Ela achou que tinha gastrite, mas descobriu tumor maligno raro no pâncreas
Enquanto a maior parte dos casos de câncer está relacionada a fatores como genética e falta de um estilo de vida saudável, alguns tumores também podem surgir sem motivo aparente, entre pessoas saudáveis e que não têm casos da doença na família.
Sem comorbidades nem histórico de mutações hereditárias, a professora de dança do ventre Bruna Lemes, 25, decidiu procurar ajuda médica após ter crises de diarreia e perder cerca de seis quilos em poucos meses. No dia 13 de agosto de 2020, veio a surpresa: os sintomas, fáceis de serem confundidos com os de outras doenças, eram sinais da presença de um tumor raro que havia surgido no pâncreas.
"No final de 2019, também senti dores abdominais e cheguei a ir ao gastro, que me passou remédios para dor e pediu para que eu fizesse uma endoscopia, mas acabei não fazendo o exame na época, porque nunca imaginei que pudesse ser câncer. Pensei que fosse gastrite", lembra a estudante de administração.
O diagnóstico oficial ocorreu por meio de exames PET Scan e tomografias. O laudo de Bruna mostrou que ela estava com tumores neuroendócrinos, um tipo de câncer considerado muito raro. Estima-se que representem menos de 2% dos casos da doença e que afetem 1 a cada 100 mil pessoas.
As causas exatas por trás desses tumores ainda são pouco conhecidas pela ciência. Embora exista a possibilidade de estarem relacionados a algumas síndromes hereditárias, como as neoplasias endócrinas múltiplas (NEM—1 e NEM-2) e a síndrome de Von Hippel-Lindau, a maior parte deles é considerada esporádica, ou seja, não tem nenhuma associação com herança genética.
Ninguém da minha família tinha tido câncer antes de mim.
"Os tumores neuroendócrinos podem aparecer em praticamente qualquer parte do corpo, mas são mais comuns no trato gastrointestinal [da boca ao ânus]. Eles recebem esse nome porque têm origem nas células neuroendócrinas, responsáveis pela produção de hormônios no nosso organismo", explica a cirurgiã oncológica Jacqueline Nunes de Menezes, do Hospital A.C.Camargo, que acompanhou o caso de Bruna.
Alguns desses tumores produzem hormônios em excesso (são os chamados "tumores funcionantes"), enquanto outros não produzem nenhuma substância (os "não funcionantes"). Os funcionantes, segundo Menezes, podem causar sintomas como diarreia, broncoespasmo e rubor facial. Já os não funcionantes apresentam sintomas muito inespecíficos, como dores abdominais, anemia e sangramento nas fezes, o que pode confundir o paciente e atrasar o diagnóstico.
"É um tumor raro, mas tanto a população geral quanto os médicos devem ficar atentos aos sintomas para que seja feita a investigação, principalmente quando os sinais são persistentes", alerta a médica.
Câncer silencioso e em meio ao luto
Quando Bruna foi diagnosticada com câncer, tinha 23 anos de idade e cursava o segundo ano do curso de administração. A doença já estava em um estágio avançado: o tumor teve origem no corpo e cauda de seu pâncreas, mas já tinha se espalhado para o fígado e para o peritônio (membrana que recobre as paredes do abdome e a superfície dos órgãos digestivos).
É comum que o diagnóstico de tumores neuroendócrinos aconteça em um contexto em que o câncer já se espalhou para outros órgãos, processo conhecido como metástase. Segundo Menezes, entre 60% a 90% dos tumores neuroendócrinos localizados no pâncreas, por exemplo, são silenciosos, e só começam a causar sintomas quando já alcançaram o fígado.
Muitas vezes, conta a médica, o paciente faz um exame de check-up e, por acaso, detecta o tumor. A boa notícia é que esse tipo de câncer costuma ter um grau de agressividade menor em relação a outros —embora alguns possam evoluir rapidamente.
Não existe uma estratégia de rastreamento para esse tipo de tumor. A melhor forma de ter um bom desfecho é o paciente buscar atendimento sempre que houver sintoma suspeito e seguir as orientações do médico. Também é importante que não só o oncologista, mas qualquer médico, saiba da existência dos tumores neuroendócrinos, peça os exames de imagem e, se for confirmada a suspeita, encaminhe a pessoa para um centro oncológico de referência. Marcus Lindote, que também é cirurgião oncológico do A.C Camargo.
Segundo a Sociedade Brasileira de Patologia, os tumores neuroendócrinos são graduados como G1, G2 ou G3, com base na atividade proliferativa. O tumor de Bruna foi classificado pelos médicos como G2.
