'Pandemia destruiu meu casamento': os traumas indiretos ligados à covid-19
O olhar apavorado de seus colegas de trabalho no Hospital Estadual do Acre durante a fase mais crítica da pandemia ainda está vivo nas memórias da enfermeira Carla Bibiane, 46. Havia o medo de lidar com uma doença até então desconhecida e a ansiedade acerca do que poderia suceder a cada plantão.
Para ela, no entanto, a situação responsável por criar suas lembranças mais traumáticas sobre a crise sanitária aconteceu fora do trabalho. "Lembro com detalhes do dia em que eu levei meu marido, uma pessoa com câncer, a uma consulta e o médico orientou que a gente não morasse mais juntos", conta. "Entramos na clínica de mãos dadas e saímos separados. Depois desse dia, nunca mais fomos marido e mulher."
De acordo com Dorisdaia Humerez, coordenadora da Comissão Nacional de Saúde Mental do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), profissionais da saúde experimentaram grande sofrimento mental com o afastamento de seus entes queridos durante a pandemia. Muitos só se sentiram seguros para voltar a dividir o mesmo teto com seus familiares após o início da campanha de vacinação no Brasil, em janeiro de 2021. Em outros casos, porém, o afastamento temporário se transformou em separação definitiva.
Antes conhecida por sua personalidade atenciosa no trabalho, Carla se viu gritando com colegas e sendo grossa com os pacientes após o acontecimento, além de se deparar com dificuldades para dormir e alterações em seu peso. Ela, que também é coordenadora administrativa e assistencial no centro cirúrgico do Hospital do Rim, no Acre, cogitou desistir da carreira.
Eu tinha muito medo de pegar covid e matar meu marido. Isso não aconteceu. Mesmo assim, a pandemia roubou o que era mais precioso para mim, que é a minha família.
A enfermeira considera que a ruptura do arranjo familiar foi uma consequência indireta da pandemia e foi mais traumática do que sua própria experiência profissional durante a crise sanitária.
Enquanto a maioria dos enfermeiros ficaram impactados pelo trauma do atendimento aos pacientes com covid, a morte e o luto já eram uma vivência comum para mim nos centros cirúrgicos. O que não era comum era eu não ter para onde voltar no final do dia, porque ser enfermeira na pandemia acabou aumentando minha ausência em casa e destruindo meu casamento.
Diagnosticada com transtorno de estresse pós-traumático, ou TEPT, em janeiro deste ano, atualmente Carla recebe tratamento psiquiátrico e psicológico para lidar com alguns dos sintomas que ainda prejudicam sua qualidade de vida, como memórias recorrentes e perturbadoras sobre a pandemia. "Se não fosse o tratamento, eu teria chegado à agonia do suicídio", analisa.
Incidência de TEPT aumentou
O psiquiatra Michel Haddad, do HSPE/IAMSPE (Hospital do Servidor Público Estadual) e pesquisador do departamento de psiquiatria da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), afirma que o número de diagnósticos de TEPT cresceu desde o início da pandemia de covid-19.
O cenário já era previsto pelos especialistas: evidências científicas demonstram que, embora cerca de 80% das pessoas se recuperem no primeiro mês após um evento traumático sem consequências de longo prazo, em uma epidemia de larga escala, como a do coronavírus, traumas emocionais duradouros podem surgir, principalmente entre profissionais da saúde.
As reações vão depender da forma como cada um enxerga a situação traumática, mas a predisposição genética para desenvolver transtornos mentais também conta.
No geral, o TEPT é caracterizado por sintomas como:
- Memórias recorrentes, involuntárias e perturbadoras do evento traumático;
- Pesadelos recorrentes com o evento;
- Agir ou sentir como se o evento estivesse acontecendo de novo, desde flashbacks até perda total de consciência do ambiente atual;
- Evitar pessoas, lugares, atividades e situações associadas ao evento ou que desencadeiam memórias do episódio traumático;
- Mudanças negativas no humor;
- Alterações de sono, irritabilidade e falta de apetite;
- Hipervigilância (estado de alerta extremo).
