Educação emocional: além de palavras, Alice aprende a nomear sentimentos
Foi por volta dos dois anos de idade que Alice, a bebê que ficou conhecida na internet por falar palavras difíceis como "paralelepípedo" e "oftalmologista", começou a dizer, toda vez que chorava, que "estava chateada". Ou, em momentos de alegria, que se sentia "feliz".
Além de falar sobre as próprias emoções, a criança, que hoje tem três anos, também consegue perceber por que determinada situação fez com que ela se sentisse de uma maneira ou de outra. "Por exemplo: eu sugiro alguma coisa, como 'quer ler uma história comigo?', e ela diz 'não, eu não quero, eu tô triste porque o papai não fez o negócio para mim'", conta ao VivaBem a fotógrafa Morgana Secco, mãe de Alice.
Se é comum ouvir um adulto dizendo que está se sentindo triste ou feliz, o mesmo não se pode afirmar categoricamente sobre as crianças. Embora alegria, tristeza, medo, raiva e nojo sejam emoções consideradas universais —todo mundo já sentiu ou irá sentir ao longo da vida—, nem sempre os mais novos conseguem identificar o que estão sentindo ou chamar os sentimentos pelo nome.
Mas isso está mudando. "Ao contrário das gerações passadas, que cresceram ouvindo 'engole o choro' ou se assustam só de ver um prato quebrar, porque na infância foram repreendidas quando isso acontecia, estamos diante de uma leva de crianças que, quando quebram um prato, por exemplo, dizem 'prato quebra mesmo, não tem problema, né mãe? vamos limpar', justamente porque estão crescendo acostumados a ter as emoções acolhidas, e não reprimidas, pelos pais", avalia a psicóloga Márcia Tosin, especialista em comportamento infantil.
A experiência de Alice
A facilidade com que Alice fala sobre os próprios sentimentos, afirma Morgana, não surgiu do dia para a noite. "Muita gente acha que, porque ela conseguia falar desde muito cedo, também conseguia expressar o que sentia ou o que queria. Mas muitas vezes não, porque pode ser confuso para uma criança entender o que está sentindo", diz.
A brasileira radicada em Londres, que frequentemente recebe perguntas nas redes sociais sobre como incentivar uma criança a expressar as próprias emoções, conta que, junto ao marido, sempre estimulou a filha a manifestar e dar nome ao que estivesse sentindo. Quando chorava, por exemplo, os pais não tentavam calar a criança, mas "acolhiam o que ela sentia".
Após o choro, era um costume explicar à filha o motivo que poderia ter causado as lágrimas, com frases como "olha, você ficou frustrada porque não conseguiu fazer isso aqui" ou "você está chateada porque queria fazer isso e não é possível agora", além de compartilhar que eles próprios também já tinham se sentido assim: frustrados ou tristes. Embora na época ela não entendesse completamente o que aquilo significava, de tanto se repetir, o comportamento dos adultos repercutiu na criança.
Menos deprimidos e mais empáticos: como a educação emocional pode ajudar as crianças?
A abordagem adotada pelos pais de Alice faz parte de uma estratégia conhecida como educação ou alfabetização emocional. "Uma criança pode ser considerada 'alfabetizada' emocionalmente quando seus sentimentos são acolhidos pelos pais e ela consegue identificar tanto as emoções dela quanto a de seus pares", resume a psicóloga Márcia Tosin.
O termo educação emocional foi popularizado no final da década de 1990 pelo psicólogo e jornalista científico Daniel Goleman. O norte-americano, considerado "pai da inteligência emocional", reforçou a ideia de que, se forem repetidos várias vezes durante a infância e na adolescência, hábitos de regulação das emoções podem ajudar a moldar circuitos cerebrais e, por isso, a infância é um momento decisivo para que sejam traçadas as tendências emocionais que irão marcar a vida adulta.
A importância de não desprezar as emoções dos mais novos foi citada em um relatório divulgado no final de 2021 pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).