A jovem passou por 11 ciclos de quimioterapia oral ao longo de quase um ano. O segundo passo do tratamento, concretizado no dia 20 de julho de 2021, foi uma cirurgia com duração de cerca de oito horas, que incluiu a remoção do corpo e cauda do pâncreas, além do baço e de algumas lesões no peritônio e no fígado.
É muito difícil quando você começa o tratamento contra um câncer, porque não sabe onde vai dar nem quando vai acabar. Justamente pelo grau em que o meu tumor estava, ficar sem parte dos tumores era um pensamento muito distante. A cirurgia foi um sopro de esperança.
Um imprevisto burocrático, contudo, atrasou a realização da segunda intervenção cirúrgica, que estava marcada para o dia 22 de fevereiro deste ano. O objetivo da operação era retirar o restante dos tumores no fígado que não puderam ser removidos no procedimento anterior. Sem explicar o motivo, contudo, o plano de saúde de Bruna não liberou o uso de um dos instrumentos cirúrgicos necessários para a operação.
A dançarina, no entanto, afirma ter enxergado um "propósito maior" por trás do cancelamento inesperado: cinco dias mais tarde, seu namorado, um jovem piloto com quem estava há quatro anos, morreu em um acidente trágico de avião: "Eu acredito que, se tivesse feito a cirurgia naquele dia, ninguém me contaria o que tinha acontecido, para não atrapalhar o pós-operatório. E eu não teria tido a oportunidade de me despedir dele, nem de passar os seus últimos dias de vida ao lado dele."
A cirurgia foi remarcada para o dia 21 de março de 2021. De volta ao hospital, a expectativa em torno dos resultados se misturou à dor do luto: "Minha vontade era parar o tratamento. Mas eu segui pelo Renan, que esteve comigo e me apoiou em cada passo desde o diagnóstico", diz.
'Recomeço'
Bruna não tinha o perfil etário mais esperado para o diagnóstico de tumores neuroendócrinos: esse tipo de câncer é mais comum em pessoas de 50 a 60 anos. Mas, se ela fosse uma idosa com comorbidades, por exemplo, provavelmente não teria sido submetida à segunda cirurgia. O procedimento, denominado ALLPPS, é uma técnica avançada destinada a pacientes que, como era o caso da dançarina, têm metástases no fígado.
"No primeiro momento, tiramos as lesões do lado esquerdo do fígado e, depois, separamos o lado direito e esquerdo do órgão", explica o cirurgião oncológico André Luis de Godoy, que chefiou a equipe responsável pelas duas operações que retiraram os tumores de Bruna. "Em seguida, é feita uma ligadura com uma veia direita para que o lado esquerdo possa se regenerar. No caso da Bruna, depois de 12 dias retiramos o lado direito, onde tinha uma quantidade maior de lesões", conta o médico.
Uma série de fatores levaram a equipe médica a apostar na alternativa complexa para o caso da jovem, como a sua idade, a ausência de comorbidades e a presença de uma rede de apoio —pacientes que ficam sem companhia no pós-operatório tendem a evoluir mal.
Mas nem por isso o procedimento foi fácil. "O fígado é um órgão vital, com múltiplas funções e extremamente irrigado, então o risco de sangramento e outras complicações em cirurgias hepáticas sempre é alto. Além disso, ela tinha múltiplos nódulos extensos, difusos e profundos", relembra Godoy.
Apesar dos desafios, a cirurgia foi considerada um sucesso pelos médicos. Bruna conta que receber a notícia de que estava sem nenhum sinal de câncer foi como "se Deus trouxesse alegria de volta" a ela e sua família, em meio ao luto que viviam.
Desde então, não foi mais encontrado nenhum indício da doença na jovem, mas, por se tratar de um câncer, a estudante de administração ainda precisa manter acompanhamento periódico por meio de exames para avaliar seu estado de saúde. Bruna também recebe uma injeção mensal, que faz parte do tratamento adjuvante para evitar que os tumores voltem.
Hoje a professora de dança do ventre carrega na barriga uma cicatriz que começa na linha dos seios e vai até o fim da barriga. O sinal externo, diz ela, é "a marca da luta" que enfrentou nos últimos dois anos.
"No começo, tinha vergonha de mostrar minha cicatriz para as pessoas, até mesmo por causa da dança do ventre, porque essa região do corpo fica exposta. Mas hoje é a minha marca registrada, digo que é minha melhor amiga e faço questão de mostrar. Estou saudável, retomando a vida, é o menor dos problemas. Olhar para a cicatriz me dá vontade de viver", diz.
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