Hipnose funciona ou é truque? Entenda o que ela é, os benefícios e riscos
Quando eu contar até três, imagine-se na plateia de um programa de TV. No palco, você verá um homem que se esqueceu do próprio nome ao ser hipnotizado. Um, dois, três! Em poucas linhas de leitura, você revirou a mente para construir a cena sugerida. É mais ou menos assim que a hipnose funciona.
Embora muita gente pense que o hipnotizado fique fora de si, o que ocorre é o contrário, explica o psicólogo André Renato Rizzi, que integra um grupo de pesquisa sobre hipnose na USP (Universidade de São Paulo). A pessoa se volta para dentro e mergulha em tudo que a cabeça é capaz de construir. Esse movimento pode até levar a alterações sensoriais.
Registros milenares apontam que a ideia é usada há muito tempo para tratar condições físicas e psíquicas. Afinal, se é possível alterar a percepção de alguém, quem sabe não daria para ressignificar o modo como um sujeito angustiado enxergava sua vida? Ou fazer com que ele se esquecesse de uma dor repentina e profunda?
Séculos após as primeiras incursões científicas no tema, ainda se conhece pouco desse terreno misterioso. Por um lado, cientistas ainda não descobriram exatamente como essas alterações de consciência operam. Por outro, já entenderam que são eficazes em várias situações.
É por isso que, no Brasil, a hipnose é validada pelos conselhos de fisioterapia, medicina, odontologia e psicologia como ferramenta coadjuvante de cuidado. Além disso, compõe as Pics (Práticas Integrativas e Complementares em Saúde), autorizadas e financiadas pelo governo federal.
Mas há comprovação sobre seus benefícios? Em que medida ela pode ser perigosa? Relaxe, respire fundo e sinta-se agora imerso nessa investigação.
O que é hipnose?
Primeiro, vamos voltar à cena que você visualizou lá no início. O olhar do convidado, a estrutura da plateia, os passos do hipnotizador: tudo isso mora em algum lugar da sua mente. E a hipnose é capaz de trazer à tona o que sua cabeça consegue criar com tanto arquivo. Assim, a técnica é muito comparada a uma imersão num filme ou livro. Você pode chorar e sorrir ao imaginar ou assistir à cena, ainda que nada daquilo seja real.
Há muito tempo cientistas tentam entender a raiz desse mecanismo. De um lado, há quem acredite que a hipnose seja um estado mental que vem de dentro do sujeito. De outro, há quem a compreenda como um comportamento influenciado por fatores externos.
Por esses e outros impasses, até mesmo a descrição de hipnose está sempre mudando. A mais atual é de 2014 e foi cunhada pela APA (Associação Americana de Psicologia), que possui uma divisão especial para compreender o assunto, a divisão 30. O órgão entende que:
- "A hipnose é um estado de consciência que envolve atenção focada e percepção periférica reduzida, caracterizado por uma maior capacidade de resposta à sugestão."
Nem todo mundo é hipnotizável
Agora, avançando para o campo da polêmica: o que é truque ou verdade em apresentações de palco, como a que você imaginou? Será que alguém pode mesmo esquecer o nome por meio de um comando?
Sim, mas as coisas não são tão mágicas quanto parecem. Ainda que todos possam ser sugestionados em algum grau, nem todo mundo é facilmente hipnotizado.
Desenvolvida nos anos 1960, a escala de suscetibilidade hipnótica de Stanford é hoje a mais usada para compreender o nível de vulnerabilidade de alguém a sugestões. À época de sua criação, estimou-se que apenas 23% das pessoas conseguiam entrar em transe profundo —naquele nível necessário para deixar um grande auditório de queixo caído.
Nessa conta, 25% entravam em transe moderado, 35% eram levemente sugestionados e 17% refratários a impulsos externos. E parece que tal condição não muda quase nada ao longo da vida. Um estudo, também da Universidade Stanford (EUA), avaliou uma amostra de pessoas durante 25 anos e registrou poucas alterações nessa sugestionabilidade.
Ainda não se sabe o que torna uma pessoa mais ou menos hipnotizável. Mas estudiosos já constataram que a maior parte dos altamente vulneráveis são especialmente imaginativos, daqueles que passam boa parte do tempo "sonhando acordados".
Deirdre Barrett, um professor da Universidade Harvard (EUA) que também foi atrás dessa resposta, analisou 34 voluntários e notou que quase dois terços das pessoas capazes de entrar em transe instantaneamente se encaixavam no perfil de "fantasiadores".
