'Perdi família, emprego e dormi na rua': como é a recuperação do alcoolismo
Uma das partes mais difíceis da dependência do álcool é o tratamento. Isto é, o paciente reconhecer que tem um problema de saúde e procurar ajuda especializada. Mas uma vez que isso é feito, novos desafios se apresentam: manter-se longe das bebidas alcoólicas.
E isso nem sempre é fácil, já que as temidas recaídas fazem parte até mesmo do processo de recuperação. No entanto, há formas de evitar que isso ocorra.
Uma delas, segundo os psiquiatras consultados por VivaBem, é simples, mas tem um efeito importante, que é lembrar do que o álcool já causou na vida da pessoa, de todos os impactos negativos da dependência da substância.
Essa é uma das estratégias de Cristiano Marques de Oliveira, 36, que tratou o alcoolismo e está sóbrio há mais de 6 anos. Para ele, relembrar o passado faz com que ele não queira mais a vida com o alcoolismo.
"Todo dia, quando acordo e lido com decisões, lembro do que aconteceu lá atrás. Acho que esse é o maior tratamento que alguém pode ter com o alcoolismo: saber o mal que isso causou e não querer mais. É simples", diz o estudante de educação física, que mora em São Paulo.
E de acordo com Danielle Admoni, psiquiatra geral e especialista pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), entender os gatilhos ajuda no processo de recuperação da dependência do álcool.
"Muitos pacientes param de beber porque viam que o salário ia embora com o álcool. Ou eles percebem que chegaram ao fundo do poço e param também. Lembrar do que ocorreu para precisar parar com o hábito é muito importante", explica a médica, também preceptora de residência na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
14 anos com o alcoolismo
Cristiano começou a beber aos 16 anos, quando ainda frequentava a escola. Toda sexta-feira, os amigos se reuniam para beber e, um dia, ele ficou curioso e quis participar. "Logo isso se tornou uma rotina e, quando fui me deparar, estava bebendo todos os dias, sem exceção. Foi aí que começou minha história no alcoolismo", lembra.
Dos 16 aos 30, o estudante manteve o hábito. Na época, a rotina dele envolvia 24 latas de cerveja e uma garrafa de conhaque por dia. O problema era tão nocivo que trouxe impactos em todas as áreas da vida de Cristiano.
Perdi emprego, família e dignidade. Dormi na rua. Fiz tudo que aquilo que o álcool provoca em uma pessoa. Cristiano Marques de Oliveira
Primeiro passo é reconhecer o problema
Assim como a maioria dos pacientes, Cristiano demorou para aceitar que tinha um problema com o álcool. Na verdade, por ser uma substância facilmente encontrada em bares, mercados e restaurantes, por exemplo, seu consumo —em excesso, inclusive— é banalizado.
Segundo o psiquiatra Arthur Guerra, presidente do Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool) e professor da Faculdade de Medicina do ABC, a negação faz parte do quadro clínico. A pessoa, geralmente, acha que consegue parar quando decidir, mas não é tão simples assim.
"O tratamento é procurado depois de muitas tentativas de beber socialmente: ela não quer parar de beber, mas, sim, beber de forma moderada", explica o especialista. "Até que essa pessoa percebe que, para se livrar da dependência, ela terá que parar de beber. Quando ela tem essa percepção, o tratamento vai adiante."
No entanto, há algumas linhas de tratamento que trabalham com a redução de danos, conforme explica Vinícius Pedreira, psiquiatra e professor do curso de medicina da Faculdade Unime Lauro de Freitas, na Bahia.
"Essa linha de tratamento considera a redução de danos, caso ele consiga manter o uso recreativo da substância, sem causar prejuízos na vida dele", explica o médico, destacando que tudo vai depender da pessoa e de como ele enxergar o uso do álcool. "É sempre bom observar e entender se é como uma forma de escapismo de alguma situação", reforça Pedreira.
"Melhor decisão da minha vida"
No caso do de Cristiano, a dependência estava trazendo muitos problemas. Eram tantas brigas com amigos e familiares, além dos danos à saúde, como a constante dor de cabeça e obesidade, que, no dia 11 de setembro de 2016, ele resolveu parar. Desde então, ele conta ter duas datas de aniversário: dia 21 de maio, quando nasceu, e 11 de setembro.
