'Médico disse que eu viveria até os 13 anos': como é ser um adulto com AME?
A AME (atrofia muscular espinhal) é uma doença rara, genética e sem cura que afeta os neurônios motores. Mesmo identificada no final do século 19, muitas descobertas sobre a condição são recentes, incluindo os remédios para aliviar a progressão e os sintomas da doença —apresentados a partir de 2016.
Antes deles, porém, uma legião de pacientes viveu sem perspectiva de medicamentos efetivos e o tratamento envolvia basicamente fisioterapia. Foi assim com a publicitária e empreendedora Ingrid Gutierre, 39, diagnosticada com AME tipo 2 quando tinha 1 ano. Ao dar a notícia, o médico informou à família que ela viveria até o início da adolescência.
O médico disse que eu viveria até os 13 anos e que meu irmão teria a doença, nenhuma das duas coisas aconteceu e eu falo que quase mandei o convite do meu casamento para ele. Ingrid Gutierre
Com poucas informações sobre a condição e uma perspectiva assustadora, a família buscou outras pessoas com a doença para entendê-la melhor. Uma tia de Ingrid que tinha acesso à internet encontrou uma mulher nos EUA, com quem trocou algumas cartas.
"Ela disse que a vida toda esperou o momento em que iria embora, mas os pais faleceram e ela estava viva e bem", conta.
Isso trouxe calma aos pais de Ingrid e o entendimento de que poderia existir futuro além dos próximos 12 anos. Veio também o pensamento sobre a importância de viver o presente, que lhe deu uma criação baseada no "não deixe para amanhã o que pode fazer hoje".
"A minha sorte foi que tive família que enxergou o outro lado. Se fossem 13 anos, seriam os melhores 13 anos. A gente nunca deixa a felicidade para o depois. A fé da minha família e o jeito leve não me deixavam naquela incerteza de não saber o que seria de mim. Por causa dessa naturalidade, nunca me limitei", completa Ingrid, que usa cadeira de rodas desde a infância devido à fraqueza muscular característica da doença.
Chegaram os 13. Depois, os 14, 15 e por aí foi. Hoje, aos 39, conta que nunca deixou de viver nada por causa da AME. Fez faculdade, foi para baladas e comemorou alguns bons Carnavais no meio de multidões. Tem dois filhos, de 6 e 10 anos. Gravidezes tranquilas, apenas com indicação de cesárea, por conta da ausência de força muscular para um parto normal.
Sobretudo após se tornar mãe, Ingrid diz gostar da visibilidade por ser uma forma de conscientizar e ajudar famílias que passaram pelo baque do diagnóstico, como a sua.
"Quando minha mãe soube, ela precisou desse apoio. E eu quero ser essa pessoa, principalmente agora que eu sou mãe. Poder esquentar o coração de alguém, mostrando que tem perspectiva, que a AME é só uma característica", afirma.
Remédios de alto custo amenizam sintomas
Ao todo, há cinco graus de AME —do 0 ao 4. O 0 é mais grave e costuma dar sinais nos primeiros meses de vida. A partir dele, a doença tende a apresentar sintomas mais tardiamente a cada um dos tipos, sendo que nas formas 3 e 4 eles podem aparecer até mesmo na adolescência, explica o geneticista David Schlesinger, CEO e cofundador da Mendelics.
"Nós temos dois tipos de neurônios motores: um que sai do córtex motor e desce pela medula espinhal até o nível certo que vai para o braço, perna e ali faz conexão [sinapse] com um segundo neurônio motor, o inferior, que sai da medula espinhal e vai até o músculo", diz Schlesinger.
Na AME, há morte do neurônio motor inferior, importante não apenas para ativar o movimento, mas para dar estrutura ao músculo, que acaba atrofiando. É importante lembrar que os pacientes com a doença não perdem os movimentos, mas, sim, a força para realizá-los e por isso muitos precisam usar cadeira de rodas, por exemplo.
Para crianças, a indicação de tratamento é o zolgensma, do laboratório Novartis, terapia gênica de aplicação única que chegou ao Brasil em 2017 e é considerado o remédio mais caro do mundo —custando cerca de R$ 6,5 milhões. A sua administração é indicada apenas até os 2 anos, repetindo os protocolos usados em testes clínicos.
Já em adultos, uma das principais abordagens é o spinraza, da farmacêutica Biogen, que limita a degradação dos neurônios e também é uma medicação de alto custo —comercializado ao Ministério da Saúde por R$ 160 mil e em outras transações por cerca de R$ 400 mil. As aplicações ocorrem na medula espinhal, o que pode tornar o processo incômodo para alguns pacientes.
