Gorduroso e indigesto, mas rico em cálcio: afinal, leite é herói ou vilão?
Antes mesmo da água, o leite é a primeira bebida que tomamos. O único alimento oferecido aos bebês até os seis meses de vida, essencial para a saúde e desenvolvimento dos pequenos. E, mesmo quando passamos a consumir alimentos sólidos, a bebida branca segue em nossa dieta, suprindo a necessidade de nutrientes importantes, como cálcio e proteínas.
Mais de 6 bilhões de pessoas em todo o mundo consomem leite e produtos lácteos, segundo dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), mas a ingestão da bebida gera polêmicas.
Algumas pessoas que são contra a presença da bebida no cardápio argumentam que nós, humanos, somos os únicos seres do planeta que continuam tomando leite quando adultos (nunca é demais lembrar que também somos os únicos seres que usam o celular, o carro, o elevador...).
A ciência também fornece material (nem sempre confiável) para quem diz não fazer sentido ingerir um produto de secreção mamária de outros animais.
Um estudo publicado este ano no American Journal of Clinical Nutrition, por exemplo, associou o consumo de leite a maiores riscos de câncer de próstata —mas avaliou apenas homens vegetarianos. Há quem use uma pesquisa de 1990 para relacionar uma abundante proteína do leite ao espectro autista. Isso sem contar os debates sobre intolerância à lactose e que envolvem o teor de gordura da bebida e o perigo de doenças cardíacas.
Adianto que, segundo os especialistas ouvidos pelo VivaBem, não existem evidências sólidas na literatura científica que relacionem o leite como algo capaz de provocar qualquer tipo de câncer, apenas estudos isolados, como esse que ainda apresentou o equívoco metodológico de analisar somente vegetarianos e, por ser observacional, mostra apenas uma associação —ou seja, não comprova relação de causa e efeito.
Os especialistas defendem que a bebida é nutritiva e, dentro de um plano de alimentação equilibrado, contribui para a saúde e o bom funcionamento do corpo.
Beber leite é vantagem evolutiva
Acredita-se que os humanos começaram a beber leite cru de animais há pelo menos 10.000 anos. Isso está evidente em antigos vasos de cerâmica de barro, restos da dentição de povos do período neolítico e análises ósseas de restos de animais. Existem registros, por exemplo, de mamadeiras usadas há pelo menos 8.000 anos para alimentar bebês.
Essa característica particular da humanidade se deu principalmente a uma mutação que permitiu ao homem adulto manter a produção —que ocorre na infância— da lactase: enzima necessária para a digestão do principal açúcar do leite, a lactose. Esse "acaso" genético ocorreu em diferentes locais do mundo e, pela seleção natural, as populações com o gene de persistência da lactase foram dominantes e se disseminaram.
Ou seja, beber leite quando adulto virou uma vantagem evolutiva ao possibilitar as pessoas de se alimentarem com um produto repleto de substâncias importantes para o nosso corpo, como confirma o índice NRF (Nutrient Rich Foods, ou alimentos ricos em nutrientes). O sistema de pontuação americano classifica os lacticínios como produtos de elevada densidade nutritiva, uma vez que apresentam grande concentração de nutrientes em relação ao seu teor calórico.
Veja nutrientes presentes em no leite e o compare com outros alimentos
(Passe o mouse nas barras para saber as porções)
A gordura do leite faz mal? Aumenta o colesterol?
Em geral, o leite integral tem em sua composição de 3% a 4% de lipídios —a maior parte de gordura saturada. O consumo excessivo do nutriente é associado ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares, por aumentar o colesterol LDL, conhecido como "ruim".
Porém, os especialistas consultados dizem que não há estudos confiáveis que relacionem o aumento do risco cardiovascular com o consumo de leite e seus derivados (queijo, iogurte). As evidências são opostas: um estudo publicado na The Lancet, em 2018, por exemplo, avaliou 136.384 pessoas em 21 países e concluiu que consumir laticínios reduz o risco de morte precoce e de ter doenças cardiovasculares.
Ainda nesse sentido, uma revisão, além de concluir que não há evidências claras de que o consumo de alimentos lácteos esteja consistentemente associado a um maior risco de doenças cardiovasculares, mostrou que também pode não haver diferença quanto a esse risco entre consumir um produto lácteo com maior teor de gordura e outro menor (desnatado ou semidesnatado).
Diferentes animais, leites e nutrientes
Como cada mamífero tem necessidades específicas de proteínas, gorduras e carboidratos, há diferentes aspectos nutricionais em seus leites. O humano, por exemplo, tem mais lactose (açúcar natural da bebida) e menos proteína do que o de animais como a vaca, a búfala e a cabra. Isso tem relação com a velocidade de crescimento de cada ser: demorarmos cerca de 20 anos para nos tornarmos adultos, enquanto um bezerro leva apenas dois anos.
Nesse sentido, os leites desses animais oferecem não só mais proteína (importante para a construção muscular e de vários tecidos do corpo), como também colesterol (usado na produção de hormônios anabolizantes, que promovem o crescimento) e cálcio (para a formação dos ossos).
