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'Sensação de politização', diz conselheiro do Einstein sobre cannabis x CFM

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De VivaBem, em São Paulo

26/10/2022 04h00

O CFM (Conselho Federal de Medicina) decidiu suspender temporariamente, nesta segunda-feira (24), a resolução que restringia a prescrição de canabidiol, composto feito a partir da planta cannabis sativa. O conselho havia editado a norma havia dez dias e enfrentou fortes críticas de especialistas, pacientes e associações.

Em nota, o órgão esclareceu que os termos da norma do dia 14 de outubro estão suspensos, "ficando sob responsabilidade do médico a decisão pela indicação do uso do canabidiol nas apresentações autorizadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)".

Na semana passada, o CFM já havia decidido rediscutir o tema por meio de consulta pública disponível até o dia 23 de dezembro. Pela norma agora suspensa, o conselho autorizava a categoria médica a prescrever o produto somente para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente associadas às síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut e ao complexo de esclerose tuberosa.

Claudio Lottenberg, árduo defensor da pesquisa científica e um pesquisador e entusiasta dos canabinoides medicinais, crê que a decisão do CFM levanta um cenário "no mínimo, questionador".

Para ele, que é oftalmologista e se considera também um gestor de saúde, já que atualmente é presidente do Conselho da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein e presidente institucional do Instituto Coalizão Saúde, "a sensação que dá é que existe por trás de tudo isso uma politização".

Sobre o futuro da saúde brasileira, Lottenberg, que foi secretário municipal de saúde de São Paulo (gestão José Serra), integrou o Conselho Nacional de Assistência Social no governo FHC e o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional no governo Lula, "tudo pode ser consertado, basta mudar um líder, uma pessoa que tem um discurso alinhado com a realidade e com a boa ciência".

Leia abaixo, na íntegra, a entrevista que o médico concedeu a VivaBem:

VivaBem: A impressão que dá, do lado de quem defende os canabinoides medicinais, é de que são milagrosos e servem para tudo. Isso pode acabar atrapalhando o processo de naturalização e amplo uso deles?

Claudio Lottenberg: Acho muito inteligente o que você está falando porque isso não é uma observação que você faz só para cannabis, né? Há uma série de tecnologias que em dado momento a sociedade médica e a sociedade não médica acreditam que é uma resposta para todos os males. Isso vem acompanhado de uma onda de entusiasmo muito grande, aí parece que a onda subsequente é a do descrédito. Até que você chega no terceiro momento que é daquilo que realmente se aplica.

Por isso temos que tomar cuidado. Tem algumas condições, como epilepsia, espasticidade na esclerose múltipla, dor crônica, nas quais você tem evidências robustas de que o CBD traz benefícios para os pacientes. E em outras condições ainda a gente não tem evidências sólidas, mas tem um corpo crescente de dados que sugerem benefícios.

VivaBem: Você acha que a decisão do CFM, mesmo tendo sido suspensa temporariamente e tendo aberto essa consulta pública até dezembro, é marcada pelo moralismo e conservadorismo que se impôs no Brasil nos últimos anos? O CFM é um órgão moralista?

Lottenberg: O CFM está acima das pessoas. Podem mudar os ocupantes das cadeiras, o presidente, mas o fato é que ele tem um papel, é uma autarquia. Tem a responsabilidade por zelar por uma boa prática assistencial, imagino eu sempre zelando pela segurança do paciente. Sucede que em alguns momentos a gente observa um CFM que talvez nos surpreenda, né?

Um exemplo foi a hidroxicloroquina, em já havendo trabalhos que demonstravam não haver benefícios, o CFM se manifestou estimulando a distribuição e, portanto, como um tratamento precoce. Então chegamos na questão do cannabis e, tão precipitados que foram, suspenderam a decisão graças à pressão da sociedade.

Para aqueles que respeitam a importância de um órgão desta natureza e que querem o melhor para os seus pacientes, levanta um cenário no mínimo questionador.

O atual corpo diretivo do CFM está fugindo do foco para o qual essa autarquia foi criada, em particular na questão do cannabis. Acho que eles foram agir equivocadamente no momento que nós estamos passando por um processo eleitoral.

Sabemos que existe um questionamento moral, a meu ver equivocado, já que ninguém está falando da liberação do cannabis, senão do uso medicinal. São ações que devem ter natureza eminentemente técnica, não há problema de se fazer uma consulta pública, mas nós temos que resolver aquilo que é melhor... Temos 300 mil pessoas no Brasil que se beneficiam do uso do cannabis no Brasil.

Uma visão holística tem faltado muitas vezes ao CFM, e foi o que faltou nesse momento envolvendo a cannabis.

VivaBem: A classe médica é moralista?

Lottenberg: Não acho que a sociedade médica seja moralista a ponto de excluir incursões e inovações. Acho que a sociedade médica é solidária e movida por compaixão, aliás. Essa é a prerrogativa da formação de um médico. Se há algum moralismo, se deve principalmente pelo desconhecimento sobre a discussão do uso medicinal de produtos que vêm da cannabis. Ela é misturada muitas vezes com uma discussão de uso recreativo e são discussões e propósitos diferentes.

VivaBem: O CFM justificou sua decisão dizendo que foram avaliados mais de 6.000 artigos científicos sobre o tema e consultados centenas de profissionais. O conselho acrescentou que pauta suas decisões pela medicina baseada em evidências. Mas, veja bem, e no caso da cloroquina no auge da pandemia, em que a autonomia do médico era soberana, nas palavras do mesmo órgão? Não é um contrassenso?

