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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Ativistas têm saúde mental afetada; como lidar com as dores da luta?

Foto feita em Barcelona, na Espanha, mostra uma ativista do Greenpeace carregando uma réplica do planeta durante um protesto pelo clima - @clau78/The World"s Best Photo of #Photojournalism2020
Foto feita em Barcelona, na Espanha, mostra uma ativista do Greenpeace carregando uma réplica do planeta durante um protesto pelo clima Imagem: @clau78/The World's Best Photo of #Photojournalism2020

Joanna Roasio

Colaboração para o VivaBem

08/07/2022 04h00

Ativismo, segundo o dicionário, é a defesa de uma causa ou da transformação da sociedade por meio da ação. Só que ser ativista traz consigo implicações. Ataques, supressão emocional, exaustão e solidão são algumas dores que ele gera, mas não só. Fatalismo, ansiedade, sensação de impotência, um cérebro que não para, o peso da responsabilidade e expectativas. Como veremos a seguir, uma definição de dicionário não reflete por completo o que significa ser ativista.

Quando casos como a morte da jornalista Palestina Shireen Abu Akleh por um ataque de Israel ou o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips ganham a mídia, a comoção é imediata —e não poderia ser diferente. Mas para ativistas, notícias como essas são parte de sua realidade e para casos em que a causa se vincula a quem se é, a situação ganha ainda mais camadas. Quando não há como separar a vida pessoal da luta, todo espaço é de ação.

Joice dos Santos, psicóloga, mestranda em psicologia pela UFPI (Universidade Federal do Piauí) e ativista por questões de raça, gênero e sexualidade, aponta que paredes de colonialismo e patriarcado produziram uma casa preparada para impedir que pessoas pretas conquistassem espaços. Seu ativismo não veio, portanto, de forma consciente, mas do reconhecimento externo das suas ações enquanto políticas. Para ela, era sobre lutar por sobrevivência e vida dignas.

Diante de um cenário dessa proporção, a pergunta fundamental é: como uma pessoa pode cuidar das suas causas sem descuidar de si?

Existe um ser humano por trás do ativismo, uma pessoa de carne e osso e que sente. Voltar para o corpo pode, assim, ser um primeiro caminho na busca por estratégias de combate às dores do ativismo.

Voltar ao corpo significa ser capaz de se perceber e tangibilizar o que se está sentindo. Isso ajuda a combater o falatório mental que se instala quando as emoções atravessam e também a reconhecer a aproximação de uma emoção antes de ser tomado por ela.

A autopercepção ajuda, ainda, a construir certos limites, mesmo em casos em que não é possível se desvincular da luta. Hyatt Omar é voz da causa palestina nas mídias e redes e reconhece que o "hate" (ataques virtuais ou físicos) é algo que a deixa ansiosa. Por isso, recorreu à irmã na situação mais desgastante emocionalmente pela qual passou até hoje: a notícia do despejo ilegal de pessoas palestinas no distrito de Sheikh Jarrah. O pedido foi para que deletasse todas as mensagens de ódio recebidas antes que pudesse lê-las.

A psicóloga Santos é enfática ao pontuar que é importante e necessário para a saúde mental das pessoas, especialmente as ativistas, que elas lidem com o sofrimento. Para além das dores mencionadas, um processo doloroso não digerido tende a gerar outros desdobramentos como síndrome do pânico e até sintomas físicos como a fibromialgia.

Mas há quem apoie acolher essa dor e a ter como aliada. Esse é um conceito da ativista ambiental Joanna Macy, que possui uma atuação de anos com sua metodologia "O Trabalho que Reconecta", tendo trabalhado, por exemplo, junto à população impactada pelo acidente nuclear de Chernobyl. Para Macy, precisamos da dor para que ela nos alerte sobre o que precisa de atenção.

Cada emoção oferece uma oportunidade. O psicólogo americano Paul Ekmann é referência no estudo das emoções e um dos nomes por trás da elaboração do filme "Divertida Mente". Em sua leitura, a emoção tristeza vem com a função de falar "preciso de apoio, não consigo lidar sem ajuda".

O coletivo

Se falamos em transformação da sociedade, parece raso depositar a responsabilidade da busca por estratégias apenas nos indivíduos. "Se o mundo produz o seu adoecimento, é o mundo que precisa mudar", afirma Santos.

Hyatt Omar - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Hyatt Omar
Imagem: Arquivo pessoal

O senso de comunidade se manifesta a partir da criação de vínculos. Nesse sentido, ter pares por perto pode ser determinante no dia a dia de ativistas; ajuda a tirar o peso da luta e evita que se caia na supressão ou na exaustão emocional.

