Topo

Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Ela conta como foi cirurgia de redesignação sexual: 'Sonhava em ter vagina'

iStock
Imagem: iStock

Bárbara Therrie

Colaboração para VivaBem

09/10/2022 04h00

Desde os 8 anos, Daniella* se sentia diferente, ela tinha um corpo de menino, mas queria ser uma menina. "Não entendia muito bem o que era e por que desejava as coisas do universo feminino."

Com o passar do tempo, Dani foi se descobrindo, casou-se, teve filhas gêmeas, mas apesar da família que construiu, não se sentia feliz. Após mais de 20 anos guardando seu "segredo" e vivendo em um corpo que não a representava, ela fez a transição de gênero, se assumiu como mulher trans e se submeteu a cirurgia de redesignação sexual.

Hoje, aos 34 anos, ela diz: "Paguei um alto preço por isso, meus pais romperam comigo, meu casamento acabou, mas realizei meu sonho e me sinto realizada". Conheça a história dela:

"Lembro de um dia em que estava brincando com a minha irmã, ela colocou um vestido em mim e eu gostei. A partir dali, surgiu a vontade de usar roupas femininas, não podia ficar sozinha em casa, que ia no guarda-roupa da minha mãe e da minha irmã. Provava as roupas delas, ficava me olhando e me admirando no espelho, era minha brincadeira favorita.

Na adolescência, passei a usar a maquiagem delas e a pintar as unhas escondida, depois tirava e guardava tudo no lugar. Me julgava e me sentia culpada, dizia para mim mesma que era errado e que não podia mais fazer aquilo, mas continuava fazendo.

Nunca tive trejeitos femininos, sempre me comportei como menino, e tinha desejo por mulheres, o que me gerava uma grande confusão na cabeça. Me perguntava: 'Como é possível eu sentir atração por mulheres e querer ser uma mulher também?'.

Aos 15 anos, comecei a namorar com a minha ex-mulher. Biologicamente falando, meu órgão genital masculino era funcional, sentia prazer e tinha ereção durante a penetração, mas não gostava dele no dia a dia, a imagem dele me incomodava, não gostava de vê-lo e nem do volume que ele tinha.

Aos 18, eu e minha ex-mulher nos casamos, imaginei que, com o casamento, o desejo de ser mulher ia parar e, finalmente, ia me sentir bem como homem, mas isso não aconteceu.

Não tinha coragem de me abrir para a minha ex, ela não desconfiava de nada, mas ao longo dos anos fui deixando escapar quem eu era. Durante a relação sexual, eu tinha algumas fantasias, colocava calcinha e sutiã, mas ela não gostava e ficava desconfortável.

Após dois anos de casadas, nossas gêmeas nasceram e a pressão para honrar as meninas, ser um homem e pai de família cresceu mais ainda. Tentei mudar quem eu era, fiz diversas promessas, entrei em depressão e quis desistir da minha própria vida, achava que a morte era o melhor caminho para mim.

Com o passar dos anos, fui contando mais algumas coisas para minha ex, não tudo, mas ela já sabia que eu tomava hormônios femininos desde a adolescência e que gostava de usar roupas de mulher, isso foi desgastando nosso relacionamento.

Sem ter com quem falar abertamente e pedir orientação, ficava na internet pesquisando sobre o assunto, vendo entrevistas e documentários de especialistas e de pessoas que se sentiam como eu. Demorei muito tempo para entender que era uma pessoa transexual.

Em 2016, procurei um centro de referência que atende pessoas transgêneros e iniciei minha transição de gênero, aos 28. Fiz o tratamento hormonal e acompanhamento com psicólogo, endocrinologista e fonoaudiólogo.

Após décadas vivendo presa em um corpo que não me representava, coloquei um fim nessa prisão e me assumi como mulher trans para a sociedade aos 30 anos. Alterei meu nome e gêneros nos documentos.

Paguei um alto preço por essa decisão, meus pais romperam comigo e meu casamento de 13 anos acabou. Eu e minha ex nos separamos de corpos, mas continuamos morando na mesma casa para criar nossas filhas, temos uma relação de respeito, o amor que tenho hoje por ela é de amiga. Ela e as meninas apoiaram minha escolha, desejam que eu seja feliz.

Em 2019, três anos após o início da transição, fiz a cirurgia de redesignação sexual. Embora já vivesse como mulher, o pênis me incomodava e todas as estratégias que utilizava para esconder o volume me causavam dor: eu o repuxava e o comprimia por entre as coxas, colava com esparadrapos ou colocava uma calcinha bem apertada, tipo cinta.

Sonhava em ter uma vagina, mas confesso que fiquei com medo de fazer a cirurgia e dar errado, ter alguma complicação e morrer, ou até mesmo me arrepender, mas pensei bastante e, em 2019, consegui fazer a redesignação sexual pelo meu plano de saúde.

Na técnica a que fui submetida, a cirurgia genital afirmativa de gênero, foi utilizada a própria pele do pênis para fazer o canal vaginal, e foi construída uma neovagina e um neoclitóris. O procedimento em si foi tranquilo, fiquei três dias internada, fiz repouso de um mês.

Antes da cirurgia, só tinha me relacionado sexualmente com mulheres, mas depois dela passei a me relacionar com homens. Só para deixar claro, a orientação sexual não tem nada a ver com a identidade de gênero e nem com a redesignação sexual, mas isso foi algo que mudou em mim.

Quando vivia no corpo de homem, sentia mais desejo e atração por mulheres. Hoje vivo no corpo de mulher e sinto mais desejo e atração por homens.

