'Mãe, não quero conviver com pessoas': quando ser superdotado vira um fardo
Francisco Ruiz de Oliveira tinha apenas sete meses de vida quando pronunciou suas primeiras palavras. No aniversário de um ano, com a desenvoltura e fluidez de uma criança quatro anos mais velha, o pequeno cantou todas as estrofes do "parabéns". Aos dois, já andava de bicicleta sem rodinhas. Começou a ler e a escrever no terceiro ano de vida.
Mas foi a frase que disse à sua mãe aos cinco anos o que mais surpreendeu a farmacêutica: "Mãe, eu quero parar de conviver com as pessoas". Espantada, Grazielli Ruiz de Oliveira, 39, questionou o porquê da afirmação. "As pessoas tiram sarro de mim, então eu não quero mais conviver com elas", explicou o garoto.
O motivo do riso alheio, diz a mãe, eram os tiques nervosos que a criança havia desenvolvido. "Ele fazia tique com a boca e com as mãos. Fazia um som de 'tititi' antes de falar", conta Grazielli, moradora de Ivatuba, na região metropolitana de Maringá (PR).
Francisco, atualmente com sete anos, é uma criança com altas habilidades —ou "superdotado". A identificação aconteceu em 2019. Segundo o laudo intelectual do pequeno, sua habilidade cognitiva geral supera aproximadamente 99,8% a das crianças de sua idade.
O QI (quoeficiente de inteligência) da população do Brasil é estimado em 87 pontos. O do garoto equivale a 144. São consideradas superdotadas pessoas que têm um QI acima de 130 e que se destacam com relação a seus pares em pelo menos uma área do conhecimento —lógica, verbal, artística ou de liderança.
Problemas na escola
O tique motor que fez com que Francisco sofresse bullying na escola, contudo, não era uma consequência direta da superdotação. A mãe conta que, segundo explicou uma neuropsicóloga responsável por atender o menino na época, as crianças têm muita energia física para gastar, mas o garoto, por ser superdotado, também tem uma quantidade maior de energia cognitiva. "Se não tiver onde gastá-la, isso vai continuar tendo implicações na saúde emocional dele, como os tiques nervosos", disse a médica.
"Ele chorava todos os dias dizendo que na escola estavam começando a ensinar a ler e a escrever, e que isso ele já sabia. Mas a escola dizia que não estava preparada para atender alunos superdotados, não tínhamos condições de pagar um colégio particular e nenhum lugar em nossa cidade dava bolsa", conta Grazielli.
As pessoas acham que ter um filho inteligente é maravilhoso, e é maravilhoso. Meu filho é maravilhoso. O duro são as dificuldades que a gente vai encontrando no dia a dia.
Em abril deste ano, um colégio de Maringá concedeu uma bolsa ao menino, só que parcial. Por isso, Grazielli e e seu marido, o gerente de TI Renato de Oliveira, 34, precisaram redobrar a carga de trabalho para arcar com os custos.
Mas o esforço, avaliam os pais de Francisco, foi determinante para a saúde mental da criança: uma semana após a transferência, os tiques desapareceram e ele deixou de tomar remédio para controlar a ansiedade.
Segundo Thiane Araújo, coordenadora do NAAHS (Núcleo de Atividades em Altas Habilidades e Superdotação) do município de Recife (PE), pessoas superdotadas são frequentemente rotuladas como sendo "desajustas emocionalmente", mas isso é um mito.
A superdotação não é uma doença ou transtorno mental. Sabe-se que crianças superdotadas têm um volume maior de massa cinzenta em algumas regiões do cérebro, o que as ajudaria a computar informações melhor do que seus pares. A condição tem influência tanto genética quanto ambiental.
"Na maioria das vezes, o desajuste emocional vem da falta de oportunidades para desenvolver as habilidades no ambiente em que está inserido", afirma a psicóloga. Segundo ela, a escola é um dos fatores mais determinantes para a saúde mental de quem tem altas habilidades.
No Brasil, a legislação assegura ao estudante superdotado o direito ao enriquecimento curricular, à aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar e ao acesso a professores com especialização adequada para atendimento e integração.
"O problema é que muitas escolas, tanto públicas quanto privadas, ainda desconhecem a obrigatoriedade de oferecer essas alternativas", avalia o pedagogo Giovanni Eldasi, que também é superdotado e foi coautor da primeira lei municipal de São Paulo (15.919/13) a garantir atendimento às necessidades dos alunos alto habilidosos, em 2013.