Posso dizer com propriedade que foi a melhor decisão da minha vida. Cristiano Marques de Oliveira
"Vim de uma família boa. Não foi isso que aprendi em casa. Meus pais consumiam uma 'cervejinha' apenas aos finais de semana."
Foi neste contexto que ele decidiu procurar ajuda no Caps (Centro de Atenção Psicossocial), que oferece apoio gratuito para pessoas convivendo com alguma dependência química ou outros transtornos.
Lá, Cristiano teve acesso aos médicos (clínico geral e psiquiatra) e psicólogos, além dos grupos de apoio. Foram três meses de tratamento, sem necessidade do uso de medicamentos —em algumas situações, pode ser preciso.
Nesses grupos, as pessoas compartilhavam experiências, quantos dias estavam sem beber ou usar outra droga. Inclusive, Cristiano gostava de chegar mais cedo para ajudar na organização. De lá, destaca principalmente a forma com que eles ajudaram a resgatar a autoestima dele.
"O principal trabalho deles foi essa reiteração social. Foi fantástica a forma com que eles conseguiram entrar na minha mente e retomar minha autoestima. Quando temos isso, somos capazes de tudo", diz. "Também foi muito interessante ter essa abertura de a família participar. O trabalho deles é sensacional. Me ajudou muito", conta.
Recaída faz parte do tratamento, mas há formas de evitar
"Geralmente, as pessoas bebem porque estão tristes ou felizes. Quem falava muito isso era minha esposa: 'Está feliz? Bebe. Está triste? Bebe'. Sempre tinha algo ali que eu precisava beber para ter um prazer. Por isso, procurei buscar essa recompensa com esporte, com a corrida. Sempre que ficava estressado e cansado do dia, saía para correr na rua".
Inclusive, não é à toa que Cristiano resolveu começar a estudar educação física assim que foi se recuperando. Outro ponto, além da prática constante de exercícios, foi o futebol de várzea, um projeto que criou no bairro onde vive, na Vila Zilda. Ele foi técnico do time por mais de 2 anos e virou um exemplo entre os amigos.
Nesse projeto, pude conviver com outras pessoas que lidavam com o alcoolismo, me conheceram enquanto alcoólatra e que me admiravam por conseguir parar. Sinto essa necessidade e obrigação de ser um exemplo. Cristiano Marques de Oliveira
Embora não seja o caso de Cristiano, as recaídas fazem parte do tratamento, segundo a médica da Unifesp.
"É absolutamente normal. O alcoolismo é uma questão crônica. Não é só parar de beber e tchau. Tanto que no AA [Alcoólicos Anônimos], a pessoa sempre fala quantos dias está sem beber. Precisamos entender a dependência e essa compulsão como algo crônico. É algo para tratar a vida toda", reforça a psiquiatra.
O que pode ajudar a evitar as recaídas?
O esporte foi um ponto essencial para Cristiano, tanto que ele virou bodybuilder (fisiculturista). Além disso, ele usa as redes sociais para compartilhar sua história e todos os benefícios após a mudança. No geral, cada pessoa vai ter um caminho na recuperação do alcoolismo, identificando os principais gatilhos que o levam para a dependência.
Um ponto levantado pelo presidente do Cisa é o "cuidado com o sucesso". "Esse paciente para de beber, muda a vida, perde peso, volta a trabalhar, ganha dinheiro e, no geral, se sente bem. Nessa história, ele pode se perder e voltar a beber. Por isso o 'cuidado com o sucesso'", explica.
Abaixo, veja outras dicas que podem ajudar:
- Relembrar todo o impacto negativo que a dependência já causou
- Identificar gatilhos e evitar as "armadilhas"
- Procurar ajuda especializada
- Buscar tratamento para outros transtornos (se for o caso), como depressão e ansiedade
- Participar de grupos de apoio, como o AA (Alcoólicos Anônimos)
- Evitar locais onde as pessoas consomem bebida alcoólica
- Não ter bebidas alcoólicas em casa
- Praticar atividade física
- Buscar novos hobbies
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