O documento alerta que as repercussões da pandemia poderão ser sentidas pelas crianças e adolescentes por muitos anos e defende que é necessária uma abordagem intersetorial, incluindo as famílias, escolas e governos para prevenção, promoção e cuidados da saúde mental desse grupo. Aos pais, uma das recomendações é fomentar a cultura da "escuta sem julgamentos, levando a sério as experiências emocionais de crianças, adolescentes e jovens".
Segundo Roberto Santoro, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Saúde Mental da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), uma pessoa que não teve suas emoções acolhidas pelos responsáveis quando era criança tem risco maior de desenvolver transtornos mentais na adolescência ou vida adulta.
O psiquiatra e especialista em saúde mental infantil explica que, assim como o bebê nasce dependente dos cuidados dos adultos para se desenvolver fisicamente, também vem ao mundo em uma situação de absoluta dependência emocional e mental em relação aos pais e, por isso, precisa receber não só cuidados físicos, mas também emocionais. O cenário se estende até a adolescência.
No futuro, diz o médico, que também é chefe do Serviço de Saúde Mental do Hospital Jesus (RJ), a expectativa é de que uma criança que recebeu cuidados emocionais se torne um adolescente e, depois, adulto capaz de fazer isso por si próprio, como se "internalizasse" a função, antes exercida por seus responsáveis, de acolher e organizar as emoções. "Isso é um fator de proteção em relação a transtornos mentais, porque a pessoa aprende a gerenciar os próprios estados emocionais", avalia o psiquiatra.
Espera-se que quem cresceu sendo estimulado a prestar atenção nas próprias emoções também esteja mais atento aos sentimentos das outras pessoas e aberto a respeitar o que seus colegas pensam ou sentem —outro ponto considerado central na alfabetização emocional.
O que significa educação emocional na prática
Algumas estratégias de alfabetização emocional podem variar de acordo com a faixa etária. Recursos lúdicos, como filmes e livros, ajudam a estimular crianças menores a identificar os próprios sentimentos.
Essa foi uma das táticas adotadas por Morgana Secco com Alice. "Está ficando vermelha?", perguntava a mãe quando a bebê parecia estar com raiva, em
referência a um livro infantil em que cada cor simboliza um sentimento. Citando a cor que representava a calma na história fictícia, sugeria: "Vamos fazer alguma coisa para você ficar verde outra vez?".Conforme a criança for crescendo, outro passo é ajudá-la a identificar
o que cada emoção provoca no corpo humano. Brincadeiras de mímica podem ajudar no processo. "Os pais podem imitar um tubarão que está nervoso e mostrar que, por causa dessa emoção, o animal treme ou se esconde debaixo d'água. E, então, ir incentivando a criança a pensar em como ela mesma fica quando está brava, por exemplo", sugere a psicóloga Márcia Tosin.Com o tempo, espera-se que a própria criança se torne capaz de diferenciar quando estiver sob a ação de uma emoção que está lhe fazendo mal e, eventualmente, compartilhe o que está sentindo com um adulto.
"Não tem uma fórmula. O segredo é ter uma postura curiosa e acolhedora em relação às crianças e à manifestação do que eles estão sentindo", afirma a educadora parental Lua Barros.
Acolhimento não é sinônimo de 'permissividade'
Nem mesmo aqueles sentimentos popularmente tidos como "ruins", como a raiva, devem ser menosprezados, pois fazem parte da vida. Acolher, no entanto, não pode ser confundido com permissividade. Pelo contrário: em algumas situações, será necessário mostrar à criança que a forma com que ela expressou seus estados emocionais pode ter sido inadequada, porque acabou desrespeitando alguém, por exemplo.
Isso, conforme explica Barros, também faz parte da alfabetização emocional.
Mãe de quatro crianças, a especialista em inteligência emocional cita um exemplo pessoal. Ela havia feito sopa para o jantar e uma de suas filhas, que não gosta do prato, começou a gritar com a mãe, repetindo sem parar: 'eu não quero tomar sopa, eu não gosto de sopa'.
