Remédios devem mudar após serotonina ser descartada de causas da depressão?
Em julho, um estudo publicado no periódico Molecular Psychiatry indicou que a depressão não tem relação com baixos níveis de serotonina, o "hormônio da felicidade". Até então, o neurotransmissor era diretamente associado ao quadro, inclusive orientando o desenvolvimento de remédios que focavam em sua ação para tratar a doença.
A revisão, que compilou 17 estudos, indica que os níveis de serotonina não diferem entre pessoas com e sem depressão. Os pesquisadores lembraram que a teoria de que uma alteração química causa a depressão tem muita influência e, inclusive, é bastante familiar para o público leigo.
"As principais áreas de pesquisa da serotonina não fornecem evidências consistentes de haver uma associação entre ela e a depressão, e nenhum suporte para a hipótese de que a depressão é causada pela atividade ou concentrações reduzidas de serotonina", escreveu a equipe da Universidade College de Londres, na Inglaterra.
Entretanto, mesmo sem a correlação, os autores do estudo frisam que o uso dos medicamentos não deve ser suspenso, pois eles acabam surtindo efeito e o quadro pode piorar caso o desmame ocorra sem orientação médica.
Além disso, apesar de causarem rebuliço, as constatações do estudo não são bem uma novidade para estudiosos da doença, indicam especialistas ouvidos por VivaBem. A própria revisão compila estudos que já mostravam a ausência de causa-efeito associada aos índices do neurotransmissor.
"A síntese não surpreende quem está ligado à psicofarmacologia. Atribuir a depressão à baixa de serotonina seria uma ultrasimplificação, porque há uma cascata de eventos que levam à doença. Nós conhecemos algumas etapas, mas muitas ainda são desconhecidas", aponta o psiquiatra Luiz Alberto Hetem, doutor pela FMRP-USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo).
Por que a serotonina foi associada à depressão?
Na medicina, é comum que medicamentos inicialmente usados para uma doença também tenham ação contra outras condições. Foi assim com o primeiro antidepressivo, desenvolvido em 1957, um remédio para tratar a tuberculose, mas que apresentou efeito no humor.
"Não se sabia o porquê, mas o medicamento resolvia casos de depressão. Depois, descobriu-se que ele inibia a recaptura de serotonina e noradrenalina, fazendo com que essas substâncias aumentem e a doença melhore. Então, pensou-se que a depressão seria causada pela diminuição desses neurotransmissores", explica Hetem.
A recaptação é um mecanismo bastante comum aos antidepressivos, aumentando a disponibilidade de neurotransmissores e melhorando a comunicação entre os neurônios.
A teoria das monoaminas —que indicava um déficit de neurotransmissores em algumas áreas do cérebro como possível causa da depressão— foi proposta pela primeira vez nos anos 1960. E a influência da serotonina aumentou nas décadas seguintes, sobretudo porque em 1988 os inibidores de recaptação seletiva do neurotransmissor começaram a ser vendidos. É o caso do Prozac, que tem a fluoxetina como princípio ativo. Chamada de "pílula da felicidade", a medicação apresentava efeitos colaterais menos intensos em comparação aos remédios em uso até então.
"Foi uma droga revolucionária, a primeira a ser comercializada. O desenvolvimento partiu de um estudo financiado pelo governo norte-americano que descobriu um prejuízo bilionário no país por conta de depressão, a partir de um levantamento da FDA [agência regulatória dos EUA nos moldes da Anvisa]", conta o psiquiatra Ediwyrton Freitas, do HU-UFPI (Hospital Universitário da Universidade Federal do Piauí), vinculado à Rede Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares).
Com o foco do tratamento na serotonina, foi natural ao público leigo associar que uma disfunção no neurotransmissor justificaria a depressão.
"E há o papel do marketing, que simplifica as coisas para elas serem compreendidas, dizendo que subir a serotonina conserta algo por trás da depressão. Só que, cientificamente, dizer isso é falha de informação", comenta o psiquiatra Carlos Cais, doutor pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e sócio-fundador da healthtech Elibré Saúde Mental.
Futuro das medicações: mudanças a caminho?
Um dos alertas da revisão publicada em julho é que pacientes não devem suspender a medicação por conta própria. Os tratamentos, chamados de primeira linha, são positivos para ao menos dois terços dos casos de depressão, afirma Cais. Ou seja, mesmo que a serotonina não tenha relação com a doença, os remédios em uso funcionam por alguma razão —ainda desconhecida.
"Isso não muda o tratamento da doença, o fato de saber que não é bem isso [remissão de sintomas por alta da serotonina], não quer dizer que não tem efeito. A informação não é novidade e não altera o fato de que os medicamentos funcionam para boa parte das pessoas. Se o médico é bem informado, quando ele prescreveu, já sabia das constatações trazidas pelo estudo", afirma o psiquiatra.
Segundo os especialistas consultados, os remédios devem permanecer como a primeira opção para tratar a depressão. A tendência é explorar alternativas para as pessoas que não respondem às intervenções convencionais —a exemplo da cetamina, que atua no sistema glutamatérgico e é uma opção para quadros de depressão resistente, quando a pessoa não apresenta melhora após tratamento com dois remédios diferentes em doses e tempo apropriados.
Sem biomarcador
No entanto, o estudo aponta que a análise do neurotransmissor não deve servir como um possível biomarcador —componentes moleculares que, quando alterados, norteiam a identificação de patologias no organismo. Essa análise, no geral, já é distante da prática clínica por não ser um exame de rotina.
Segundo o psiquiatra Luiz Alberto Hetem, a medição da serotonina também é difícil porque não é possível isolar circuitos cerebrais microscópicos, contemplando apenas o cérebro inteiro ou boa parte do órgão. Por isso, o diagnóstico da depressão é baseado nos sintomas da pessoa, que devem persistir por ao menos 14 dias.
Alguns profissionais, de acordo com o especialista, podem equivocadamente dosar a serotonina plasmática (no sangue) como forma de comprovar a depressão. "Quem dera as coisas fossem tão simples assim. Não há nenhuma correlação com a cerebral e quando a substância está alta no sangue é um marcador para tumores e câncer", afirma Hetem.
Por que é tão difícil encontrar as causas da depressão?
A depressão é uma doença com causas multifatoriais, incluindo relações genéticas, ambientais e de estilo de vida. "No futuro, os processos devem indicar interações imunológicas, inflamatórias e neuropsiquiátricas", comenta o psiquiatra Ediwyrton Freitas.
Encontrar as suas causas e alterações biológicas é difícil porque existe uma lacuna entre cérebro e mente, um entrave comum à psiquiatra. Por exemplo, uma pessoa com insuficiência cardíaca apresenta uma cascata de eventos que caracterizam o quadro, como o coração inchado, dilatado e com paredes afinadas. Na depressão, tirando a apresentação no humor, ainda não há nada no corpo que indique a condição.
"Existem cérebro, sistemas neuronais, intracelulares, mas falta um pedaço para chegar à doença, o que leva à ausência de definição de um biomarcador. Aí entram a história, os traumas, frustrações, dificuldades que a pessoa passa", explica Luiz Alberto Hetem.
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