Foi essa uma das constatações da doutora em psicologia Isabel Keppler, em sua pesquisa sobre saúde e militância. Investigando as vivências de ativistas, ela percebeu que o espaço coletivo de um movimento social em si pode produzir cuidado. Com algumas ressalvas, experiências de pertencimento ajudam a fortalecer o indivíduo.

Ativista da causa palestina, Omar relata como foi essencial para sua saúde começar a dividir suas questões com sua rede de apoio. Para ela, o coletivo está na família e nas amizades que oferecem escuta e trazem prazer e inspiração.

O coletivo também se coloca quando uma pessoa ativista é capaz de aplicar o que a tradição africana nomeia como sankofa, o movimento de olhar para trás para reunir forças para avançar. A representação de sankofa é um pássaro que carrega no seu bico um ovo, o futuro, enquanto voa adiante, tendo a cabeça voltada para trás.

Nas palavras de Santos, a luta é um processo, demora para produzir frutos, o que pode ser difícil de suportar a longo prazo. Por isso ativistas ou adoecem ou desistem da luta. Praticar o sankofa é, então, uma maneira de entender que as conquistas de hoje são fruto do ativismo de outras pessoas, da mesma forma que o ativismo do presente renderá frutos no futuro.

Omar fala no conforto vindo da capacidade de se reconectar aos motivos pelos quais se faz o que se faz, em contraponto à solidão ou à pressão às vezes sentida por representar uma causa e precisar falar dela porque é o esperado, mesmo quando não está em um lugar emocionalmente saudável para isso.

Joice dos Santos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Joice dos Santos
Imagem: Arquivo pessoal

O coletivo está, ainda, nas novas propostas de ativismo que se fazem necessárias. O ativismo esteve e ainda está pautado em lideranças chamadas por Santos de messiânicas, isto é, centrado em figuras específicas que serão a cabeça da causa e, portanto, alvo de expectativas e raivas: Mandela, Martin Luther King, Malala Yousafzai, Dorothy Stang, Bruno Pereira. O perigo disso é não só a sobrecarga e o adoecimento pelo acúmulo de funções como o próprio risco de vida a que essas pessoas são expostas.

Além disso, lideranças messiânicas levam a sociedade civil a abrir mão das suas responsabilidades. A alternativa seria lideranças inspiradoras, que fazem circular o conhecimento e dividem responsabilidades, sem cabeças-chaves.

A raiva no seu lugar

Na mesma linha da tristeza, a raiva também apresenta um lado bom, que é o da energia, ação, até uma segurança de fazer o que tem que ser feito. "Muitas vezes, é a força motriz dos movimentos sociais, porque é com essa indignação que eu me movo para fazer alguma coisa funcionar. A raiva como emoção tem a função de tirar o obstáculo da frente, ela vem com essa energia de urgência, que é maravilhosa", diz Isabella Ianelli, pedagoga e professora do programa CEB (Cultivando o Equilíbrio Emocional, em tradução).

Ao mesmo tempo, o excesso dessa energia de ação pode causar um ofuscamento muito forte, chamado de período refratário (o momento exato da emoção). Por isso, é recomendável que não se faça nada quando a emoção ainda está ardendo. A raiva dentro do ativismo deve ser, como coloca Emicida, combustível e não estratégia.

A quem não é ativista

Às pessoas não ativistas, também cabem papéis nesse processo, como o de encarar e sustentar a dor do outro.

Lembrando que o Brasil é hostil a quem defende os direitos humanos. Segundo o relatório mais recente da ONG Global Witness, publicado em 2021, foram 20 assassinatos de ativistas de causas ambientais e do direito à terra documentados no país em 2020. Não é de se admirar que para ativistas, as dores sejam tão latentes.

Para quem não luta por uma causa, ao ver uma pessoa em situação de rua ou um entregador de aplicativo comendo no chão e não se solidarizar, lembre-se que a anestesia é um recurso quando há uma tristeza muito grande. Mas ao começar a olhar o outro como igual, nascem as condições para ajudá-lo no momento em que você puder, seja com voto, dinheiro ou se envolvendo em uma ação. Esse é o lembrete da humanidade em comum, segundo Ianelli.

Violências dialogam e alimentam umas às outras. Quando se entende isso, os processos de adoecimento deixam de ser individuais. Dentro dessa lógica, outros pontos trazidos entre as pessoas entrevistadas foram: proteger quem defende os direitos humanos e votar bem. O futuro é coletivo e o caminho até ele precisa ser sistêmico.

*Além das fontes citadas no texto, foram consultadas para a elaboração dessa reportagem: a gravação editada da conversa da ativista Joanna Macy para "O Lugar"; Isabel Keppler, doutora em psicologia pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e autora da pesquisa "Saúde e Militância: Reflexões a Partir da Escuta de Militantes"