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'Puxava fio da toalha e comia': transtorno faz ingerir coisas incomestíveis

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Imagem: iStock

Flávia Santucci

Colaboração para o VivaBem

19/08/2022 04h00

Pouco conhecida e ainda pouco estudada, a alotriofagia é um transtorno alimentar sério, geralmente decorrente de carência nutricional, como a falta de ferro e zinco, principalmente. A doença se caracteriza pela ingestão de substâncias que não são comestíveis e, na maioria das vezes, a pessoa que sofre desse transtorno sabe que não pode comer aquilo.

Na alotriofagia, o indivíduo ingere coisas como papel, sabonete, terra, moedas, amido cru, giz, carvão, gelo, cosméticos, pilha, isopor, baterias e tijolo, por exemplo.

"A característica essencial é a ingestão de substâncias ou objetos sem capacidade nutricional ou componentes de outros alimentos elaborados", explica Ediwyrton de Freitas Barros, psiquiatra e chefe da Unidade de Atenção Psicossocial do Hospital Universitário da UFPI (Universidade Federal do Piauí).

Basta uma rápida busca em fóruns ou sites na internet para encontrar centenas de casos de pessoas que confessam anonimamente ter o costume regular de comer o que não é comestível. Quem tem o hábito tem vergonha de falar no assunto.

Antônio*, 43, lembra que quando era criança, comia pedacinhos de uma espuma que a avó guardava no guarda-roupas e também comia areia toda vez que brincava no parquinho próximo à casa que morava. "Eu lambia o dedo, grudava a areia e comia. Devia ter uns 6, 7 anos. E também tirava uns pedacinhos de uma espuma que minha avó guardava e comia." O hábito, ele conta, sumiu conforme foi crescendo.

Alexandre*, 36, também passou pelo mesmo problema na infância. Ele se lembra de comer fiapinhos de toalha todas as vezes que saia do banho. "Puxava o fio da toalha e comia enquanto me enxugava", conta.

Transtorno é mais comum na infância

Também chamada de síndrome da pica, por conta de uma espécie de pássaro conhecida como P. Pica, que se alimenta do que vê pela frente, a alotriofagia acomete, principalmente, crianças de 1 a 6 anos.

Pediatra pela Sociedade Brasileira de Pediatria, Paulo Telles explica que o transtorno ocorre em 25% a 33% das crianças pequenas e em 20% das crianças atendidas em clínicas de saúde mental. A tendência é que o distúrbio desapareça conforme a criança cresce.

"No início da fase alimentar, por volta de quatro a seis meses, as crianças começam com um dos sinais iniciais de prontidão alimentar, que é pegar tudo e levar a boca. É uma forma de explorar o mundo. As crianças são naturalmente curiosas e a boca acaba sendo a porta de entrada para novas descobertas e explorar tudo que está ao seu redor", diz Telles.

Segundo ele, é normal que crianças de até dois anos coloquem coisas na boca, portanto, o comportamento geralmente não é considerado um transtorno até essa idade.

Família e pediatra devem ficar em alerta se a criança come itens não alimentares e tem feito isso há pelo menos um mês, o comportamento não é normal para a idade ou estágio de desenvolvimento da criança ou a criança tem fatores de risco para pica, como atraso do desenvolvimento, transtorno comportamental ou déficit de desenvolvimento cognitivo.

mulher grávida triste - globalmoments/Getty Images/iStockphoto - globalmoments/Getty Images/iStockphoto
Alotriofagia afeta grávidas, que começam a ter vontade de ingerir coisas que não são alimentos
Imagem: globalmoments/Getty Images/iStockphoto

Grávidas e déficit nutricional

Além das crianças, o transtorno também pode ser frequente em mulheres grávidas e pessoas com déficit de vitaminas e minerais de diferentes faixas etárias, ou ainda quem tem comportamentos característicos de depressão, ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo (TOC) e esquizofrenia.

