Em poucos dias, ela ficou com o corpo paralisado por causa de doença rara
Com dor nos dentes, fígado e outras partes do corpo, a secretária Sabrina Medeiros, 27, foi diagnosticada com uma doença rara pouco antes da pandemia de covid-19 explodir no Brasil. Os sintomas foram evoluindo e, por causa disso, ela ficou sem mexer o corpo do pescoço para baixo e permaneceu internada por vários meses na UTI. A seguir, ela conta como recebeu alta e o processo de reabilitação pelo qual passa até hoje.
"Antes de ter os primeiros sintomas, tinha uma vida normal. Trabalho desde os meus 18 anos, sou formada em secretariado executivo, tinha passado em um mestrado e tinha uma vida independente e ativa.
Um pouco antes da pandemia, comecei a sentir dor no dente, dores nas costas e também abdominal. Dei entrada no hospital no dia 2 de fevereiro e começaram a tratar, inicialmente, como uma infecção alimentar.
A dor era extremamente forte, um incômodo na região do fígado, como se estivesse apertando a barriga. Fiz diversos exames e deu uma pequena alteração no meu sangue.
Depois, tive uma consulta com um neurologista, que já tinha atendido casos de porfiria, e ele perguntou a cor da minha urina. Lembro que estava com uma cor preta, bem escura.
Ele deu o diagnóstico de porfiria, que é uma doença rara e que se confunde com outras enfermidades. Foi a primeira vez que ouvimos falar dessa condição e a minha era classificada como aguda intermitente.
Não tinha um diagnóstico fechado sobre o que gerou o problema no meu organismo. Acredita-se que foi provocado por uma infecção no meu dente, devido a um tratamento de canal mal feito.
Evolução da doença
Em poucos dias, a doença foi se desenvolvendo, tive convulsão e o mais severo de tudo foi quando comecei a perder a força muscular e parei de me mexer do pescoço para baixo. Fiquei imóvel e, devido à perda de força nos músculos, parei de andar e me alimentar.
No começo, estava intubada e me comunicava por meio dos olhos. Depois que tirei o acessório de intubação, fiz a traqueostomia, tentava falar, mas não conseguia nem sussurrar. Lembro que sentia muito calor, olhava para o cobertor e para meu namorado tentar entender.
Não tinha condições de ter alta e só fui piorando. Perdi 15 quilos ou até mais por causa disso. Fiquei muito magra, sem forças e permaneci dois meses na UTI.
Não apaguei em nenhum momento e a parte neurológica não foi afetada. Era uma consciente orientada, como os médicos diziam. Tive somente dois episódios de convulsão, mas sem nenhum dano neurológico.
Existe uma lista de medicamentos que pacientes que têm porfiria não podem tomar e, como no início tratavam meu caso como infecção alimentar, não podia tomar alguns medicamentos básicos como dipirona, Plasil, Dramin e mesmo assim acabei consumindo. Acredito que essas medicações tenham piorado a situação.
Ela não acreditava na melhora
Todos os dias era difícil de acreditar que ia me recuperar. Pensava que não ia mais sair dali. A partir do momento que a doença começou a agravar, bateu um certo desespero, principalmente quando não conseguia mais me mexer. Acreditei que ia morrer e chorava muito.
Para me tranquilizar, minha mãe buscou saber a história de outros pacientes que se recuperaram e, naquele momento, comecei a acreditar que ia melhorar e que aquilo ia ser temporário.
Dos quatro meses que permaneci internada, dois meses e meio foram na UTI. Antes da pandemia, tinha direito a ter uma visita todo dia, e que podia se revezar a cada 12 horas. Porém, depois mudou, por causa dos protocolos de saúde. Foi feito um revezamento entre minha mãe, irmãos, meu namorado, tias e primos.
Lembro que ouvia tudo e uma vez escutei enfermeiros conversando, e um deles disse que admirava meu namorado por estar sempre ali, todos os dias —ele era o que ficava mais tempo comigo. Eles diziam que tinha marido que nem ia ver a esposa e ele estava ali, a todo momento, desde a internação até a minha reabilitação.
Melhora e recuperação
O processo da alta aconteceu devido à pandemia. Havia me recuperado um pouco, e como a covid-19 estava avançada, era mais seguro continuar minha reabilitação em casa. A partir de junho, iniciei a fisioterapia já na minha residência. Também comecei um acompanhamento neurológico em outro hospital.