Mesmo quando se fala apenas do leite de vaca, nos mercados há uma vasta diversidade de produtos com diferentes processamentos e sutis mudanças nutricionais —especialmente no teor de gordura. Os leites são principalmente classificados como integrais, semidesnatados e desnatados, sendo esses últimos os com menores níveis de lipídios.
O melhor produto depende muito da alimentação e da necessidade de cada pessoa. Muitos acham, por exemplo, que o leite desnatado, por ser menos calórico e ter menos gordura, é ideal para quem deseja emagrecer. Não necessariamente.
Para quem busca perder peso, o leite integral acaba sendo mais vantajoso por promover maior saciedade e ter índice glicêmico menor —o açúcar da bebida é absorvido de forma mais lenta, evitando um pico no organismo do hormônio insulina, que incentiva o estoque de gordura.
Já o desnatado e o semidesntatado costumam ser indicados para pessoas que precisam controlar as taxas de colesterol. Converse com um nutricionista para saber qual produto é melhor para você.
Leite é inflamatório?
Quem procura uma dieta saudável sabe que tem de fugir dos alimentos inflamatórios, como frituras, ultraprocessados, excessivos em açúcar, entre outros. Seria o leite um deles? O consenso entre os pesquisadores é que, para pessoas saudáveis, não.
Uma revisão de estudos analisou os efeitos do leite e de produtos lácteos em biomarcadores inflamatórios. A pesquisa indicou que o consumo não mostrou efeito pró-inflamatório em indivíduos saudáveis.
Outro estudo revisou 52 ensaios clínicos para investigar marcadores inflamatórios relacionados ao consumo de leite e concluiu que o alimento, na verdade, tem uma atividade anti-inflamatória, principalmente no caso dos fermentados. Essa pesquisa destacou efeitos inflamatórios apenas em indivíduos alérgicos ao leite de vaca —e aqui, sim, em casos de prévios problemas de saúde na digestão, o leite pode ser um vilão.
Três casos de reações adversas ao leite
- Intolerância à lactose
Afeta de 65% a 75% da população mundial, principalmente na Ásia e África, o que pode ser explicado pelo próprio processo evolutivo da humanidade em ser capaz de digerir o leite na fase adulta. Se olharmos no mapa de intolerância à lactose (mais abaixo), veremos que nos países em que não havia tantos animais fornecedores de leite a taxa de intolerância é maior.
Isso acontece porque, ao longo dos milhares de anos, a adaptação para a produção da lactase, enzima que quebra a lactose em galactose e glucose, moléculas que, por sua vez, podem ser absorvidas por nosso organismo, ocorreu onde o alimento estava disponível para adultos. Onde não havia a criação de animais fornecedores de leite, o organismo da população deixou de produzir lactase conforme envelheceu, já que o alimento não era mais ingerido.
Quem é intolerante ao açúcar do leite não consegue digerir bem a lactose, que fermenta no intestino delgado, gerando cólica, distensão abdominal, flatulência e diarreia, além de lesões e infecções no aparelho digestório. Nesses casos, se quiser tomar leites ou ingerir produtos com ele, a pessoa precisa consumir a enzima lactase artificialmente (disponível em comprimidos, solução oral etc.), optar por laticínios sem lactose (que na verdade contêm a substância, mas possuem a enzima lactase inserida neles) ou tomar leite em quantidades toleráveis pelo organismo.
- Alergia à proteína do leite de vaca
Também conhecida pela sigla APLV, é uma reação do sistema imunológico a algumas proteínas encontradas no alimento.
Como se trata de uma alergia alimentar, os sintomas ultrapassam os problemas no sistema digestivo e podem desencadear desde reações na pele até no sistema respiratório. Há, inclusive, risco de morte e, por isso, a depender do nível da alergia, a pessoa precisa evitar qualquer alimento que possa conter leite.
- Sensibilidade à caseína
Ela é uma das proteínas do leite. Ainda que contenham aminoácidos essenciais ao nosso organismo, as casomorfinas, fragmentos derivados da caseína, passaram a gerar discussões na comunidade científica, principalmente a beta-casomorfina-7 (BCM-7).
Esse peptídeo atua nas terminações nervosas do intestino, o que pode desencadear um processo inflamatório. Mas, até onde se sabe, esse efeito acontece apenas em uma pequena parte da população que, naturalmente, tem sensibilidade ao composto.
A presença da beta-caseína no leite varia de acordo com a genética das vacas. Em certo rebanho, temos no leite a beta-caseína A1 e, em outro, a beta-caseína A2. A BCM-7 pode ser liberada durante a digestão da beta-caseína A1 e sua presença durante a digestão da beta-caseína A2 é pequena ou inexistente —por isso, em casos de sensibilidade, é recomendado o consumo do leite tipo A2.
Algumas pessoas relacionam a beta-caseína A1 a problemas de saúde, como diabetes tipo 1, aterosclerose, intoxicação e até mesmo câncer. No entanto, o consenso entre os especialistas ouvidos pelo VivaBem é de que, em geral, tais associações não se baseiam em evidências sólidas ou não têm qualquer fundamento na literatura científica.
