Ele foi 2º brasileiro a sobreviver a transplante duplo de coração e pulmão
"Meu sonho era trabalhar e pagar um cardiologista para descobrir o que eu tinha." Dos 10 aos 18 anos, esse foi o maior desejo de Daniel Tales após desmaiar em uma partida de futebol. Com fama de preguiçoso, Daniel vivia cansado, só queria saber de dormir, sentia falta de ar e ficava roxo quando fazia um simples esforço físico, como arrumar o quarto ou correr para brincar com os amigos.
Em 2018, ele descobriu que tinha um tipo de cardiopatia grave, que, por não ter sido tratada adequadamente na infância, desencadeou uma síndrome que levou a um quadro de hipertensão pulmonar. Com coração e pulmão comprometidos, a única solução era fazer o transplante dos dois órgãos de uma única vez.
Em 7 de março de 2022, aos 23 anos, Daniel fez o transplante cardiopulmonar e se tornou o segundo paciente no Brasil a sobreviver, o primeiro em um procedimento realizado via SUS (Sistema Único de Saúde) pelo projeto de transplantes do Hospital Albert Einstein (SP) em parceria com o Ministério da Saúde, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde.
A seguir, o jovem de 24 anos, que se considera um milagre, compartilha sua história:
"Minha mãe conta que quando nasci fiquei 23 dias internado porque tinha dificuldade de respirar, não consegui mamar, ficava roxo e meus batimentos cardíacos eram fracos. Sem identificar o que eu tinha, os médicos me mandaram para casa, mas continuei ruim.
Minha mãe me levou a outro hospital e lá eles descobriram que eu tinha sopro no coração. O médico disse que ela não precisava se preocupar porque até eu fazer 9 anos, o 'buraquinho' no coração que causava esse sopro ia se fechar.
Minha mãe acreditou no que ele disse e nunca me levou em nenhum especialista para fazer acompanhamento.
Lembro que, desde pequeno, sempre tive muitas limitações para fazer qualquer atividade, uma delas era acordar cedo para ir à escola. Já acordava cansado, com a mão gelada e roxa, não conseguia prestar atenção na aula, só queria descansar e dormir.
Sentia essa mesma indisposição ao fazer as tarefas domésticas. Ao arrumar meu quarto, já ficava com falta de ar, roxo, me sentia esgotado fisicamente e não conseguia arrumar o restante da casa. Minha mãe ficava brava e me chamava de preguiçoso.
No começo, até tentava explicar que não era preguiça, que tinha dificuldade, que precisava fazer as coisas mais devagar, mas ouvi isso por tantos anos na minha família que cheguei a acreditar que era mesmo preguiçoso.
Aos 10 anos, sofri meu primeiro desmaio durante uma partida de futebol. Fui correr para pegar a bola quando senti meu coração disparar, não deu nem tempo de pedir ajuda, apaguei e acordei nos braços do meu irmão.
Sabia que tinha alguma coisa errada comigo, mas não sabia o que era. Daquele dia em diante, passei a ter um sonho que pedia a Deus em todas as minhas orações: ficar maior de idade, trabalhar e pagar um cardiologista para me examinar e descobrir o que tinha.
Ao longo dos anos, tive outros desmaios e evitava fazer tudo o que sabia que podia piorar minha situação. Não fazia aula de educação física, preferia participar de atividades e brincadeiras que pudesse fazer sentado, como jogos de cartas e de perguntas, e me tornei um apaixonado por livros.
Aos 15 anos, fui trabalhar como office boy, mas fui demitido após seis meses porque o chefe disse que eu fazia as entregas muito devagar. Aos 18, terminei os estudos, consegui um emprego como arrecadador de pedágio e estava aguardando a carência do plano de saúde para marcar um cardiologista, quando tive um episódio bem grave.
Estava indo trabalhar e acabei fazendo um esforço físico muito grande para subir um escadão que tem na rua de casa e correr para não perder o ônibus. Quando entrei, tive uma convulsão, urinei e defequei na calça.
O motorista me levou em um posto de saúde, mas fui muito mal atendido porque achavam que estava passando mal porque tinha bebido e me drogado.
Um mês depois, passei mal de novo, senti um cansaço e uma falta de ar mais do que o normal e fui ao hospital que atendia o convênio. Chegando lá, minha saturação estava em 54 —o normal é que uma pessoa com boas condições clínicas tenha saturação acima de 94. Me colocaram no oxigênio, fiz alguns exames e contei as limitações que tive durante toda a vida.
Foi constatado que continuava com sopro. O médico que me atendeu ficou surpreso que estivesse vivo, disse que meu caso era muito grave e que eles iriam me dar todo o suporte.
Quase chorei de alegria, pela primeira vez alguém estava se importando com meu problema e cuidando de mim.
Fui transferido para outro hospital e lá aconteceu uma situação inusitada. Como parte do tratamento, diariamente tomava 4 comprimidos do citrato de sildenafila, o famoso Viagra, remédio conhecido por ajudar na disfunção erétil. No meu caso, usava por questões relacionadas ao pulmão, mas acabava sofrendo com o efeito colateral indesejado, tinha dias que não dava nem para caminhar no corredor.
Certo dia a cardiologista conversou comigo, disse que era arriscado eu fazer sexo devido ao esforço físico para o meu coração. Ela me ensinou técnicas para ter relação sexual sem colocar minha vida em risco, fiquei morrendo de vergonha, mas prestei atenção.
A notícia do transplante
Após 21 dias internado, os médicos detalharam meu caso, disseram que meu sopro era devido a uma cardiopatia congênita, a comunicação interventricular (CIV), uma abertura na parede que divide os ventrículos direito e esquerdo, permitindo a passagem do sangue de um ventrículo a outro, quando este fluxo não deveria existir. Aquele 'buraquinho' que falaram que ia se fechar quando eu tinha anos, não se fechou.
