'Sinto dor o tempo todo há 17 meses, mas não tenho nenhuma lesão'
Comecei a sentir fortes dores na cabeça em janeiro de 2021, quando estávamos prestes a completar um ano de pandemia. Sempre sofri com dores, mas desta vez algo estava diferente —os remédios pararam de fazer efeito e a minha dor simplesmente não passou mais. Desde então, continuo a sentir dor todos os dias, o tempo inteiro.
Para ser considerada dor crônica, é preciso que tenha duração superior a três meses —no meu caso, já são 17 meses convivendo com a doença. Minha história pode soar bastante incomum, mas a verdade é que não sou a única. De acordo com a SBED (Sociedade Brasileira de Estudos da Dor), quase 40% da população brasileira convive com alguma dor crônica.
Naquela época, não tinha a menor ideia do que estava acontecendo comigo. Meu conhecimento era muito limitado e, apesar de todas as mulheres da minha família sentirem dor, nunca procurei saber mais a respeito do assunto. Passei então a peregrinar por uma quantidade indecente de médicos para descobrir o que tinha.
As dores não se restringiam apenas à minha cabeça —começaram a se mover para outras partes do corpo, como o pescoço, os ombros, as costas, os braços, as pernas e o rosto, e nenhum profissional conseguiu me dar qualquer resposta satisfatória.
Fiz dezenas de exames e testes apenas para descobrir que não havia nada alterado no meu corpo. Li e pesquisei tudo sobre o assunto, me intoxiquei com remédios variados, testei terapias convencionais e alternativas, comecei a fazer psicanálise, a me consultar com um psiquiatra e a praticar exercícios, mudei a minha alimentação, tentei tudo que estava ao meu alcance.
Tive crises de pânico e depressão. Mal conseguia sair de casa, e isso durou praticamente o ano inteiro.
Mas, se não havia nada de errado comigo, como poderia sentir tanta dor? Foi nesse período que entendi algo que mudou a minha perspectiva: a dor é uma interpretação do cérebro, e nem sempre está ligada a algum problema físico. Passei a enxergá-la como a própria doença, e não mais um sintoma de que algo em mim estava "quebrado".
Mas o que é dor?
Atualmente, a IASP (Associação Internacional para Estudos da Dor) define a dor como "uma experiência sensitiva e emocional desagradável associada a uma lesão tecidual real ou potencial", ou seja, não é preciso haver lesão para que sintamos dor.
Mas, primeiro, é preciso entender como funciona o mecanismo da dor no corpo. Ela é fundamental na nossa vida, já que se trata de um sinal de alerta que avisa o nosso cérebro que estamos em perigo, nos previne de lesões e ajuda a promover a cicatrização.
"Quando recebemos um estímulo externo, ele se transforma em um impulso elétrico que caminha por nervos até uma região específica do cérebro, onde o sinal será interpretado como bom ou ruim, de acordo com a nossa memória e as nossas emoções", explica Fernanda Fukushima, médica anestesiologista e professora da disciplina de dor e cuidados paliativos da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
Segundo ela, a dor pode ser dividida em três tipos: a nociceptiva, a neuropática e a nociplástica. "A dor nociceptiva é aquela que vem por estímulo do nociceptor presente na nossa pele, órgãos, músculos ou ossos, então está ligada a alguma lesão. Na dor neuropática, é o trajeto de um nervo que está comprometido e lesionado. Já no terceiro tipo, que é o mais desafiador, o local do cérebro que modula a intensidade da dor está no nível máximo, e não é preciso haver lesão. São as pessoas que são vistas como loucas, que estão com frescura ou inventando", afirma a professora.
Entre as características da dor nociplástica estão a maior amplitude da área de dor, que pode se mover pelo corpo com diferentes sensações, e o fato de vir acompanhada de outros sintomas como cansaço, alteração na memória e na concentração, distúrbio do sono, dificuldades de relacionamento, depressão e ansiedade.
Como o nome já diz, a dor nociplástica tem a ver com a neuroplasticidade do cérebro, ou seja, com a capacidade do órgão de se modificar. Ela pode ou não ter início com uma lesão, mas, quando se torna crônica, é provável que envolva também modificações no sistema nervoso central. Um caso clássico é a dor do membro fantasma, que atinge cerca de 90% dos indivíduos amputados. O membro não está mais ali, mas a pessoa continua a sentir dor no local.
"No caso da dor crônica, quando o estímulo doloroso se mantém por muito tempo, é como se o cérebro aprendesse e ficasse melhor ao sentir dor. A pessoa vai então desenvolvendo memórias ruins, ansiedade e medo, e essa receita faz com que o cérebro continue em alerta e a dor aumente", aponta Fernanda.
Segundo João Batista Santos Garcia, professor da disciplina de dor da UFMA (Universidade Federal do Maranhão), muitas vezes não é possível determinar a origem e a causa dessas dores e, por esse motivo, o diagnóstico é extremamente difícil. É o caso, por exemplo, da fibromialgia, síndrome de dor generalizada que atinge principalmente mulheres.