Depois de respirar fundo, veio a resposta de Barros. Primeiro, ela afirma ter validado o sentimento da filha: 'olha, está tudo bem você não gostar de sopa'. Em seguida, tentou ajudar a criança a ver que a atitude não havia sido adequada e sugeriu outro caminho para a expressão da raiva: 'mas isso não te dá o direito de gritar comigo. Então, você quer gritar? Pega o seu travesseiro e vai gritar, vai dançar, vai correr, vai fazer alguma coisa'.
Como pais, às vezes achamos que tudo é sobre nós: 'meus filhos estão com raiva de mim, eles estão fazendo isso para me deixar chateada'. Mas é preciso entender que as emoções dizem respeito às crianças e não a nós. Nosso papel é apoiar esse sentir e margear para que ele não se manifeste de forma desrespeitosa ou de forma que prejudique a criança. Lua Barros, educadora parental
A educadora considera importante incentivar os filhos a encontrarem o caminho mais adequado para canalizar o estresse, respeitando a personalidade de cada um, o que pode incluir ouvir música, dançar ou brincar, por exemplo.
Opinião semelhante é compartilhada por Morgana Secco. No caso da bebê Alice, ela conta que, mesmo sem ter total consciência, a criança sempre pediu para mamar ("mamazinho") quando estava triste por alguma razão. Numa ocasião em que estava chateada por ter caído e se machucado, porém, seu pai perguntou se a criança queria ler um livro para se acalmar, e a resposta foi positiva. Desde então, Alice começou a pedir para ler um livro toda vez que está incomodada, pois percebeu que a leitura distrai e acalma.
'Engole o choro' versus acolhimento: como lidar com o choque de gerações
Tanto a fotógrafa Morgana Secco quanto a educadora Lua Barros afirmam ter adquirido conhecimentos sobre inteligência emocional já na vida adulta.
"Acho que a educação tradicional, que a maioria do pessoal que viveu nas gerações anteriores recebeu, infelizmente não dava essa abertura ou liberdade para a criança se expressar e ser acolhida", analisa Morgana.
Ela conta que, como Alice nasceu em uma fase em que a fotógrafa já se sentia mais amadurecida emocionalmente, isso pode ter influenciado na maneira com que a mãe de primeira viagem decidiu olhar para a saúde emocional da criança. Morgana conta que não fez nenhum curso sobre inteligência emocional, mas gosta de ler sobre o assunto e sempre procura prestar atenção em suas próprias emoções.
"Eu acho que, de tanto que na infância eu senti 'cara, eu só quero me expressar e não tenho esse espaço', isso passou a ser importante para mim quando me tornei adulta, para que a Alice pudesse ter esse espaço, sem bloqueios", diz Morgana. "Quem me dera ter tido essa liberdade emocional desde a infância."
Já Barros decidiu se aprofundar no assunto após o nascimento de seu quarto filho, época em que, diante de um desequilíbrio na relação entre as crianças, a mãe diz ter recorrido a práticas que hoje não reproduz mais, como o grito e o castigo.
A moradora de Recife (PE), que hoje se dedica a ajudar outros pais a adotarem formas mais acolhedoras de exercer a parentalidade, observa que, como muitos adultos foram ensinados na infância a limitar suas próprias emoções, corre-se o risco de acabar reproduzindo, inconscientemente, o mesmo comportamento com a chegada dos filhos.
Esse ciclo só pode ser quebrado a partir do momento em que os responsáveis dão um passo para trás e buscam entender a origem de suas próprias emoções, diz Barros. Cursos sobre inteligência emocional são válidos, mas não são o único meio para colocar a ideia em prática. Algo que não depende de ferramentas externas é a prática de observar e questionar a si próprio, diz ela. "Por que o choro do meu filho me incomoda tanto: será que eu chorei pouco na infância?", os pais podem se perguntar.
"A gente precisa ser curioso sobre as nossas próprias emoções para, então, sermos curiosos sobre o que sentem as nossas crianças e ajudá-las a lidar com seus sentimentos", afirma a especialista. "É fundamental pensar nos reflexos na vida adulta de uma criança que não foi autorizada a sentir ou a chorar, por exemplo. É preciso pensar nos reflexos de uma sociedade que não cuida do que sente."
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