Segundo os médicos, como esse problema no coração não foi tratado, meu pulmão teve que trabalhar três vezes mais para eu conseguir fazer as atividades que fazia, e acabei desenvolvendo a síndrome de Eisenmenger, definida como a forma mais avançada da hipertensão arterial pulmonar.
Ainda segundo os médicos, meu coração e pulmão estavam muito comprometidos, não viveria muito tempo com eles nesse estado, a única solução era fazer um transplante cardiopulmonar, ou seja, duplo.
Receber essa notícia, aos 18 anos, foi difícil, chorei muito e culpei minha família por ter negligenciado minha saúde.
Fui encaminhado ao Programa Einstein de Transplantes, único centro com programa de transplante cardiopulmonar ativo da América Latina. Lá, entrei para a fila do transplante cardiopulmonar e iniciei o tratamento que consistia em passar periodicamente nas consultas com cardiologista e pneumologista, fazer exames, usar oxigênio 24 horas por dia, tomar medicação e fazer fisioterapia respiratória três vezes por semana.
Fiquei quatro anos na fila do transplante, de 2018 a 2022. Nesse período, fui afastado do trabalho, minha ex-namorada terminou comigo, quase não tinha vida social, porque tinha vergonha de sair com o oxigênio.
Tinha medo de não fazer o transplante e morrer, mas também tinha medo de fazer e morrer —até então, pelo que já tinha escutado, todas as pessoas que já tinham feito o procedimento no Brasil pelo SUS tinham morrido.
Quase entrei em depressão e pensei em me matar, mas me apeguei a Deus e acreditei na promessa dele para mim.
No dia 7 de março de 2022 ligaram do Einstein falando que tinham recebido coração e pulmão que estavam disponíveis para mim. Fui para o centro cirúrgico com um misto de medo e alegria. Antes de tomar a anestesia, pedi que todos da equipe repetissem comigo, 'hoje é um bom dia para salvar vidas'. Eles repetiram e eu apaguei.
Acordei antes do esperado e, em menos de 24 horas, já estava respirando com meu pulmão novo, sem a ajuda de aparelhos. Não tive nenhuma intercorrência, minha evolução foi tão rápida que, com quatro dias, recebi alta da UTI e já estava andando pelo corredor. Com 14 dias fui para casa.
Minha recuperação surpreendeu e emocionou toda a equipe, teve um médico que chorou ao me ver, disse que eu era especial e tinha mudado a natureza do transplante cardiopulmonar.
Fui o primeiro paciente a sobreviver ao transplante duplo realizado pelo SUS. Sou um milagre, Deus usou os médicos para me curar.
Como um recém-transplantado, tomo todos os cuidados necessários com alimentação, evito aglomerações, faço acompanhamento e, atualmente, tomo cerca de 40 remédios por dia: o que me gera um custo mensal de R$ 1.600.
O transplante cardiopulmonar me deu uma nova chance de viver e de pensar no futuro. Tenho alguns sonhos e projetos, fazer faculdade de história, dar aula, me casar com a minha atual namorada, ter filhos, construir uma família e viver tranquilo e feliz."
Saiba mais sobre o transplante cardiopulmonar
O transplante cardiopulmonar é um procedimento cirúrgico para substituir, ao mesmo tempo, o coração e os pulmões de um paciente. Em geral, é indicado para pessoas com uma doença cardíaca que acabou prejudicando o pulmão ao longo dos anos.
Também é possível indicar o procedimento para uma pessoa que tenha uma doença pulmonar com necessidade de transplante e, ao mesmo tempo, uma doença cardíaca que também requer transplante.
Este é o mais complexo dos transplantes. O maior risco é o de rejeição dos dois órgãos. É necessária uma adaptação da nova circulação pulmonar a partir do procedimento. Os cuidados são os mesmos que qualquer transplante demanda do ponto de vista de infecção e de rejeição, como o uso de medicamentos imunossupressores, que ajudam o sistema imunológico a não rejeitar os novos órgãos e acompanhamento médico, e antibióticos, para prevenção de infecções.
Os benefícios envolvem mais qualidade de vida, a completa reabilitação da pessoa que, antes do transplante, geralmente tinha algumas limitações, como usar oxigênio e não conseguir praticar atividades; além de ter uma maior sobrevida.
Onde fazer?
O Einstein é o único centro com programa de transplante cardiopulmonar ativo da América Latina. No SUS, os atendimentos são feitos por meio do PROADI-SUS, em parceria com o Ministério da Saúde.
O Programa Einstein de Transplantes conta com especialistas médicos de diferentes áreas, e com uma equipe multiprofissional composta por assistente social, psicólogos, nutricionistas, enfermeiros e fisioterapeutas especializados no cuidado de pacientes do transplante.
Todos os pacientes que precisam ser submetidos a transplantes cardiopulmonares são regulados pelo Ministério da Saúde. Dessa forma, um paciente em qualquer lugar do Brasil que precise de um transplante de coração-pulmão é encaminhado para Central Estadual de Transplante, que organiza o encaminhamento para a Central Nacional de Transplantes, responsável por direcioná-lo.
Durante essas etapas, é possível avaliar se o caso pode ser tratado somente com o transplante pulmonar ou cardíaco e, nesses casos, direcionar somente o paciente que realmente necessitar do transplante cardiopulmonar.
Fontes: Fernando Bacal, coordenador do Programa de Insuficiência Cardíaca e Transplante do Einstein; e José Eduardo Afonso Júnior, coordenador médico do Programa de Transplantes do Einstein.
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