Por trás do show
Ué, então se nem todo mundo pode ser hipnotizado na hora, como as hipnoses de palco sempre dão certo? O psicólogo André Renato Rizzi, que também atuou por anos como ilusionista, revela que esse tipo de apresentação pode muito bem envolver truques ou até a seleção prévia de pessoas mais hipnotizáveis.
Quer um exemplo? Talvez você já tenha presenciado a mágica dos dedos magnéticos. O hipnotizador pede para uma pessoa cruzar as mãos em posição de oração, com os dedos entrelaçados, menos os indicadores, que ficam bem afastados um do outro. Depois diz ao voluntário algo como: "quando eu tocar seu ombro, os dedos começarão a se aproximar". E não é que eles começam mesmo?
"Mas o que pouca gente sabe é que depois de um tempo há um cansaço natural dos dedos abertos. Então, não necessariamente vão se aproximar por sugestão hipnótica, mas por exaustão nos tendões", detalha o professor.
Além disso, o hipnólogo pode conversar com o participante antes do show ou o voluntário pode estar fingindo. "Gostamos de desempenhar papéis. Se você está ali na posição de hipnotizado, dificilmente vai querer estragar a brincadeira, ainda mais publicamente", diz o pesquisador.
De qualquer forma, nada impede que transes genuínos ocorram em apresentações. Aliás, isso é tão possível que é necessário cuidado redobrado nesse tipo de entretenimento. "Eu não posso induzir uma pessoa que não conheço a ter alucinações, porque não sei sua condição mental. Se ela tiver algum transtorno, a experiência pode causar danos graves", reforça.
Magia e mistério: como surgiu a hipnose?
Não é de hoje que o mundo da hipnose é circundado por essa aura mágica. Há 2,4 mil anos antes de Cristo, sacerdotes caldeus (povos da antiguidade, de origem árabe, que ocupavam regiões ao sul da Mesopotâmia, chamadas Caldeia, atualmente, são áreas atualmente localizadas a Síria, Iraque e Turquia) já se valiam de alterações de consciência em rituais de cura. A ideia também estava entre as bases das ciências ocultas da Grécia Antiga, do Antigo Egito e da Índia.
Na Idade Média, um dos principais intelectuais a olhar para o tema foi o médico e filósofo persa Avicena (980-1037). Para ele, a imaginação e a palavra poderiam transformar a mente e o corpo. Agora, como exatamente isso acontecia foi a pergunta inicial de estudiosos que, na Era Moderna, trariam várias hipóteses.
A mais famosa era a do médico europeu Franz Anton Mesmer, que viveu nos séculos 17 e 18. Ele acreditava que as leis do mundo se regiam pelo que chamou de magnetismo universal e que, no ser humano, essa força magnética e abstrata tinha uma forma própria: o magnetismo animal. Em desequilíbrio, esse fluido poderia levar a doenças. Então, supôs que era possível equilibrar condições psíquicas e orgânicas por meio de ímas e imposição de mãos.
O pesquisador virou celebridade na Europa, mas gerou desconfiança. Foi por isso que o rei Luis XVII, da França, reuniu uma comissão de cientistas, incluindo nomes famosos como Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794), para apurar aquela história. No fim das contas, o fluido universal não foi identificado, mas descobriu-se que a imaginação tinha mais poder sobre o corpo do que se poderia supor.
Esses debates chamaram atenção do cirurgião escocês James Braid (1795-1860), que, apesar de não acreditar na ideia de magnetismo animal, ficou surpreso ao ver que muitas pessoas submetidas aos procedimentos de Mesmer não conseguiam abrir os olhos.
Braid nomeou esse estado de sono nervoso e criou o termo hipnose em 1842, emprestando do grego a palavra Hypnos, o deus do sono. Para levar o paciente a essa condição, desenvolveu mecanismos como a indução por fixação do olhar —sabe quando alguém se concentra em um reloginho balançando de um lado para o outro? Mais tarde, o médico percebeu que os hipnotizados não estavam dormindo. Mas a essa altura o nome que inventou já tinha pegado.
Divisor de águas
A hipnose passou a ser utilizada em vários âmbitos do cuidado. A começar pelo controle da dor, já que existiam poucas formas de anestesiar pacientes em procedimentos cirúrgicos. Na saúde mental, o neurologista parisiense Jean-Martin Charcot (1825-1893) introduziu seu uso no tratamento da histeria, influenciando alunos célebres como Sigmund Freud (1856-1939).