No contexto pandêmico, estudos apresentam uma prevalência de 10 a 15% de TEPT em indivíduos que foram hospitalizados por causa da doença, aponta o médico psiquiatra Rodolfo Furlan Damiano, da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Mas a infecção pelo vírus não é o único fator que originou quadros do transtorno associados à pandemia. Em fevereiro do ano passado, um estudo já alertava para o fato de que as angústias causadas pela crise sanitária também poderiam levar a sintomas do problema. Exemplos citados pela pesquisa clínica foram o medo de pegar a doença ou passá-la adiante e o contato indireto com a covid-19, como o consumo excessivo de notícias e o isolamento social.
"Um soldado que está na guerra não precisa necessariamente ter passado por um combate ou ter sofrido uma quase morte para desenvolver estresse pós-traumático. Só o fato de ele estar lá na guerra já pode causar o quadro", compara Leonardo Tavares, neuropsiquiatra e professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
'Ainda não consegui parar de higienizar embalagens'
A ex-motorista de aplicativo Cecília*, 43, e seus entes queridos não pegaram covid-19. No entanto, por ter acompanhado de perto a morte de sua cunhada pelo vírus H1N1 (causador da "gripe suína"), em 2010, a profissional autônoma entrou em pânico quando os primeiros casos de coronavírus foram notificados no Brasil, 12 anos mais tarde.
"Tinha medo de morrer e deixar meu filho e meu esposo", diz. "Sentia dificuldades para dormir e ficava sempre focada na quantidade de mortes e nos nomes dos mortos por covid na minha cidade."
Quando voltava das poucas idas ao mercado, tanto ela quanto o marido e o filho deixavam os sapatos no portão e tomavam banho antes de circularem pela residência. Também higienizavam as compras com álcool em gel.
Dois anos após o início da pandemia, no entanto, os hábitos ainda permanecem incorporados à rotina de Cecília, ainda que higienizar embalagens, por exemplo, não seja mais um método considerado eficaz para evitar a doença —os mais eficazes são a vacinação e o uso de máscaras em ambientes fechados.
"Eu já deixo meu filho trazer amigos em casa e também já fomos em pizzaria e festa junina, mas ainda não abandonei os outros hábitos", diz.
Segundo Cecília, apesar dos desafios que ainda precisa superar, o medo não lhe paralisa com a mesma intensidade do que antes. A ex-motorista, que já tratava um quadro de depressão antes de receber o diagnóstico clínico de TEPT, atribui esses avanços no cotidiano familiar ao tratamento psicológico que recebeu para lidar melhor com os sintomas do transtorno.
Novas abordagens como tratamento
Embora o tratamento para o TEPT muitas vezes também envolva medicamentos, a psicoterapia é considerada a principal opção, pois ajuda a pessoa a lidar melhor com o trauma, reduzindo sintomas como ansiedade, estresse e insônia.
A pesquisadora Érica Panzani Duran, do Instituto de Ciências da Saúde da UFBA, está tentando descobrir se haveria uma abordagem mais eficaz no tratamento de pessoas que desenvolveram o distúrbio por causa da pandemia. Sua pesquisa de doutorado, iniciada em 2021, quer testar três métodos de psicoterapia (terapia cognitiva processual, mindfulness e psicoterapia positiva) neste grupo-alvo durante três meses e, depois, avaliar os participantes após um ano.
Quem perdeu entes queridos para a doença tende a apresentar os sintomas mais graves, de acordo com a psicoterapeuta. Fatores indiretamente associados à pandemia, como o aumento de brigas conjugais, separações e a violência doméstica, também são apontados como possíveis desencadeadores do transtorno.
Se tratado, o TEPT é considerado um quadro reversível. "Às vezes, é difícil buscar ajuda. Mas é o único caminho para lidar com a dor", diz a enfermeira Carla Bibiane.
*O nome da entrevistada foi alterado para preservar sua identidade.
Fontes: Maria Amélia Penido, professora de terapia cognitivo-comportamental na PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro); Irismar Reis, psiquiatra e terapeuta cognitivo, professor aposentado do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da UFBA (Universidade Federal da Bahia); Lina Sue Matsumoto, psicóloga e pesquisadora do Instituto de Psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo.
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