"É importante avaliar se o comportamento não se trata de um sintoma de outro adoecimento, como no caso da esquizofrenia, em que a pessoa pode comer substâncias sem valor nutritivo pela incapacidade de diferenciar o certo do errado", alerta Higor Caldato, médico pelo ITAC/FAHESA (Instituto Tocantinense Presidente Antônio Carlos) e psiquiatra especialista em psicoterapia e transtornos alimentares pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

A incidência em relação a esse transtorno também é pouco estudada. "Entre indivíduos com deficiência intelectual, a prevalência de pica parece aumentar com a gravidade da condição", diz o especialista.

Segundo Caldato, a alotriofagia pode comprometer o bem-estar emocional do indivíduo, pois esse comportamento acontece de forma persistente, podendo apresentar-se de maneira compulsiva e de difícil controle.

Riscos vão de obstrução intestinal à morte

Segundo Barros, os riscos e prejuízos da alotriofagia estão ligados à natureza, frequência e quantidade de objetos ingeridos.

"Ingestão de moedas, pedras, materiais sólidos e não digeríveis podem provocar obstrução intestinal, o que pode se tornar uma emergência cirúrgica grave", diz ele. Da mesma forma, a ingestão copiosa de gelo pode provocar perfuração gástrica e, também, configurar uma emergência cirúrgica. Ingestão de produtos potencialmente tóxicos, como plásticos, plantas, terra, podem carregar consigo, além do risco de obstrução, o risco de intoxicação e infecções associadas.

Cirurgião do aparelho digestivo pela Faculdade de Ciências Médicas da Paraíba, Rodrigo Barbosa diz que o transtorno ainda pode matar, pelos aditivos químicos e a intoxicação exógena, já que essas substâncias podem corroer o trato gastrointestinal e causar também intoxicação sanguínea.

"Qualquer coisa que não seja alimento e seja ingerida é perigoso. Se não é comida, não pode entrar no trato intestinal", alerta Barbosa.

O problema ainda provoca sofrimento mental, já que pode provocar sentimento de culpa, rebaixamento do estado de humor e isolamento social, de acordo com a psicóloga Alecrides Marques Alencar, especialista em análise comportamental clínica, do HUUnivasf (Hospital Universitário da Universidade Federal do Vale do São Francisco), vinculado à Rede Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares).

Pessoas que convivem com indivíduos que sofrem de alotriofagia também podem apresentar culpa, além de conflitos de convivência e críticas.

"A família também sofre com o adoecimento, uma vez que toda a rotina doméstica precisa ser revista. Além disto, o medo de que algo de mais grave aconteça faz com que os familiares também desenvolvam sintomas ansiosos e depressivos", ressalta Monica Machado, psicóloga pela USP (Universidade de São Paulo) com especialização em psicanálise e saúde mental pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein.

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Transtorno é muito comum em crianças
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Diagnóstico e tratamento

A avaliação médica é fundamental, inclusive para casos em que seja provocado por questões orgânicas, como o déficit nutricional. "Essa avaliação médica pode ser somada à avaliação de psicologia para definição do modo de acompanhamento psicológico melhor indicado em prol do benefício terapêutico", diz a psicóloga Alecrides Marques Alencar.

O diagnóstico é realizado por um médico, que, em um primeiro momento, realiza exames clínicos para descartar algum outro tipo de doença. "Na ausência de patologias clínicas, o transtorno mental é considerado", diz Monica Machado, psicóloga pela USP (Universidade de São Paulo) com especialização em psicanálise e saúde mental pelo Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein.

Existem várias formas de tratar o problema, incluindo abordagens nutricionais, psicológicas, farmacológicas, comportamentais. "No caso das crianças, o pediatra deve avaliar os hábitos alimentares e também realizar exames de sangue para identificar as deficiências nutricionais e, dessa forma, conseguir corrigir algum déficit ou carência nutricional que possam levar à pica, iniciando a suplementação de vitaminas e minerais", diz o pediatra.

Adultos que sofrem de alotriofagia também têm tratamento individualizado de acordo com a causa. "A suplementação vitamínica e a psicoterapia estão presentes nos mais diversos casos. Não há um medicamento específico, mas remédios podem ser usados para tratar infecções ou problemas gástricos, por exemplo, que podem estar presentes nessa condição", diz Caldato.

Segundo Monica Machado, a psicoterapia pode auxiliar no tratamento, pois ajuda o paciente a compreender e manejar pensamentos distorcidos que levam ao comportamento disfuncional.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.