Ela nasceu com problema cardíaco e hoje tem 2 corações que batem como um só
Victória da Silva, 21, nasceu com um problema congênito no coração chamado anomalia de Ebstein. À época, os médicos disseram que não havia o que ser feito. Com 12 anos, e a saúde bem deteriorada, os pais da jovem encontraram um médico que aceitou cuidar dela. Em um mesmo dia, Vitória teve 70 paradas cardíacas, e a única saída seria um transplante.
No momento da cirurgia para colocação do novo coração, o médico decidiu deixar o coração da jovem ainda no peito, trabalhando sincronizado com o órgão doado. Atualmente, o coração de Victória já conseguiu 60% de recuperação.
"Meu nome é Victória da Silva, tenho 21 anos e dois corações que batem tão sincronizados que até parecem um só. O nome foi meu pai quem escolheu e, nem por um minuto, ele imaginou que esse nome diria exatamente quem sou: uma vitoriosa. Venci a morte mais de 70 vezes.
Nasci com um problema congênito no coração chamado anomalia de Ebstein, que aparece em uma de cada 10 mil crianças.
Meu diagnóstico foi feito quando, aos 5 meses, os médicos tentavam explicar as causas de uma febre alta que estava difícil de ser controlada e perceberam que meu coração tinha um som 'diferente'.
Preocupados, meus pais me levaram a um cardiologista pediátrico que deu o diagnóstico. Naquela época, o médico entendia que não havia muito o que fazer além de exames periódicos a cada seis meses e tomar muito cuidado para eu não ter cáries nos dentes que poderiam ser um 'ninho' de bactérias, acabar caindo na minha corrente sanguínea chegando ao coração e me deixar doente.
Meu desenvolvimento não foi igual ao das crianças da minha idade. Eu precisava evitar brincadeiras que exigiam algum esforço, pois quando corria ficava cianótica —que é quando os lábios, sob as unhas e a pele da pessoa ficam azul arroxeado— por causa, principalmente, da má oxigenação do sangue.
Depois dos 12 anos, só barranco...
Mesmo assim, consegui sobreviver aos trancos e barrancos até os 12 anos e, depois disso foi só barranco. Meu desempenho na escola que era bom ficou um desastre. Não tinha energia para nada. Dar dois passos era como se estivesse correndo uma maratona e nem fazer uma coisa simples, que é pentear os cabelos, conseguia.
Desesperados, meus pais começaram a procurar um médico que entendesse de anomalia de Ebstein e encontraram, em São Paulo, José Pedro da Silva, do Hospital Beneficência Portuguesa. Na internet, ele era descrito como referência no assunto.
Meu pai e minha mãe não pensaram duas vezes e saímos de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, para a capital, levando meus exames e a maior bagagem do mundo: 'a esperança'.
Meu caso era gravíssimo, o médico aceitou cuidar de mim, mas alertou meus pais que tudo, exatamente tudo, poderia acontecer, até eu vir a morrer.
No hospital, eu era a paciente mais velha, pois as crianças com Ebstein são operadas com, no máximo, com 2 anos, e eu estava com quase 13. Ter sobrevivido até essa idade, sem cirurgia, já era considerado um milagre.
Minha saúde estava tão debilitada que na véspera da primeira cirurgia, passei por 8 procedimentos, desmaiei de cansaço enquanto tomava banho no hospital. Mas era operar ou morrer.
A primeira cirurgia foi um sucesso. Meu coração, porém, estava fraco e acostumado a trabalhar errado, não aguentou e entrou em falência.
Tive mais de 70 paradas cardíacas e mais de 70 vezes os médicos me trouxeram de volta. Eles nunca desistiram de mim e, graças à persistência deles, não morri.
Fiquei internada 150 dias, 30 deles em coma e 5 ligada a um coração artificial de onde só saí para mais uma cirurgia: o transplante.
Dois corações no mesmo peito
Foram 9 horas em que os médicos não se limitaram a colocar um novo coração no meu peito. Eles tiveram que tomar uma decisão: a de não retirar o meu coração, mas, sim, encontrar um espaço ao lado para que ele e o coração doado pudessem trabalhar ao mesmo tempo, bem sincronizados.
Meu médico, José Pedro, tomou essa decisão porque nos 5 dias em que meu coração funcionou com a ajuda das máquinas, ele começou a se recuperar, não apresentava mais arritmia e estava 'operando' com 20% de sua capacidade.
Aos meus pais, o doutor José explicou que fez isso por acreditar que, no futuro, meu coração poderia conseguir funcionar sozinho e o coração doado poderia ser retirado e eu deixaria de tomar um monte de remédios para evitar a rejeição.