Na fisioterapia, foi dolorido, por questão de atrofia mesmo, mas é uma evolução muito grande. Hoje em dia são pouquíssimas coisas que não consigo fazer sozinha. Ano passado, a médica me liberou para fazer academia.
Minha recuperação tem sido gigantesca e, hoje em dia, preciso de pouca ajuda. Consegui recuperar quase todo o peso que havia perdido e já não uso nenhum tipo de medicação. O tratamento da porfiria é feito com mudanças na rotina, alimentação e acompanhamento médico.
Hoje me consulto com hematologistas, neurologistas, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. Esporadicamente, com ortopedista."
O que é porfiria?
As porfirias são um grupo de doenças metabólicas raras e complexas causadas principalmente por uma desregulação hereditária. Cada uma delas representa um defeito em uma das oito enzimas da via da biossíntese do heme, resultando no acúmulo de compostos orgânicos, ou intermediários da via, chamados de porfirinas.
O grupo heme é produzido em todos os tecidos animais, principalmente na medula óssea e no fígado, e é importante para o transporte do oxigênio. Cerca de 80% deste grupo está presente na hemoglobina, que fica nas hemácias e é conhecida por carregar o oxigênio para os tecidos do corpo.
Considerada rara, a incidência e prevalência das porfirias são desconhecidas e somente uma parcela da população desenvolve os sintomas. A forma mais prevalente e comum de todas é a porfiria aguda intermitente.
A doença é dividida em dois grandes grupos: porfirias cutâneas e não cutâneas. Nesta última, é classificada como porfiria aguda intermitente e também chamada porfiria deficiência de ALA desidratase. Já na forma cutânea existem tipos conhecidos como porfiria tardia, porfiria hepatoeritropoiética, porfiria variegata, coproporfiria hereditária, porfiria eritropoiética congênita, protoporfiria eritropoiética e protoporfiria cromossômica dominante.
Os sintomas podem variar de acordo com cada tipo de porfiria. Algumas formas apresentam períodos de crises, ou também chamados de ataques dos sintomas e são intercalados por fases com sinais menos proeminentes ou imperceptíveis.
Nas crises, os sinais e sintomas das porfirias agudas envolvem o sistema nervoso, abdome ou ambos (neurovisceral). Geralmente, esses episódios demoram horas ou dias para se instalar e podem durar muitas semanas. Nas mulheres, podem ter relação com o período menstrual.
Os sinais da doença, muitas vezes, não são específicos no início da crise e podem aparecer como insônia, fadiga, constipação intestinal e uma sensação descrita como uma dificuldade de raciocínio. Depois desta fase, os pacientes costumam ter uma dor abdominal intensa e vômitos, muitas vezes confundidos com cólica renal, apendicite e pedras na vesícula.
Os pacientes podem, ainda, apresentar fraqueza que, geralmente, começa nas pernas e nos braços, mas podem estar presentes de maneira generalizada e até levar a insuficiência respiratória. A neuropatia axonal motora pode ser muito grave e com duração extremamente prolongada em alguns casos.
Sintomas como cefaleia, formigamento, alterações do humor neuropsiquiátricas e crises epilépticas também podem ocorrer neste período
Ainda não há cura, mas tratamentos específicos para o problema. A terapia inicial ocorre para identificar a presença de um possível agente desencadeante da crise e remover ou minimizar os efeitos como aporte calórico, carboidratos de cadeia longa, retirada de medicamentos e tratamentos de infecções.
Já para tratar a dor, deverá ser feito com medicamentos que não tenham potencial de piora dos sintomas. Em alguns casos, é preciso realizar procedimentos cirúrgicos abdominais de repetição. Também é recomendado fazer um acompanhamento com hematologistas, neurologistas ou dermatologistas, neste caso quando o problema é na pele.
Nos casos de apresentação cutânea, deve-se evitar exposição solar ou, na impossibilidade, proteger as áreas com roupas ou protetores solares com elevado fator de proteção.
Fontes: Leonardo Valente, neurologista e professor do curso de medicina na PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) e Guilherme Perini, hematologista do Hospital Israelita Albert Einstein (SP).
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