Poliomielite: o que Brasil deve fazer para evitar que doença volte ao país
O pneumologista Humberto Golfieri Jr., 62, viu com preocupação a notícia de que o Brasil é um dos países sul-americanos que correm um "risco muito alto" de reintrodução da poliomielite, alerta feito em setembro pela Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), braço da OMS (Organização Mundial da Saúde) nas Américas.
Nascido em uma época em que havia muita desconfiança sobre as vacinas, Humberto não foi levado pelos pais para ser imunizado quando era criança e acabou contraindo pólio aos 9 meses de vida. A doença, altamente contagiosa, paralisou os músculos de seu peito, o que fez com que o menino ficasse dias respirando com um pulmão de aço —um tipo de ventilador.
No caso do morador de Cascavel (PR), a pólio causou paralisia em sua perna esquerda, no braço direito e em parte da perna direita, sequelas que, apesar de cirurgias feitas ao longo da vida, ele carrega até hoje.
"Atualmente, existem poucos sequelados de pólio, porque grande parte morreu durante a epidemia nos anos 60. Mas a doença não deixou de existir no mundo. Não é porque a gente não vê que a doença não existe. As gerações atuais não têm ideia do que foi a epidemia de poliomielite", diz ele, que levou seus quatro filhos para receber a imunização contra a pólio e incentiva a atitude em suas redes sociais.
A doença provocou inúmeros surtos e epidemias em território nacional e em outras partes do mundo no século 20. No Brasil, foram 26.827 casos entre 1968 e 1989, segundo o Ministério da Saúde. Muitas campanhas de vacinação em massa foram necessárias até que o país fosse declarado livre da poliomielite, em 1994.
De 2015 para cá, porém, a cobertura vacinal tem deixado a desejar, o que acendeu o alerta sobre a possibilidade de retorno da doença no país. De acordo com dados do Ministério da Saúde, há seis anos, 98,2% do público-alvo recebeu as doses. Já em 2016, essa taxa caiu para 84,4%, patamar que se manteve até 2019. Em 2021, a imunização contra a doença foi de apenas 67,1%.
Atualmente, segundo dados do Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações, obtidos pela plataforma DataSUS, a cobertura está em 61%, o que significa que os 39% restantes não estão completamente protegidos contra a pólio.
"Estamos vivenciando um fenômeno nunca visto de queda nas coberturas vacinais, que começou nos últimos anos e foi agravado pela pandemia em todo o mundo. A única receita para evitar que a poliomielite volte ao país é aumentar a cobertura vacinal", avalia o pediatra e infectologista Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria).
Como funciona o esquema de vacinação contra a poliomielite?
Disponível no SUS (Sistema Único de Saúde), o esquema de vacinação contra a poliomielite é composto de cinco doses. As três primeiras, aos 2, 4 e 6 meses de idade, devem ser feitas obrigatoriamente com a vacina de vírus inativado (chamada de VIP), administrada com uma injeção.
Já as duas últimas são feitas com a vacina oral de vírus atenuado, a "gotinha", aos 15 meses e aos 4 anos:
A imunização completa garante proteção contra o poliovírus, que pode levar à paralisia permanente dos braços e pernas e até à morte, em alguns casos. Em nota ao VivaBem enviada no início de outubro, o Ministério da Saúde informou que não há registro de circulação viral da poliomielite no Brasil, mas reforçou que pais e responsáveis vacinem suas crianças com todas as doses indicadas para manter o país protegido da doença —ela ainda não foi erradicada em todo o mundo.
Como aumentar a cobertura vacinal?
A reportagem ouviu especialistas para entender o que precisa ser feito para aumentar a cobertura vacinal e impedir que a poliomielite volte a ser um problema no país. Entre eles, é unânime a percepção de que é preciso uma política pública de priorização da vacinação, o que exige uma ação conjunta entre as esferas federal, estadual e municipal. A seguir, veja outras sugestões.
1. Aumentar percepção de risco sobre a doença com comunicação eficiente
É comum entre os médicos a avaliação de que as vacinas são "vítimas de seu próprio sucesso": conforme as doenças são erradicadas ou se tornam mais raras, parte da população passa a acreditar, erroneamente, que não existe mais risco de contraí-las.
"Mas, na verdade, se o vírus está circulando em algum lugar do mundo, sempre existe um risco de reintrodução, como aconteceu com o sarampo", diz Ana Marly Sartori, professora associada do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
Para Sartori, é fundamental investir em campanhas educativas para informar a população que o fato de não haver mais casos de poliomielite no país não significa que a vacinação deixou de ser necessária ou que o risco de a doença circular novamente é inexistente. É justamente o contrário: o vírus só foi erradicado em território nacional devido à vacinação e, em razão da baixa cobertura atual, corre o risco de voltar.
Na avaliação dos especialistas, a campanha de comunicação do Ministério da Saúde deste ano foi ruim. "No passado, tínhamos dias nacionais de vacinação com personagens artistas, como o jogador de futebol Ronaldinho de cadeira de rodas, por exemplo, mas hoje não tem praticamente quase nada de campanha", diz Kfouri.
Iniciada no dia 8 de agosto, a campanha nacional de vacinação contra a pólio tinha o objetivo de imunizar 11,5 milhões de menores de 5 anos, mas foi encerrada sem atingir a meta, em 30 de setembro. Até esta segunda-feira (7/11), foram imunizadas cerca de 8 milhões de crianças nessa faixa etária.
O imunizante continua disponível nos postos de saúde em todo o território nacional e, em algumas cidades, como São Paulo (SP) e Cascavel (PR), a mobilização para alcançar os não vacinados foi prorrogada por tempo indeterminado.