Claudio Lottenberg 1 - Divulgação - Divulgação
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Lottenberg: Olha, acho que você disse bem, quando foi a questão da cloroquina, o debate foi em cima da autonomia do médico e do uso off label, ninguém estava muito preocupado com trabalho científico e evidência, aliás, estavam até negando as as evidências científicas já comprovadas.

Agora, eles estão preocupados que você apresente as evidências científicas para isso, aliás negando algo que já está consagrado em outros países. Nós estamos falando da EMA (Agência Europeia de Medicamentos) e do FDA (Food And Drug Administration). Não estamos falando de qualquer órgão, né?

A incoerência é muito clara. Quando eles justificaram dessa maneira, a sensação que dá é que existe por trás de tudo isso uma politização.

Acho muito ruim. Acho que pessoas que têm representatividade em órgãos que têm um papel do nível de um CFM deveriam ser absolutamente independentes de qualquer tipo de motivação política. E nesses momentos deveriam ter uma política de silêncio, evitando qualquer tipo de vínculo.

Por acaso nesse momento existe uma divisão [política] da sociedade, mas as motivações políticas sempre existem na sociedade, isso não é uma coisa que acontece só nos períodos eleitorais. Organizações que têm causas devem buscar a simpatia dos governantes para implementar e fazer com que essas causas sejam aplicadas na prática, mas não devem participar por motivações ou sensibilidades políticas, acho isso um grande equívoco. Se for este o caso, e não sei se é isso, mas se for esse caso, acho que isso tudo é muito lamentável.

VivaBem: Você crê que existe algum tipo de pressão da indústria farmacêutica tradicional para que se dificulte a liberação dos canabinoides de forma mais ampla?

Lottenberg: No curto prazo, uma indústria que vê uma ameaça é muito reativa, mas chega em determinado momento que fica tão evidente que aquilo será um benefício para a sociedade que ela quer participar do jogo.

Não tem como a gente negar determinadas coisas. Num primeiro momento, pode existir essa reatividade, mas a médio e longo prazo é evidente que todos querem participar. É ter a sensibilidade de algo que vai vir e não vai ter força de indústria para segurar isso.

VivaBem: Como você vislumbra o futuro dos canabinoides medicinais no Brasil e no mundo?

Lottenberg: Tem um espaço grande que a gente precisaria colocar até envolvendo a pesquisa, que nesse momento tem dificuldades pela questão regulatória: o plantio da cannabis no país não é permitido nem para fins científicos.

Sou um ardente defensor da questão da pesquisa porque quando se fala sobre pesquisa, plantio, linha de produção, uso adequado do medicamento, você tem todo um projeto que beneficia o paciente, mas nesse caminho gera emprego, riqueza e oportunidades para o país.

Acho que vamos assistir, a médio e longo prazo, esse tipo de evolução. Muito ruim que a gente não tem condições para poder ter isso de uma forma um pouco mais ordenada.

Até porque você não compra aqui, mas pode comprar fora. E usa fora e não usa no Brasil. A gente vai ter que avançar como sociedade. Eu vislumbro isso como qualquer coisa que surge de novo, de forma ordenada, como uma grande oportunidade.

VivaBem: E como você enxerga o futuro da saúde no Brasil?

Lottenberg: Estamos numa saída da pandemia e está todo mundo condenando-a, dizendo que o grande problema foi ela, que teremos mais pacientes crônicos, o que é verdade, além do acúmulo dos outros pacientes que também não foram tratados. Mas tudo isso é uma coisa que merece um aumento de capacidade resolutiva.

Por outro lado, a gente continua com a saúde que nós tínhamos pré-pandemia, quando você tinha paciente sendo encaminhado ao sistema de saúde pelas portas erradas, gente procurando pronto-socorro quando deveria ir para a atenção primária, gente que acaba sendo internada sem necessidade.

Há uma valorização do modelo hospitalocêntrico que é muito poderoso. E dois candidatos [à Presidência] que até agora não apresentaram um plano na área de saúde. Aí sim eu acho que o CFM deveria reforçar suas críticas para justamente buscar a quinta perna do IHI (Institute for Healthcare Improvement, inspiração do SUS) que é a equidade.

De novo, há discussões ideológicas, privatizar ou não privatizar, fazer PPP (parceria público-privada), não fazer PPP, PDP (parcerias para o desenvolvimento produtivo), não PDP, mas ninguém está fazendo um desenho de como entregar saúde para o paciente, que quer ter, muitas vezes, uma conversa com o médico porque precisa tirar uma dúvida a respeito de um medicamento.

E sem um plano digital, por exemplo, o indivíduo percorre unidades básicas de saúde para saber se tem que continuar com a medicação hipertensiva ou não.

Vejo com uma grande preocupação aquilo que está sendo apresentado pelo momento político, ou seja, uma carência absoluta. Um ufanismo em relação ao SUS, mas sabendo que o SUS também tem que se modernizar.

Tudo isso pode ser consertado, basta mudar um líder, uma pessoa que tem um discurso alinhado com a realidade, com a boa ciência, mas para a gente levar a saúde de maneira verdadeira, precisa ter algo mais estruturante e isso, sim, me preocupa.