Empresária conta como é viver sem olfato e paladar: 'Meu corpo se adaptou'
A empresária Fabiana Saad, 37, planejou o Ano-Novo dos sonhos em 2014: praia e sol em Trancoso (BA). Mas quando foi se arrumar, algumas horas antes da meia-noite, a luz acabou e ela precisou ir à pousada em que uma amiga estava hospedada. No curto trajeto, as duas foram assaltadas.
Após um empurrão, Fabiana bateu a cabeça e ficou desacordada por alguns minutos. No retorno a São Paulo, dois dias depois, foi ao hospital por estar sem paladar o olfato. Lá, descobriu que teve um traumatismo craniano e que dificilmente retomaria os sentidos. Ao VivaBem, contou os impactos de não sentir cheiro nem gosto das coisas e como o tempo foi importante para ressignificar as sensações. Leia a seguir.
"Eu fui assaltada e o ladrão me empurrou. Caí com a cabeça em uma pedra e apaguei, fiquei desacordada um pouco e quando ganhei consciência minha cabeça começou a inchar. Só que eu não tinha noção de que era algo grave. Não foi a maior dor da vida, sentia dor de cabeça, mas pensei ser do próprio impacto.
No dia seguinte, uma amiga acendeu um cigarro perto de mim e não senti o cheiro. Alguém me falou que eu deveria estar nervosa por causa do acidente.
Eu liguei para minha mãe, porque ia voltar a São Paulo e pedi para ela me levar a uma churrascaria, estava com vontade. Quando cheguei, peguei um pão de alho, coloquei na boca e não senti nada. Então, ela falou que eu precisava ir ao hospital. Meu pai ligou para o nosso médico da família e comecei a fazer todos os exames.
Umas duas horas depois, o doutor me ligou, disse que pediu para ver os exames, mas que não iria ao hospital porque tinha agenda familiar. Uma hora depois, ele liga novamente e fala: 'Então, estou indo aí para conversar com você'. Eu pensei: 'Ferrou'.
Chegando, o médico me disse que eu tinha tido traumatismo craniano: 'Seu crânio quebrou em três lugares diferentes e você não tem nada para fazer, tem só que se recuperar, ficar em repouso absoluto, nem mexer no celular, para o sangue que está solto no cérebro ser absorvido'.
Falei que não sentia cheiro e ele disse que os nervos foram destruídos, que eu perdi os sentidos. 'Mas por quanto tempo?', eu perguntei. Ele disse que era irreversível.
Foi um pânico absoluto, fui em vários médicos e eles me falaram quase a mesma coisa. Me explicaram que os nervos do olfato e paladar são como um fio de cabelo: se ele rompe parcialmente, tem como recompor, mas quando rompe 100%, não tem como reconectar. É como um fio de cabelo tirado da raiz, ele não gruda de novo.
Eu consultei um ou dois médicos que me deram seis meses para saber se ia ou não voltar, porque significaria que alguns dos nervos não teriam sido destruídos por completo. Não fiz nenhum tratamento. Me indicaram, mas não quis. Sou alérgica a remédio, não gosto. E, sinceramente, eu nem me arrependo, porque eu vi que, historicamente, quando acontece isso, a chance de voltar é muito pequena.
Mas, mesmo assim, foi ruim quando eu percebi que estava chegando o prazo que os médicos me deram e as coisas não melhoraram. Quando você tem o paladar e perde, é uma mudança muito brusca na sua vida. Da noite para o dia você come algo que não tem sabor.
O primeiro ano foi muito difícil e o curioso é que você só começa a perceber algumas coisas depois que perde. Você entende que só se lembra do que consegue cheirar ou comer.
Por muito anos usei um perfume, e eu não lembro mais do cheiro. Me explicaram que você não tem memória olfativa sem o olfato.
É muito estranho você parar de ter essas memórias porque não se lembra dos cheiros. Então eu tive que lidar com isso, foi algo que me deixou muito triste por muito tempo.
O relacionamento com o meu marido, na época noivo, foi um exemplo. Sem o olfato, você perde muito da sensação, o cheiro da pele. Por um período eu não tive nenhuma libido, porque o cheiro compõe a química, mas você vai se adaptando.
