isso tem um impacto severo na vida social, logo, a intervenção se faz muito necessária", avisa Bader.

Atualmente, Faccioli está sendo acompanhado por especialista, após ter desenvolvido um quadro de ansiedade acentuada. "Eu tenho muita dificuldade de confiar nas pessoas. Afetivamente, para me relacionar, é difícil, é muito recorrente que eu sinta que essas pessoas vão me fazer o mal, não físico, mas emocional", confidencia.