Geralmente, dois meses após a redesignação sexual a pessoa já está liberada para transar, mas, no meu caso, demorei muito mais, fiquei insegura e busquei uma pessoa especial.

Algumas coisas mudaram após a cirurgia, faço dilatação vaginal e uso lubrificante. Durante a relação sexual, chego ao orgasmo, mas o prazer que sinto com o órgão genital feminino é diferente do que sentia quando tinha pênis. O próximo passo agora é colocar silicone nos seios.

A jornada até aqui foi difícil, ainda hoje não entendo porque nasci transexual, mas me aceito e sei que ninguém pode mudar quem realmente sou. Acredito que há um propósito em tudo isso.

Mudei fisicamente, mas não mudei meu caráter. Hoje, me sinto feliz, realizada e com garra e fé para continuar enfrentando os obstáculos e lutando pelos meus sonhos, quero encontrar um novo amor, me casar e adotar uma criança."

A pedido de VivaBem, o urologista Ubirajara Barroso Jr., chefe da divisão de cirurgia urológica reconstrutora e urologia pediátrica do Hospital da UFBA (Universidade Federal da Bahia) tira 8 dúvidas sobre a redesignação sexual:

1. O que é a cirurgia de redesignação sexual?
Conhecida como cirurgia genital afirmativa de gênero, é um procedimento cirúrgico realizado no homem e na mulher trans a fim de tornar o órgão genital o mais parecido possível com o órgão típico do gênero identificado, ou seja, um falo masculino para o homem trans e uma neovagina para a mulher trans.

2. Quais os critérios para fazer a redesignação sexual?
A mulher ou homem trans precisa ter pelo menos 18 anos e vivência de pelo menos dois anos com o gênero identificado, incluindo o nome social. É necessário um acompanhamento multidisciplinar, incluindo a liberação da psicóloga/psiquiatra para a cirurgia.

Pelo SUS (Sistema Único de Saúde), há necessidade de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico por pelo menos dois anos. Geralmente, quem chega à cirurgia já passou pela transição de gênero por meio de hormonização e cirurgias plásticas afirmativas.

3. Como é feita a redesignação sexual em homens trans?
Pode-se usar o tecido do próprio órgão sexual, procedimento conhecido como metoidioplastia. Ou confeccionamos um pênis por meio de retalhos do antebraço, pernas, abdome ou coxa, a chamada neofaloplastia.

O órgão genital feminino é muito parecido com o masculino, só que em miniatura, o clitóris assemelha-se à glande e há dois cilindros capazes de ereção, que são os corpos cavernosos. Na metoidioplastia, mobilizamos para fora os corpos cavernosos e fazemos um pênis, mantendo a capacidade de ereção e sensibilidade.

A vantagem é a preservação da ereção e a capacidade de urinar de pé, importante para muitos homens trans. A desvantagem é o tamanho que fica, na maioria das vezes, insuficiente para a penetração.

Na neofaloplastia, o tecido de outra parte do corpo é mobilizado à região do órgão genital e esculpido no formato de um pênis. A vantagem é o tamanho genital maior. A desvantagem é a sensibilidade menor que na metoidioplastia, e a necessidade de implante de prótese peniana inflável, já que não há tecido erétil com essa técnica.

4. Como é feita a redesignação sexual em mulheres trans?
A clitoroplastia é realizada por meio da redução da glande, preservando-se a sua inervação e vascularização e, consequentemente, mantendo a sensibilidade. A uretra deve ser reduzida e implantada no períneo na mesma posição das mulheres cisgênero (que se identificam com o gênero de nascimento). A neovagina normalmente é realizada utilizando a pele do pênis que formará o canal vaginal. No entanto. quando esse canal falha, tecido intestinal pode ser utilizado.

5. Quanto tempo após a redesignação sexual a pessoa está liberada para ter relações sexuais e quais os cuidados?
Geralmente, a(o) paciente está liberada(o) para sexo com penetração dois meses após a cirurgia. Entre os cuidados para as mulheres trans, é necessária dilatação vaginal diária, de pelo menos 30 minutos, provavelmente por toda a vida, se não houver atividade sexual com penetração frequente.

6. É possível ter ereção e atingir orgasmo após a redesignação sexual?
No homem trans, a ereção é somente obtida a quem se submeteu a metoidioplastia. Na neofaloplastia, é necessária uma prótese para penetração. O orgasmo é possível tanto no homem como na mulher trans em 60% a 70% dos casos.

7. Por que a redesignação sexual é irreversível?
Porque na mulher trans os corpos cavernosos (tecidos eréteis) são amputados para a confecção da neovagiva. No homem trans, se a vagina for retirada (vaginectomia), também se torna um procedimento irreversível.

8. A redesignação sexual pode ser feita pelo SUS e pelo plano de saúde?
De acordo com o Ministério da Saúde, cinco hospitais do SUS estão habilitados para realizar cirurgias de redesignação sexual, e três unidades fazem acompanhamento em crianças e adolescentes de 3 a 17 anos.

Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), as filas de acesso para a redesignação sexual variam em mais de 10 anos.

Na rede privada, o procedimento não é barato, o que dificulta o acesso e faz com que pessoas busquem vias alternativas, em locais não confiáveis, incrementando a taxa de complicações. Por conta disso, muitas mulheres trans amputam o próprio genital, numa atitude desesperada de se assemelhar ao gênero identificado.

É preciso um olhar empático e acolhedor para as pessoas trans e saber da necessidade premente de realizar a cirurgia genital afirmativa.

*A entrevistada preferiu não divulgar o sobrenome.