A cada ano que passa, cientistas encontram erros em estudos que indicavam malefícios do leite ou fazem novos estudos que desmitificam seus resultados. Um exemplo é o da suposta relação da caseína com o autismo, que motivou a adoção da dieta SCSG (sem caseína, sem glúten). Revisões de artigos de 1990 até 2016 mostram falhas metodológicas nos estudos que relatam o efeito negativo da proteína em pessoas com autismo e concluem que não há dados para apoiar cientificamente a restrição.
Vale trocar o leite animal por vegetal?
Os extratos vegetais costumam ser a opção de quem não consome o leite de origem animal —por questões de saúde, éticas ou ambientais. Entretanto, essas bebidas de plantas não se equiparam ao leite do ponto de vista nutricional. Portanto, não podem ser plenos substitutos do alimento na dieta —principalmente por geralmente fornecerem poucas proteínas e energia.
Mesmo que nos rótulos a quantidade de cálcio possa ser maior nos extratos vegetais do que na bebida de origem animal, os nutricionistas advertem sobre a biodisponibilidade do nutriente, isto é, o quanto ele é absorvido pelo organismo.
Por exemplo: mesmo que em 100 g de espinafre tenha praticamente a mesma quantidade de cálcio de 100 ml de leite, estima-se que seja necessário comer 1,4 kg de folhas do vegetal para o corpo absorver a quantidade de cálcio absorvível em um copo (240 ml) de leite.
Quanto às receitas caseiras de bebidas de soja, aveia, amêndoas e outros grãos, há mais um alerta: a presença dos componentes antinutricionais, substâncias de efeito inverso aos dos nutrientes, como os fitatos e oxalatos, que inibem a absorção de cálcio e ferro. Na indústria, esses compostos são inativados no processamento térmico —o que não acontece em casa.
Devido à menor quantidade de proteínas e dos aminoácidos essenciais para o crescimento, principalmente para crianças menores de três anos de idade, a recomendação é evitar os "leites de planta". Fórmulas especiais de arroz e soja, produzidas com essa finalidade, até podem ajudar a equilibrar a dieta para crianças a partir de um ano, mas apenas em casos específicos e sob orientação médica.
Equilíbrio é o ideal
O consumo em excesso de qualquer alimento pode fazer mal à saúde. No caso do leite integral de vaca, esbaldar-se na bebida pode elevar os níveis de colesterol. Consumir calorias em excesso também pode fazer a gordura parar no fígado, gerando esteatose hepática, e no abdome (a chamada obesidade visceral).
Além disso, com muita lactose para quebrar, nossa quantidade natural de lactase pode não dar conta e o resultado será má digestão e inflamação. Vale destacar que uma quantidade exagerada de proteínas também pode sobrecarregar os rins.
E cuidado com alimentos que tentam se vender como bons por "conter leite" —especialmente produtos para crianças. Lembre-se que, quanto mais industrializado um alimento, menos saudável ele é. Essa relação é bem expressa no Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, e vale para os leites e seus derivados.
Ter um pouco de leite não torna chocolates, bolachas, pães e sorvetes melhores, pois eles são ultraprocessados e recebem aditivos químicos, mistura de gorduras, açúcares e sal.
Saudável mesmo é o leite in natura, que está no grupo dos alimentos minimamente processados. Ainda que tratamentos térmicos de pasteurização e de ultrapasteurização possam afetar os nutrientes do leite, não há perdas relevantes a nível nutricional. A biodisponibilidade do cálcio lácteo não é significativamente afetada e, em caso de fermentações (como na produção de iogurte e queijos), pode haver aumento da digestibilidade dos nutrientes do leite e da liberação de compostos bioativos benéficos para a saúde.
Esse processamento é necessário para garantir a segurança biológica da bebida, ou seja, para que esteja livre de micro-organismos que possam causar doenças, como a salmonela. Pelo risco à saúde envolvendo seu consumo, a venda de leite "cru", resultado direto da ordenha, é proibida no Brasil, pelo decreto nº 923/1969 —que também assegura que a bebida seja submetida a protocolos de controle de qualidade e inspeção higiênico-sanitária.
Fontes: Adriane Antunes, docente de nutrição na FCA (Faculdade de Ciências Aplicadas) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas); Bruna Paola Murino Rafacho, professora da Facfan (Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Alimentos e Nutrição) da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul); Cintia Pereira da Silva, doutora em nutrição na FSP (Faculdade de Saúde Pública) da USP (Universidade de São Paulo); Fernanda Silva, doutora pela Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais); Heno Lopes, cardiologista do InCor (Instituto do Coração) do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo); José Cesar da Fonseca Junqueira, professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro); Katya Anaya, professora na UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e visitante na Universidade de Delaware, nos Estados Unidos; Paulo Henrique Fonseca da Silva, professor do Departamento de Nutrição da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora); Renata Amorim, nutricionista especialista em gerontologia pela SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia); Walter Taam Filho, doutor em ciência dos alimentos pela UFRJ e especialista em pediatria pela SPB (Sociedade Brasileira de Pediatria).
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