"Meus amigos não me entendem"
Dentro do ambiente escolar, existem muitas situações que, se não forem adequadamente gerenciadas, podem levar estudantes superdotados ao estresse ou ao isolamento.
Diogo Dantas, 10, filho de uma enfermeira e um médico, foi identificado como alto habilidoso recentemente e acumula medalhas de competições de matemática e karatê desde pequeno.
Mas Diogo conta que, muitas vezes, sua capacidade intelectual se choca com a de seus colegas. "Minha maior dificuldade na escola é que meus amigos, quando eu falo alguma coisa, ficam sem entender. Eles não entendem das mesmas coisas que eu", conta a criança, que estuda em um colégio privado em Mossoró, no Rio Grande do Norte.
"Fico preocupada com a saúde mental dele no futuro, porque ele processa tudo muito rápido e é muito intenso em tudo", diz a mãe, Cíntia Maria, que leva o pequeno para receber acompanhamento terapêutico e psicopedagógico uma vez por semana.
Segundo o pedagogo Giovanni Eldasi, é comum que o sentimento de discrepância em relação aos colegas desapareça quando a criança é submetida à aceleração escolar e, consequentemente, passa a conviver com estudantes mais velhos. A aceleração, contudo, nem sempre é vista como a solução mais adequada. "É preciso identificar se a pessoa também tem, além das condições intelectuais, condições socioemocionais para isso", pondera o especialista.
Na sala de aula, quando não estão recebendo o estímulo cognitivo adequado, alunos superdotados também podem ser tachados de desinteressados ou desatentos, por acharem as lições muito fáceis. Não é raro que os pais fiquem bravos com o filho porque o estudante passou a ser visto com maus olhos pelos professores. Expectativas sobre o seu desempenho acadêmico ou elogios excessivos também podem trazer prejuízos emocionais à criança.
Priscila Zaia, supervisora de psicologia da Mensa Brasil, afiliada brasileira da Mensa Internacional, maior organização que reúne pessoas com alta capacidade intelectual no mundo, afirma que o desconhecimento gera espaço para o preconceito e a exclusão. "Em muitos casos, o alto habilidoso acaba construindo a sua identidade se sentindo sempre inadequado ou incompreendido, porque em nenhum momento o ambiente em volta dele parou para entender o que está acontecendo."
A falta de conhecimento sobre a superdotação também pode estar por trás de estigmas criados no mercado de trabalho. Além de ter enfrentado dificuldades para ter acesso à aceleração escolar quando cursava pedagogia na USP, no início dos anos 2000, Giovanni Eldasi conta que seu currículo foi tachado de falso inúmeras vezes. Muitas pessoas achavam impossível, por exemplo, que ele fosse fluente em sete línguas —além da língua materna, o mineiro de 43 anos fala inglês, francês, espanhol, italiano, latim e grego.
A solução que o pedagogo encontrou na época foi mentir e afirmar que falava português, inglês e espanhol. Depois de muito camuflar suas habilidades, atualmente ele é sócio de uma empresa nos EUA: "Não preciso mais falsificar meu próprio currículo".
Os consultórios de psicologia e psiquiatria também não estão livres da incompreensão a respeito dos alto habilidosos. Em alguns casos, a superdotação pode ser confundida com transtornos como o TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) ou a ansiedade generalizada, devido ao alto nível de energia e curiosidade que comumente caracteriza esse grupo.
"É muito comum que os superdotados já tenham peregrinado por diversos psicólogos e psiquiatras, fazendo buscas para entender o seu funcionamento. É difícil achar respostas, porque a gente tem poucos profissionais com conhecimento sobre altas habilidades", avalia Denise Arantes-Brero, presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação.
Ana Luísa Ferreira Sekeff Budaruiche, 17, descobriu que era superdotada depois que seus pais a levaram a um novo psicólogo para ajudá-la a lidar melhor com os sintomas de ansiedade. Ela conta que recebia medicação desde os oito anos.
"Minha ansiedade era muito relacionada aos estudos. Não conseguia dormir na noite anterior às provas, ficava ansiosa quando o professor repetia explicações sobre alguma matéria na aula, porque eu já tinha entendido", relata a moradora de Timon, no Maranhão.
A profissional que atendeu a jovem suspeitou que ela fosse superdotada, e acertou: seu laudo cognitivo apontou um QI de 152 pontos. "Fiz terapia e isso me ajudou muito a entender o que eu sentia e a lidar melhor com a ansiedade, com técnicas de respiração e dicas de estudos", diz ela, que recebeu alta terapêutica há três meses e entrou para a Mensa Brasil neste ano.
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