Meus problemas, porém, não estavam resolvidos, pois, apesar da nova cirurgia ter sido um sucesso, as seguidas paradas cardíacas causaram uma grave lesão no cérebro que afetou minha fala e meus movimentos.
Um neurologista chegou a dizer que eu ficaria em estado vegetativo para o resto da minha vida. Os únicos que não acreditaram nisso foram os meus pais e o doutor José Pedro. Eles estavam certos. Foram 6 meses no hospital e mais 2 anos em casa fazendo fisioterapia até conseguir aprender a comer sozinha de novo, falar e andar.
Passo todos os anos por avaliações e os médicos já constataram que o ventrículo esquerdo está 100% recuperado e o direito cerca de 60%. O objetivo é, no futuro, quando os dois ventrículos estiverem recuperados, retirar o coração transplantado e eu ficar apenas com o meu coração e parar de tomar a medicação que evita a rejeição.
Nem percebo que tenho dois corações. Levo uma vida normal. Pratico esportes, estudo? vou terminar a faculdade de administração de empresas no fim deste ano, mas é claro que poder um dia parar de tomar os remédios é um sonho.
Na vida, tenho duas certezas: a primeira é que, em breve, vou estar nas mãos do doutor José para a retirada do coração transplantado, pois logo, logo o meu próprio coração vai ter força para trabalhar sozinho e, quanto à outra certeza? milagres existem e o doutor José e a equipe dele são pessoas enviadas por Deus."
O caso de Victória e o método do médico brasileiro
O coração transplantado da jovem fica do lado direito do peito de costas para o coração que já existia. Eles estão ligados pelos átrios esquerdo e direito e pelas aortas e artéria pulmonar. Essa conexão permite que funcionem juntos ou, se por algum motivo um deles parar, de forma independente.
A anomalia de Ebstein é uma doença rara causada por um problema congênito no coração. Essa anomalia faz a válvula tricúspide, uma espécie de porta do coração e que, quando funciona mal não fecha, permitindo que o sangue ao invés de ir para os pulmões e ser abastecido de oxigênio, retorne.
Vários pesquisadores desenvolveram formas e métodos para tratar esse problema, mas a qualidade de vida do paciente e a durabilidade do resultado não eram muito satisfatórias.
Foi então que, enquanto pescava na beira de um rio, José Pedro da Silva, médico cirurgião da BP - A Beneficência Portuguesa de São Paulo, achou uma solução que se tornou padrão mundial para o tratamento da doença e ficou conhecida como "Da Silva's cone repair for Ebstein anomaly" —que, em português, numa tradução livre seria "a técnica do cone do dr. Da Silva para anomalia de Ebstein".
Ele explica que tudo foi uma questão de observar, imaginar e realizar: "Observei os peixes entrando no puçá [espécie de rede com haste para pescar] e vi que, por mais que tentassem, não conseguiam sair. Então imaginei o coração como um puçá e consegui desmontar e montar novamente de um jeito que a válvula tricúspide se fechasse automaticamente depois da passagem do sangue".
A vantagem do procedimento é que o paciente não tem uma prótese implantada no peito e, por isso, não corre risco de rejeição e não precisa ser operado novamente com o passar dos anos. A primeira operação com a técnica do cone foi feita há 28 anos, em 5 de novembro de 1993, a paciente tinha 12 anos na época.
Da Silva Center for Ebstein's Anomaly é o nome de uma ala do Hospital Infantil de Pittsburgh, cidade no estado da Pensilvânia (EUA), que funciona como um centro de estudos e pesquisas vinculado ao Heart Institute do Hospital de Pittsburgh e, também, a forma com que os americanos encontraram para homenagear o médico brasileiro.
O reconhecimento levou em conta vários trabalhos e pesquisas realizados pelo médico e pela equipe que ele treinou no Brasil, nos EUA e em países como Inglaterra, Israel, Índia, Polônia, Colômbia, Alemanha e Paraguai, tendo como base, principalmente, a técnica cirúrgica para o tratamento da anomalia de Ebstein que evita a substituição da válvula tricúspide por prótese artificial, a necessidade dos pacientes terem que ser submetidos a múltiplas cirurgias durante a vida e, no caso das meninas, dá a possibilidade de suportarem uma gravidez.
Para os especialistas americanos, colegas de pesquisa de José Pedro da Silva, a criatividade do brasileiro e o amor pela profissão são únicos. O currículo do médico brasileiro é extenso. Ele foi o primeiro cirurgião da América Latina a fazer com 100% de sucesso o primeiro transplante duplo, quando coração e pulmão são trocados ao mesmo tempo em um único paciente na BP, onde atende há 39 anos. Apesar de morar nos EUA, a cada dois meses Silva vem ao Brasil para uma verdadeira maratona de cirurgias cardíacas.
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