A segunda metade do último século passou por um "boom" de estudos sobre o assunto, que ajudaram a dar uma nova cara ao método. Um pesquisador que dividiu a prática foi o psiquiatra norte-americano Milton Erickson (1901-1980).
Já sabemos que pouca gente é vulnerável a sugestões externas, mas, para Erikson, se um tratamento fosse centrado na narrativa do paciente, teria mais chance de dar certo, explica o professor e psicólogo Maurício Neubern, que estuda o tema na UnB (Universidade de Brasília).
As teorias do americano foram tão importantes que a hipnose se dividiu em duas grandes linhas depois dele: a ericksoniana ou conversacional, focada no diálogo e na realidade do indivíduo tratado, e a clássica, com ferramentas mais tradicionais, como ordens diretas.
Quando falsas memórias atrapalham a sessão
Freud ficou conhecido por usar a hipnose para acessar lembranças reprimidas. Histórias escondidas que, se viessem à tona, poderiam ser abordadas no divã. Ele só não contava com um detalhe: as falsas memórias. Diante de problemas assim, abandonou a técnica para se dedicar a outras vias terapêuticas que estava desenvolvendo.
Mas ainda hoje muita gente pensa que pode usar o método para se lembrar de algo esquecido, menciona o psicólogo Antônio Martins, que é professor no Centro Universitário Vale do Salgado, no Ceará, e estuda hipnose clínica desde 2008. Entretanto, durante uma sessão rumo a uma lembrança, o que você encontra é apenas uma versão dela e não a imagem idêntica da cena. É fácil cair na armadilha de achar que viveu algo que nunca aconteceu.
Isso não quer dizer que retornar a uma sensação seja algo inútil, explica a hipnóloga Joana D´arc Pereira, que integra a Sociedade Brasileira de Hipnose. "Resgatar um sentimento antigo pode ser um caminho para dar um novo sentido a ele e romper ciclos nocivos que se repetem", defende a especialista.
Na prática
A hipnose na prática é ainda mais intrigante do que todos esses debates juntos. Neubern cita duas histórias que ilustram bem esse potencial. A primeira é de uma paciente sua que imaginava cenas de seu livro preferido para aliviar cólicas no período menstrual.
A segunda é de um homem que, após um acidente de carro, ficou tão preocupado com o amigo ferido ao lado que nem sequer sentiu quando colocaram uma chapa dentro do seu joelho durante o socorro na estrada. "Ambos os casos mostram o potencial de uma atenção focada", diz.
Não é difícil entender, assim, por que o método é usado em consultas odontológicas para aliviar a dor de pacientes resistentes à anestesia. Mas, como você pode imaginar, não é tão fácil assim ser hipnotizado para esse fim, como bem ilustra Rizzi. "Eu até consegui passar por uma extração de siso só com a hipnose. Mas foi um teste que fiz comigo mesmo e me preparei durante um mês para conseguir essa façanha", lembra.
A hipnose é também indicada para amenizar desde o pânico da cadeira do dentista até o incentivo ao autocuidado com a saúde bucal. O professor e dentista Carlos Manson, que pesquisa hipnose na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), fez um estudo sobre isso. Ao acompanhar pacientes com psoríase, doença que causa manchas e descamações na pele, notou que o problema levava muita gente à depressão e isso fazia com que a higiene bucal fosse deixada de lado.
Então a hipnose entrou em cena: por meio de imersões imagéticas, as pessoas estudadas conseguiram enxergar sua condição de outra forma e até retomar cuidados com a escovação.
Por aí você vê o quão longe a mente consegue levar alguém. Não é sempre que acontece, mas, às vezes, a cura pode estar mais perto do que você imagina: dentro da sua cabeça.
Agora, você já pode deixar a plateia do programa de TV e abrir os olhos.
Fontes: André Renato Rizzi, psicólogo e pesquisador de hipnose na USP (Universidade de São Paulo); Antônio Martins, psicólogo, hipnólogo e professor do Centro Universitário Vale do Salgado, no Ceará; Carlos Manson, dentista e pesquisador de hipnose na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo); Joana D'arc Pereira, hipnóloga e membro da Sociedade Brasileira de Hipnose; Maurício Neubern, psicólogo e pesquisador de hipnose na UnB (Universidade de Brasília); Steven Jay Lynn, Judith W. Rhue e Irving Kirsch, Handbook of Clinical Hypnosis.
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