Além disso, muitas vezes eu acabava comendo coisas estragadas e ficava em uma situação desagradável. Você também não sabe se deixou o fogão ligado, porque não consegue sentir cheiro. É um pouco aflitivo, existia cheiro de gás e eu não tinha ideia. Eu fiquei até um pouco paranoica uma época, porque achava que tinha deixava ligado. Perfume eu passava duas, três vezes, porque não lembrava que tinha passado.
Eu sinto gostos primários: salgado, azedo, apimentado, doce. Por exemplo, eu sei se a torta é doce ou salgada, mas não sei se ela é de frango, de carne, de peixe. Sempre odiei curry, mas agora, se eu tiver comendo, não tenho a mínima ideia. Eu posso comer um quilo de wasabi [a raiz-forte japonesa, um tempero picante em pasta] que não percebo.
Com o tempo, comecei a me adaptar com a realidade. Já era a minha vida, eu não tinha mais tanta memória do quanto era bom, eu não lembro como era bom o cheiro do meu perfume, não lembro mais se o cheiro da pele do meu filho é tão bom.
Alguns comportamentos foram ruins no começo, depois eu fui me acostumando, e eu não lembro mais que não tenho os sentidos, para ser bem sincera. Só que as pessoas lembram, me perguntam e eu falo a respeito, mas não é algo que me entristece mais. O meu corpo se adaptou."
Sentidos trazem lembranças
Sentir um perfume, comer seu prato favorito. Nos cheiros e sabores cabem muitas memórias, por isso os sentidos são importantes para despertar lembranças e consequentemente bons ou maus sentimentos. O olfato e paladar também têm papéis protetores: impedem intoxicações por comidas, gases, aguçam a percepção quando algo está errado —como ao notar um incêndio.
"Uma boa ou má lembrança pode surgir exatamente quando se sente cheiros que existiam no passado. Por isso que a perda gera tristeza às pessoas", diz Renato Roithmann, presidente da ABORL-CCF (Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial). A redução do prazer causada pela ausência de paladar faz com que muitas pessoas deixem de comer, em alguns casos com restrição total.
Segundo Roithmann, o traumatismo craniano é a segunda principal causa de perda dos sentidos, que também ganharam destaque nos últimos anos como sintomas de alerta para a covid-19. O impacto cresce dependendo de quanto tempo a pessoa ficou desacordada ou demorou em procurar ajuda médica, explica o especialista.
As alterações também são sinais de alerta para condições neurogenerativas, como o Parkinson, e geralmente aparecem antes de outros sintomas clínicos característicos da doença.
A adaptação acontece (e a vida segue)
Um dos principais impactos da ageusia (perda do paladar) e anosmia (perda do olfato) é a deterioração das memórias olfativa e gustativa, como descreveu a empresária Fabiana Saad. Sem sentir sabor e cheiro, a lembrança de como eles eram vai embora. A "experiência" se dissipa, pois houve danos nos neurônios responsáveis por conectar as informações, por mais que o sentimento que os estímulos deixavam permaneça.
"A memória não foi perdida por inteira, mas a informação não chega da forma original [via gosto ou cheiro]. Uma pessoa pode descrever e a outra relembrar a sensação, mas não pela via olfativa, apenas pela descrição", explica o neurologista Ricardo Alvim, coordenador do setor no Hospital Mater Dei Salvador (BA).
Com o tempo, porém, a tendência é se adaptar. Isso acontece principalmente em idosos, que podem apresentar curva de perda dos sentidos a partir dos 50 anos. Nestes casos, é comum que exista diminuição gradual, pouco perceptível. "A pessoa se adapta justamente porque não percebe", diz a psicóloga Maria Angela Guimarães Feitosa, professora da UnB (Universidade de Brasília).
Quando a perda é abrupta, o sofrimento inicial tende a ser maior e o acompanhamento terapêutico ajuda, sobretudo a assimilar o novo contexto e lidar com a redução dos prazeres.
"A depressão, eventualmente ansiedade e outros sofrimentos podem ser abordados por psicólogos e psiquiatras com estratégias próprias. Isso não implica que o problema foi resolvido, e sim que a pessoa aprendeu a conviver. São terapias para dar repertório de enfrentamento, saber ter prazer por outras vias", explica Feitosa.
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