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'Não enxergava luz no fim do túnel': depressão após demissão é diferente?

Ricardo Magalhães teve depressão após ser demitido e se separar, em 2018 - Arquivo pessoal
Ricardo Magalhães teve depressão após ser demitido e se separar, em 2018 Imagem: Arquivo pessoal

Do VivaBem, em São Paulo

05/10/2022 04h00

A depressão ainda é uma incógnita para médicos e pesquisadores, mas acredita-se que a doença seja uma teia, com fatores biológicos, genéticos e emocionais contribuindo para o seu desenvolvimento. O coordenador de vendas Ricardo Magalhães, 42, teve depressão em agosto de 2018, após ser demitido e terminar um relacionamento com a então companheira. A dificuldade financeira junto ao sentimento de "ter perdido utilidade" lhe causaram uma forma intensa da doença, com ideações suicidas.

"Fiquei sem carro, sem salário e comecei a passar extrema necessidade. Tive que deixar meus filhos com a mãe deles, e não temos um relacionamento muito bom", diz. "Logo em seguida, também acabei me separando da minha companheira na época. Não enxergava luz no fim do túnel."

Em alguns casos, é comum que adversidades da vida sejam tão intensas a ponto de colocar a pessoa em um estado depressivo, sobretudo se ela já tem predisposição ao seu desenvolvimento. Mas há diferença quando a doença surge por outros fatores?

Uma classificação usada no passado dividia o tipo de depressão de acordo com a sua causa: de origem endógena, que a considera como algo do organismo —fruto de alterações biológicas e/ou disposições genéticas—, e exógena, quando fatores ambientais desencadeariam o quadro, como separações, luto e estresse, por exemplo.

"A psiquiatra deixou essa separação, porque não tinha diferença em como o profissional deveria agir dependendo do caso, do ponto de vista psicofarmacológico e de psicoterapia", descreve o psiquiatra Carlos Cais, doutor pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e sócio-fundador da healthtech Elibré Saúde Mental.

Especialistas defendem que o tratamento da depressão deve ser multidisciplinar, geralmente aliando medicação ao acompanhamento psicológico, justamente porque as causas também tendem a ser internas e externas.

Acreditar que ela seria apenas uma reposta do organismo, por exemplo, poderia implicar em uma intervenção 100% medicamentosa, isolando o fato de que o paciente também se beneficiaria da terapia, afirma Cais. "Independentemente da origem, a partir do momento em que se tem critérios para a depressão, as condutas são as mesmas", completa o psiquiatra.

Depressão - silhueta de pessoas com nuvens - iStock - iStock
Ricardo descobriu que trabalho é gatilho para depressão
Imagem: iStock

'Não conseguia me sentir valorizado'

Para Ricardo, a principal dificuldade do desemprego foi conviver com o sentimento de ter perdido a sua utilidade de uma hora para outra. "Por me sentir incapaz, era muito complicado, porque não conseguia me sentir valorizado", afirma.

Ele chegou a tentar suicídio em um período em que a dificuldade financeira era intensa e precisou vender móveis em casa para ter algum dinheiro. "Passei dias comendo bolacha, fui comprando só o que dava para comprar, não tinha almoço e janta."

Ele foi encaminhado para tratamento no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), em Cuiabá (MT), onde morava. O acompanhamento incluía consultas com psicólogos e psiquiatras. Alguns meses depois, Ricardo resolveu retornar à cidade onde cresceu, em Barra do Bugres (MT).

Por lá, recebeu a proposta para trabalhar em um depósito de materiais de construção administrado pela família de um colega de infância. A oportunidade veio na melhor hora, mas Ricardo ainda estava inseguro, com receio de não dar conta das tarefas.

Comecei a trabalhar como auxiliar do depósito, só que todo dia não me sentia digno, achava que era responsabilidade demais, me sentia incapaz. Era algo bem complicado psicologicamente, achava que seria mandado embora.

Depois de algum tempo, com mais confiança e quando percebeu ser necessário no trabalho, Ricardo se sentiu melhor. Para ele, a valorização foi essencial para voltar a ter segurança em si.

"Comecei a ser muito solicitado na empresa, o ego fica massageado por ter pessoas que dependem de você, isso me fez sentir muito bem, porque não era mais uma pessoa desnecessária, inútil, além de estar trabalhando com pessoas que valorizavam o meu serviço", comenta.

Ricardo passou dois anos na empresa e depois seguiu para outras oportunidades. Na recuperação, diz que a fé foi muito importante para motivá-lo a acreditar que as coisas se resolveriam.

Hoje, sou gerente de uma loja, consigo acreditar mais em mim, o que não conseguia antes, me sentia um zero à esquerda. As pessoas falam que depressão é falta de Deus e não é, porque era a época em que estava mais próximo de Deus na vida, ia à igreja três vezes na semana.

Quando as coisas melhoraram, ele retomou a guarda dos filhos, uma de suas principais angústias. Também conseguiu reconhecer os sentimentos que viveu ao reviver memórias, sobretudo na figura do pai. Ele morreu em 2004, aos 47 anos, e na época estava desempregado, após um longo período tentando voltar ao mercado de trabalho.

"Acredito que o meu pai também teve depressão. Ele mudou totalmente a pessoa que era depois que perdeu o emprego. Eu sou a cópia dele, bem-humorado, com bastante amizade, mas ele foi se encolhendo, com vergonha de não ter emprego. Quando foi demitido, não arrumou mais nenhum em que ganhasse o mesmo patamar", lembra Ricardo.

Por que algumas pessoas têm depressão após dificuldades?

Reagir com muita tristeza a momentos de adversidades na vida é algo comum. O sentimento é, inclusive, um instinto de proteção, comenta o psiquiatra Raphael Boechat. "Quando se passa por algo ruim, há o mecanismo biológico de autodefesa que é ficar triste para aprender e não passar por aquilo de novo. Nós precisamos ter tristeza, não existe vida sem ela, mas é uma coisa transitória", afirma o também professor da UnB (Universidade de Brasília).

cérebro - iStock - iStock
Alguns perfis de pessoas são mais vulneráveis a desenvolver a doença
Imagem: iStock

Isso também é definido como um transtorno de adaptação ou ajustamento, que pode exigir intervenção com psicoterapia para ajudar a elaborar as memórias negativas.

Para algumas pessoas, no entanto, as situações são carregadas de autocobrança. É o caso, por exemplo, de lutos com muita culpa, separações e demissões em que há percepção pejorativa sobre si. Esses casos ligam o alerta para desfechos patológicos, incluindo a depressão.

Situações em que há desesperança excessiva, sem perspectiva de que o sofrimento terá começo, meio e fim também despertam atenção para o desenvolvimento de quadros emocionais mais sensíveis. Assim como apresentar anedonia, a dificuldade em sentir prazer nas atividades antes positivas e se motivar para realizá-las —comportamento que atinge 70% dos casos de depressão, segundo a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria).

"Além disso, algumas pessoas são tocadas em particular por algum evento. Por exemplo, alguns indivíduos conseguem lidar muito bem com uma demissão, mas reagem com depressão significativa diante de uma separação. Isso pode sinalizar um aspecto particularmente delicado da sua história de vida que está sendo revivido com o estresse atual", descreve o psiquiatra Amaury Cantilino, doutor pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

Procure ajuda

Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

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Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferente do informado, Ricardo morava em Cuiabá e não em Campo Grande. A informação foi corrigida.
Diferentemente do informado, Campo Grande fica no Mato Grosso do Sul (MS) e não em Mato Grosso (MT). O texto foi atualizado.