Ele enfrentou batalha judicial para ser pai solo; prima foi o útero cedente
Diego Massena, 33, advogado e professor universitário, sempre teve o sonho de ser pai. E quando decidiu, convidou a prima para gerar seus bebês por útero de substituição via reprodução assistida (popularmente conhecido como "barriga de aluguel"). No entanto, ambos se depararam com um périplo jurídico para conseguir autorização para a gestação, que estava, teoricamente, fora das regras recomendadas pelo CFM (Conselho Federal de Medicina).
O processo levou mais de um ano e meio, e Isabela e Helena nasceram em 29 de setembro de 2022. Abaixo, Diego conta sua história:
"Ser pai era um sonho antigo, tenho essa vontade desde os 18 anos. Tive namoradas, depois namorados, e comecei a achar que seria difícil formar uma família.
Estudar direito abriu minha cabeça. Sou professor e um dia encontrei uma colega com quem acabei conversando sobre meu desejo de ter filhos, e ela me mostrou que era possível, sim, ser pai. Mas fui retardando o sonho até que em 2021 fiquei solteiro e cheguei à conclusão de que era hora de ser pai, mas não queria transmitir essa responsabilidade para outras pessoas.
Não planejei ser pai solo, e testei várias médicas em Salvador até encontrar uma que olhasse naturalmente para mim sem nenhum preconceito embutido. Tinha receio até de falar sobre o assunto, quando soube que a doutora Amanda era uma profissional de saúde inclusiva.
Antes de buscar ajuda com ela, perguntei à minha prima se ela aceitaria ser a gestora [dos bebês]. Organizei um almoço para fazer o convite, e quando perguntei a resposta dela foi: 'Quando? Amanhã?'. Aceitou de pronto. Então, procuramos a doutora Amanda juntos, e ela logo nos informou sobre a documentação necessária, pois não havia nenhum impedimento médico para levar a fertilização adiante.
Apesar dessa tranquilidade inicial, o processo todo foi muito mais difícil do que imaginávamos. Levou um ano e sete meses. Conversando com meus pais, eles me aconselharam a ser meu próprio representante, já que sou advogado.
O CFM tem uma resolução que recomenda que, na reprodução assistida, a mulher que cederá o útero deve ter ao menos um filho vivo. Este não era o caso da minha prima.
Antes do processo, conversei com pessoas que haviam feito o processo de fertilização fora do Brasil, e cheguei a pensar que não seria possível, pois não tinha condições financeiras para isso. Hoje sei que não é preciso sair do Brasil, pois temos no país todo o aparato necessário para que pessoas sem condições biológicas ou médicas, sejam homens ou mulheres, solo ou não, constituam suas famílias.
A legislação brasileira nos garante o direito de constituir família. Porém, é importante que tudo esteja alinhado juridicamente. Eu andava com documentos legais, como a sentença do Ministério Público que garantiu a mim conduzir o processo de fertilização com gestação de substituição, praticamente debaixo do braço, e sempre que ouvia uma negativa inicial em alguma das etapas, recorria a esse amparo jurídico. O ministério não tem noção do bem que fez pela minha vida quando emitiu essa sentença.
Durante todo o processo de fertilização, e depois na gestação, tivemos, minha prima e eu, acompanhamento de psicólogo e psiquiatra, entre outras pessoas que formaram uma rede de apoio muito importante para que tudo corresse bem como correu.
Recebo muitas mensagens de mulheres que querem saber qual foi o caminho que percorri para ter as meninas. Sei que contrariei muitas expectativas, e hoje digo que o momento perfeito para ter filhos não existe. Sempre existirá algo que precisa ser ajustado ou melhorado em nossas vidas.
O Diego atual acredita que pode conseguir tudo na vida, e se antes eu já era determinado, agora sou ainda mais. Aprendi que não posso me omitir e que preciso me posicionar. Hoje tenho muita vontade de transformar as coisas, sou esperançoso e quero ajudar outras pessoas a realizar o sonho de ter sua família, como eu realizei. Sou uma pessoa normal que conseguiu, e alguns homens solo também têm me procurado para saber como fazer.
O parto estava programado para 10 de outubro, mas em 29 de setembro a bolsa rompeu e as meninas nasceram de surpresa, em uma maternidade, no bairro da Federação, em Salvador. Elas estão ótimas, no início foram alimentadas por leite humano que minha prima separava e mandava para a gente, mas hoje são alimentadas com fórmula artificial.
Minha prima brinca e diz que o jogo agora virou, e que ela irá ficar comendo pipoca enquanto assiste à minha correria para cuidar de Isabela e Helena. Ambas são calmas, mas uma acorda a outra. Quando uma chora, a outra chora em solidariedade.
Continuo contando com apoio de meus pais, que têm sido luz na minha vida, e de uma tia. Isabela e Helena uniram muito minha família. Estou em licença-maternidade, um direito adquirido anteriormente do qual eu estou usufruindo, e nunca tive qualquer problema por isso em meu local de trabalho.