"Essas dores vêm acompanhadas de muitas alterações emocionais, e alguns profissionais acham que o paciente está inventando, que não quer trabalhar. Você é colocado à margem da sociedade porque é algo invisível, mas a dor não é imaginária, ela existe", explica.
A dor nunca é apenas física
Depois de tantos médicos e exames, parei de tentar encontrar uma resposta conclusiva para o que acontece comigo. Importante dizer que toda dor é real, e que ela não está na minha cabeça, apesar de ser fruto das interpretações do meu cérebro.
O que eu sinto é uma dor como qualquer outra e com uma intensidade muito alta, pior do que tudo que já senti antes. Mas, hoje, entendo a dor como uma experiência biopsicossocial —que envolve fatores biológicos, psicológicos e sociais.
Eu sei que minhas emoções, meus pensamentos e fatores como ansiedade, medo e estresse modulam a intensidade da minha dor. É como se meu cérebro acreditasse que está em perigo o tempo todo, e continuasse a enviar sinais dolorosos, apesar de não haver nada de errado no meu corpo.
É claro que tudo isso interfere profundamente na minha vida, na minha motivação, nas minhas relações e no meu trabalho, e ter profissionais me apoiando neste momento é fundamental para que eu consiga ser funcional.
"Dificilmente uma pessoa que tem dor crônica vai sentir isso apenas na parte física. Isso vai interferir e transformar a vida da pessoa, especialmente se ela tem uma vida ativa e, de repente, se vê com uma série de limitações", ensina Adrianna Loduca, professora da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e coordenadora do grupo de psicólogos pesquisadores do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Segundo ela, o trabalho com a saúde mental ajuda a pessoa a entender o momento que ela está passando, como o corpo dela tem reagido e o quanto a dor tem interferido na vida dela, além de identificar fatores que possam estar piorando esse quadro.
"Hoje sabemos da importância de uma pessoa com dor ter autoconhecimento e preservar a qualidade dos seus relacionamentos. Uma situação de constrangimento social, por exemplo, pode acionar as mesmas regiões do cérebro acionadas quando existe um estímulo que provoca dor", diz.
E o sistema de saúde com isso?
Apesar de atingir milhões de pessoas ao redor do mundo, ainda são poucos os profissionais que sabem lidar com o problema. Poucas vezes senti que os médicos realmente estavam me escutando, e que entendiam que se tratava de uma questão muito mais complexa do que fazer o tratamento X e Y ou tomar tal remédio.
"No Brasil, a avaliação e o tratamento da dor não estão presentes de forma sistematizada no currículo. O tratamento adequado e digno da dor passa primeiro por educação, seja do profissional, para avaliar e tratar melhor as síndromes dolorosas, seja do paciente, para que ele entenda o que está acontecendo com o seu corpo e consiga achar soluções e saídas", aponta Fernanda Fukushima, da Unesp.
De acordo com Garcia, da UFMA, são poucos os especialistas com formação em dor no Brasil, e esse problema começa na graduação. "Nem todos os cursos de medicina têm uma disciplina obrigatória de dor, e os pacientes acabam vivendo anos de sofrimento até encontrar profissionais adequados. Precisamos de um apoio governamental para ampliar os serviços de dor e fazer programas para educação da sociedade", diz.
Por se tratar de um problema extremamente complexo e ainda com poucas respostas, é preciso que o tratamento da dor crônica seja individualizado e multidisciplinar.
Atualmente, além da psicoterapia, participo de dois grupos para pessoas com dor, faço acompanhamento psiquiátrico, sessões de fisioterapia e pratico exercícios físicos, me alimento bem e tento manter a minha vida mais próxima do "normal" possível. Pode parecer estranho, mas parte fundamental do meu tratamento é me desafiar a fazer tudo que eu faria se não tivesse dor.
Sigo trabalhando, saindo com meus amigos e me engajando em atividades que me dão prazer, e são esses os momentos em que menos tenho dor. A ideia é que "treine" o meu cérebro para que ele se sinta seguro e, assim, diminua a intensidade da dor.
"Se o corpo aprendeu a fazer doer, ele também consegue aprender a melhorar. Esse é o trabalho do profissional que trata dor crônica: ajudar o corpo das pessoas a acalmar a dor", explica a professora da Unesp.
Apesar dos avanços nas pesquisas, ainda não há cura conhecida para a minha doença —mas existem uma série de estratégias para que eu possa lidar com ela. Alguns dias são ruins, e outros são melhores. Um dos caminhos que encontrei para não enlouquecer é compartilhar minha experiência com outras pessoas por meio de um blog e um instagram (@dadoreoutrosdemonios), o que faz com que eu não me sinta sozinha.
O que posso fazer agora é parar de lutar contra isso e fazer tudo que estiver dentro das minhas possibilidades. E, mais importante que tudo: aceitar que essa é a minha realidade —pelo menos por enquanto.
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