2. Fortalecer vigilância ambiental e notificação de casos suspeitos
Além dos baixos índices de imunização, pelo menos outros dois fatores também levam o Brasil a ser considerado um país de alto risco para a reintrodução da pólio. Um deles é a baixa vigilância ambiental (busca por amostras do vírus em redes de esgoto), cujo objetivo é monitorar o aparecimento de poliovírus no meio ambiente.
Outro fator é a notificação dos casos de paralisia aguda, que não é feita com a velocidade ideal no país, segundo Kfouri. O médico ressalta que toda criança menor de 15 anos que desenvolve um quadro de paralisia precisa ser investigada em, no máximo, 48 horas, para saber se o diagnóstico é pólio ou outra condição que também pode causar fraqueza muscular, como a síndrome de Guillain-Barré. O resultado é importante para orientar as devidas medidas de controle na região onde a criança vive.
O caso recente de uma criança de três anos que apresentou perda de forças nas pernas, febre e dores musculares no Pará, que foi previamente notificado como poliomielite associada ao vírus vacinal (VAPP), é citado pelo infectologista como um mau exemplo de vigilância.
"A criança teve sintomas em agosto, foi colher exame de fezes em setembro e o resultado saiu em outubro. Se fosse paralisia infantil mesmo, já tinha muita gente contaminada naquela região", alerta. O Ministério da Saúde ainda não concluiu a investigação sobre a ocorrência.
3. Combater fake news e hesitação vacinal
O pneumologista Humberto Golfieri Jr. considera que seus pais foram vítimas da falta de informação. "Eles eram muito jovens, moravam no interior do Paraná e havia o receio de como a gotinha, que tinha sido adotada no Brasil há pouco tempo, ia reagir. Não existia a segurança que a gente tem hoje", diz.
Na visão de Rosana Richtmann, coordenadora do Comitê de Imunizações da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), nos últimos anos houve um aumento da hesitação em torno da vacinação, o que tem prejudicado não só a cobertura da pólio, mas também de outras doenças.
"O que eu percebo é que, no caso da poliomielite, o desafio não é um movimento negacionista antivacina. Existe uma hesitação que deixa a população na dúvida da vantagem e da segurança das vacinas como um todo. A gota d'água foi durante a pandemia da covid, em que a vacinação foi questionada demais", avalia a infectologista.
À medida que se faz propaganda contra a vacina de covid para crianças, por exemplo, as pessoas passam a duvidar de todas as vacinas, não só daquela. Você levanta dúvidas sobre o programa inteiro de imunização. Ana Marly Sartori, professora da Faculdade de Medicina da USP.
4. Ampliar horário de funcionamento dos postos, treinar profissionais da saúde e envolver escolas
Para os especialistas, é importante oferecer a vacinação fora do horário comercial —especialmente aos sábados, quando muitos pais não estão trabalhando— e investir no treinamento dos profissionais de saúde das UBS (Unidades Básicas de Saúde), que muitas vezes não sabem o que fazer diante de uma criança que está com o esquema primário atrasado.
Outra questão é a participação das escolas, aponta Richtmann, da SBIm. "Acho que a ausência ou participação tímida do Ministério da Educação durante a campanha favorece essa queda da cobertura vacinal", avalia a infectologista. "É preciso ter vontade política de fazer uma ação conjunta entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, promovendo dias de vacinação nas escolas para prevenir não só a pólio, mas todas as doenças com baixa cobertura vacinal no país".
5. Aumentar investimento no SUS e saúde da família
Também é unânime entre os infectologistas a visão de que é preciso aumentar os investimentos no SUS, especialmente na atenção primária —a principal frente responsável pela vacinação no país. Em municípios menores, a presença de políticas de saúde da família é importante para aumentar a cobertura vacinal, diz Kfouri.
"Tem populações ribeirinhas que não se vacinam porque a vacina não chega até elas. Em outros locais, pode haver líderes comunitários contrários à vacinação. Em outros, são famílias grandes que não têm acesso ao transporte público e o deslocamento", analisa.
Segundo Milena Vitorino, técnica do Núcleo de Imunizações da SES (Secretaria do Estado da Saúde) da Paraíba —o primeiro estado a alcançar a meta da campanha de vacinação contra a poliomielite no Brasil—, a busca ativa pelas crianças que ainda não haviam sido imunizadas foi decisiva para o sucesso da campanha em algumas cidades em solo paraibano.
"Outro ponto que foi um diferencial é que a gente colocou apoiadores em todo o estado para estar junto dos municípios. Foram 15 bolsistas da Escola de Saúde Pública da Paraíba dando apoio aos municípios, buscando estratégias, tirando dúvidas e articulando novas maneiras para atingir a cobertura", diz Vitorino.
6. Substituir gotinha pela injeção
Na avaliação da epidemiologista e professora da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) Ethel Maciel, embora a gotinha seja uma solução fácil de administrar, de baixo custo e que produz uma excelente imunidade, é necessário que todas as doses da vacinação contra a pólio migrem para a injeção de vírus inativado (ou seja, morto).
Isso porque, explica ela, o reforço oral contém uma versão enfraquecida, mas viva do poliovírus, que não causa poliomielite, mas faz com que o patógeno seja naturalmente eliminado nas fezes da criança.
"Essas fezes vão para o esgoto e, com isso, você mantém uma circulação de vírus que, mesmo atenuado, para algumas pessoas que não foram vacinadas ou com imunosupressão, pode causar a doença", diz ela, reforçando que a mudança é especialmente importante em países com acesso reduzido ao saneamento básico, como o Brasil.
Foram registrados surtos de pólio vacinal em 2022 em Nova York, nos EUA, e em Israel. Além do caso suspeito no Pará, neste ano o vírus também foi encontrado em amostras recolhidas do esgoto em Londres.
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