Há ainda outras medicações, incluindo opções via oral, caso do risdiplam, da suíça Roche —que deve ser tomado todos os dias pelo resto da vida.
De maneira geral, os remédios para adultos não conseguem recuperar os neurônios perdidos, ou seja, o paciente não retoma os movimentos que perdeu. Porém, eles são capazes de aumentar a força muscular, dando mais facilidade para engolir e menos cansaço. Há ainda a função de preservar a integridade dos membros superiores, como o movimento das mãos, dada a característica progressiva da doença.
Ingrid toma o spinraza desde dezembro de 2019 e sentiu ganhos na parte respiratória e de equilíbrio, além de melhora na deglutição.
Leandro ficou sem tratamento por sete anos
O gestor público Leandro Ribeiro da Silva, 39, foi diagnosticado com a AME tipo 3 quando tinha 3 anos. À época sem medicação, o tratamento envolvia hidroterapia, terapia ocupacional e fisioterapia.
Aos 7, porém, um baque: a mãe morreu durante viagem dos dois à Bahia, onde ela tinha família. "Chegou um momento em que minha mãe estava cansada por todos os cuidados que a doença exigia e quis descansar, ver a família", relembra.
Leandro foi morar com os avós maternos no interior do estado e ficou sem acesso a qualquer tipo de acompanhamento. Quando tinha 14 anos, devido à progressão do quadro, perdeu a força para andar. Foi então que uma tia o trouxe de volta a São Paulo.
Em uma época em que a acessibilidade ainda era limitada e o preconceito muito maior, o então adolescente ficou meses sem ir à escola porque nenhuma instituição o aceitava por usar cadeira de rodas.
Hoje, 36 anos após o diagnóstico, Leandro trata desde o ano passado a doença com um medicamento pela primeira vez. Ele também faz aplicações do spinraza, que deve ser administrado a cada quatro meses até o final da vida.
"Em situações como a minha, há ganho de energia física, respiratória. O tratamento ocorre aliado à questão terapêutica, mas o medicamento ajuda muito nas condições clínicas", comenta o gestor público.
Olhando para o futuro
A família da jornalista e influenciadora digital Ana Clara Moniz, 22, também teve um susto com o diagnóstico de AME tipo 2, quando ela tinha 1 ano. Isso acontece porque, geralmente, a confirmação da doença é seguida por um alerta sobre a expectativa de vida das crianças.
Segundo o médico que diagnosticou Ana, ela "não passaria dos 2 anos". Hoje, ao lado de Ingrid, ela integra a campanha "Se o simples complicar, investigue", para conscientização da AME em jovens e adultos.
"Na verdade, ninguém consegue saber o que vai ser do futuro, se vamos ter o dia de amanhã, mas eu cresci com a perspectiva de que a minha expectativa de vida seria muito mais baixa do que a de qualquer outra pessoa", afirma.
Essa interpretação lhe deu a ideia de que o futuro era algo pouco possível. Mas um dia tudo mudou. Ana começou a fazer o tratamento com medicação oral no começo deste ano e descobriu que aquilo ajudaria a frear o avanço da AME.
"Cresci sabendo que a doença evoluía. Saber disso foi muito chocante porque pensei: 'Ué, e agora?'. Não que seja ruim, jamais, mas o que eu penso a partir disso?", comenta.
A mudança de pensamento chegou junto à melhora de sintomas. Ela se deu conta disso um dia quando estava na casa de amiga com outros conhecidos e a mãe.
"Pedi um copo de água e me deram um copo de vidro cheio até a boca. Nunca tive força para levantar um copo de vidro, mas eu peguei, tomei e nem me liguei", lembra. "Quando olho para o outro lado da sala, vi a minha mãe. Tive um momento de choque, parei com o copo na boca, olhei para ela, que me olhou e percebeu também, virou toda uma comoção."
Agora, Ana diz que se vê sem saber o que fazer, "no melhor dos sentidos". "Estou sem saber o que esperar e sonhar por pensar que posso planejar coisas para o futuro. Antes, deixava no lugar do sonho e agora elas podem acontecer, porque mesmo tendo AME a minha doença não vai piorar tanto como pioraria sem o medicamento", diz.
Fontes: David Schlesinger, neurologista, geneticista, doutor em ciências biológicas pela USP (Universidade de São Paulo), CEO e cofundador da Mendelics e Erlane Marques, pediatra, geneticista do Hospital Infantil Albert Sabin (CE) e doutora em ciências da saúde pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
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