A lei brasileira garante que, ao nascer, a criança seja amparada durante o período da licença-maternidade convencional pelo pai, por equiparação, na ausência da mãe. Essa conquista foi de outro homem solo, que abriu um caminho para pais como eu. A licença é um direito da criança, e caso esta só tenha o pai, será ele quem garantirá esse direito.
A certidão de nascimento de minhas filhas tem apenas o nome do pai, e para isso precisei apresentar relatórios médicos. Hoje me apresento como Diego Massena, 33 anos, advogado, professor universitário e pai, e aprendi a respeitar ainda mais as mulheres."
Regras do CFM
Apesar da resolução do CFM pedir ao menos um filho vivo da mulher que será útero de substituição, não é uma lei, mas, sim, uma recomendação. Inicialmente, um pedido para a realização do procedimento junto ao Cremeb (Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia) foi negado, e o órgão informou que decisão de diretoria não precisa ser justificada.
"O Diego chegou até mim por indicação, e por isso já existia um vínculo inicial, ainda que indireto, por conta da pessoa que fez a indicação, a quem ambos já conhecíamos. Esse vínculo fez com que tivéssemos uma proximidade desde o começo. Ele se sentia desamparado, e em muitas vezes me procurou para desabafar. Eu sentia quando os contatos dele não eram por conta de uma demanda médica, mas, sim, porque precisava do meu apoio", conta Amanda Cútolo, médica especialista em reprodução assistida responsável pelo processo de fertilização da prima de Diego.
A doação recebida de óvulo tem um prazo estabelecido, e foi preciso uma ação buscando a autorização do procedimento demonstrando ao Ministério Público e para a juíza os motivos de o Cremeb ter negado. Como o órgão não apresentou justificativa, foi determinada pela juíza uma cópia da decisão final, sob pena de constituição de crime contra a administração da Justiça.
Segundo o Cremeb, o pedido foi negado porque a gestora afirmou "não ter interesse na maternagem, mas em outro momento ela poderia mudar de opinião". Esta decisão final também alegou que uma gravidez tem riscos, como a perda do útero.
"Qualquer mulher, a partir dessa interpretação do Cremeb, não poderia mais engravidar, já que toda gravidez tem riscos", destaca Diego.
Após meses de espera e quase perder o início de tratamento, finalmente saiu uma sentença favorável ao procedimento e garantindo três direitos: iniciar a fertilização in vitro, garantir que os bebês fossem registrados somente em seu nome e entrar com o pedido de licença-maternidade por equiparação de seis meses, semelhante às mulheres.
O que é útero cedente ou gestação por substituição
Na técnica de reprodução assistida com um útero cedente, a mulher que cede o útero não pode doar os óvulos ao mesmo tempo, segundo determina o CFM.
"Quando uma pessoa chega até nós para levar adiante uma reprodução assistida, normalmente investigamos eventuais problemas de fertilidade, pois antes de partir para a fertilização é possível recorrer a alguns procedimentos em busca de uma gravidez natural. Pais e mães solo normalmente não precisam dessa investigação. A pessoa não se vê como doente, como pode ocorrer quando há alguma questão médica. Além disso, a sociedade parece aceitar melhor a mulher que não pode ser mãe por motivo de doença, e acredito que Diego abriu caminho dentro do direito familiar", diz a médica.
Na clínica em que Amanda Cútalo atua há um estoque de óvulos congelados, cedidos por mulheres que passaram pelo mesmo tratamento e os colocam à disposição para que outras pessoas realizem o sonho de constituir uma família. Os dados da doadora são anônimos.
"A doadora é escolhida com base no biotipo da receptora, mas no caso de Diego, pela receptora ser somente a cedente de útero e não a mãe, não foi preciso seguir esta regra. Diego não tinha preferência quanto ao tipo físico da doadora, nem de altura, cor de pele e olhos. Poderia ser qualquer uma. Isso acelerou o processo", explica a especialista em reprodução assistida.
Ao todo, foram doados seis óvulos. "Quando se trata de doação de óvulos utilizamos em média essa quantidade. Três embriões foram formados e dois deles foram colocados no útero, seguindo as diretrizes do CFM, que indica este número máximo. Um embrião permanece congelado, caso ele queira aumentar a família", afirma.
A fertilização dos óvulos foi feita com o próprio sêmen do pai solo para gerar o embrião possibilitando que, biologicamente, as filhas tenham 50% do seu DNA. Com os embriões prontos, eles foram transferidos para o útero da prima. Mesmo não querendo ter filhos e desejar ligar as trompas, ela teve que passar por diversas avaliações psicológicas. "Dizer que ela pode se arrepender da decisão é um total desconhecimento sobre direitos reprodutivos femininos", reforça Cútalo.
"Muitas pessoas que recorrem à fertilização chegam até mim com frustrações, devido a tentativas anteriores de constituir família, que acabaram não dando certo. Não foi o caso de Diego, que trabalhou sozinho essa questão. Mesmo assim, cheguei a almoçar com ele simplesmente para conversar sobre tudo o que estava acontecendo. Também sempre procurei dar atenção à prima de Diego, para que ela não se tornasse invisível. A gestão por substituição é complexa e é importante garantir assistência física e psicológica à mulher que carrega a criança na barriga, antes, durante e depois", finaliza a médica.
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