Ayahuasca: remédio ou droga? Conheça os riscos do consumo do chá
A popularização da ayahuasca, o crescimento acelerado das rotas turísticas para experimentar a bebida na Amazônia e a recente morte do ator Micael Amorim Macedo, 26, durante uma experiência em um ritual realizado em São Sebastião, no Distrito Federal, em julho, reacenderam as discussões sobre os riscos de consumo da bebida.
Preparado geralmente com a mistura de duas ervas, o cipó mariri e as folhas de chacrona, o chá é usado em rituais indígenas com objetivo de expansão da consciência.
Antes restrito a essas cerimônias em outros países da América do Sul, como o Peru, o consumo foi difundido no Brasil há 30 anos, quando houve o primeiro boom. Na época, vários grupos religiosos foram criados com essa finalidade. Recentemente, a bebida voltou aos holofotes e as aldeias indígenas na Amazônia viraram até rota turística para quem quer experimentá-la.
Riscos para quem toma
Para os especialistas, esse consumo deve ser visto com cautela, principalmente por quem faz uso de medicações ou tem algum transtorno psicológico, sob o risco de sérios problemas de saúde e até morte.
O professor João Ernesto de Carvalho, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), participou de uma das primeiras pesquisas com a bebida no Brasil na década de 90, patrocinada pela fundação americana Rockefeller, que queria legalizar o uso da ayahuasca para fins terapêuticos.
No Brasil, o consumo é autorizado pelo Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) somente em cerimônias religiosas.
O estudo mostrou o nível de toxicidade da mistura de ervas testado em laboratório.
"Uma das conclusões é que, em um indivíduo comum com predisposição a doenças neurológicas, como epilepsia, o risco de convulsão é muito grande, pois uma das substâncias presentes no chá baixa esse limiar (para a convulsão)", explica Carvalho.
Os testes também mostraram que quem faz uso de medicação antidepressiva pode ter uma somatória de efeitos, por conta do princípio ativo com a mesma finalidade presente no chá.
"Se a pessoa já está tomando uma droga e soma outra para depressão pode ter esse efeito aditivo e ter uma convulsão."
O efeito psicotrópico da ayahuasca, segundo explica o professor, é semelhante ao do LSD, produzindo alucinações visuais e auditivas. Isso se deve à combinação de substâncias presentes nas ervas que têm ação direta no sistema nervoso central.
"Se consumida sozinha, a chacrona não tem nenhum efeito porque é digerida pelo sistema digestivo, mas se combinada com o mariri, ele tem um grupo de substâncias betacarbolinas, como a harmina, que inibe que a enzima seja degradada no corpo. Por isso há tempo de ser absorvida e chegar ao cérebro. Lá ela provoca aumento de vários neurotransmissores do sistema nervoso central que tem relação com a depressão. Com essa estimulação, o indivíduo que tem um foco de epilepsia, vai desencadeá-la e também potencializar o efeito antidepressivo", explica o professor.
A harmina presente no cipó de mariri, segundo Carvalho, faz parte do primeiro grupo de drogas usadas no tratamento da depressão, mas não é mais usada por conta dos efeitos colaterais.
"Um dos efeitos é o aumento de neurotransmissores, como a dopamina, e ela está envolvida na paranoia e esquizofrenia. O indivíduo que sofre desses problemas, ou tem histórico familiar, pode tomar o chá e surtar", alerta.
Contraindicações da ayahuasca
O professor, que é farmacêutico, lista as principais contraindicações de consumo da ayahuasca:
- Doenças neurológicas: Quem possui algum transtorno neurológico, principalmente epilepsia e esquizofrenia, pois há risco de desenvolver paranoia e surto. O indivíduo pode ainda sofrer uma síndrome serotoninérgica com uma série de sintomas, como aumento da temperatura corporal, espasmos musculares, ansiedade e delírios;
- Medicamentos antidepressivos: O remédio pode ter o efeito potencializado e desencadear convulsões;
- Ansiedade: Pode desencadear uma crise;
- Hipertensos: Aumento da pressão arterial;
- Cardiopatas: Arritmia cardíaca;
- Renais crônicos e diabéticos: Alteração nas taxas de glicose e piora na condição de doenças de base;
- Crianças e idosos: No caso das crianças, porque seu sistema nervoso ainda está em formação, e os idosos porque já têm diminuição de neurotransmissores;
- Grávidas e lactantes: Não devem usar o chá para não afetar o cérebro do bebê.
Para João Ernesto de Carvalho, a falta da padronização da bebida dificulta o uso seguro. "Substâncias como a harmina e derivados têm efeitos no tratamento da depressão e alguns até como analgesia para alguns tipos de dor, mas o problema é que não há um controle de como a bebida é feita, a quantidade e o tipo de ervas usadas, a forma de armazenamento e conservação", diz.
Pesquisa mostrou bons resultados para depressão resistente
Um estudo realizado pelo Laboratório de Neuroimagem do HUOL (Hospital Universitário Onofre Lopes), vinculado ao Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), mostrou bons resultados no uso da ayahuasca em pacientes com depressão resistente a medicamentos tradicionais.
A pesquisa, publicada em 2018 na revista Psychological Medicine, da editora da Universidade de Cambridge (Reino Unido), é considerada o maior estudo randômico da bebida no Brasil, quando é feita a comparação dos resultados do consumo da substância e do placebo.
Trinta e cinco pacientes do HUOL, entre homens e mulheres, com idades entre 18 e 60 anos, foram avaliados no estudo. Os pré-requisitos para participar foram ter depressão, não estar respondendo às medicações, além de não ter doenças como esquizofrenia, bipolaridade, nem familiares de primeiro grau que possuam, assim como nenhuma condição clínica grave.
Os pacientes também deviam estar em período de troca de medicação. Em vez de usar um novo remédio, eles introduziram a bebida.
O grupo foi dividido em dois, sendo que um deles recebeu a bebida e outro, um placebo. Os resultados foram avaliados no primeiro e no sétimo dia de uso.
"Observou-se que os pacientes tiveram melhora um dia depois ao início do tratamento, com uma única dose, uma quantidade similar ao que se toma em um ritual, um pouco menor, numa fração de 1 ml por peso", explicou a pesquisadora Fernanda Palhano.
A experiência mostrou que os dois grupos melhoraram, tanto o que ingeriu a ayahuasca, como o placebo.
"Era um resultado esperado, mas observamos que sete dias depois, os que tomaram a ayahuasca tiveram sintomas bem reduzidos. Já o grupo do placebo voltou a apresentar os mesmos índices do início do estudo. O que mostra que quem usou a ayahuasca teve uma resposta clínica significativamente melhor."
Psiquiatra diz que há mais riscos do que benefícios
A psiquiatra Carla Bicca, da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), vê com preocupação o uso indiscriminado da ayahuasca e, que, apesar de haver algumas pesquisas associando a bebida à melhora de casos de depressão resistente à medicação, ela tem mais riscos que benefícios, pois pode provocar reações não só no cérebro, mas também reflexos em todo organismo.
"É uma substância que tem grande ação central, difunde em várias áreas cerebrais vinculadas a sintomas psiquiátricos, mas também pelo corpo mexendo com toda a função metabólica e isso tem uma consequência no estado clínico, por isso algumas pessoas passam mal, vomitam, podem ter parada cardiorrespiratória, entre outros sintomas", alerta.
Além do fato de ser uma substância alucinógena, o perigo do consumo da bebida, segundo a médica, são as variáveis que isso envolve, que vão desde não ter controle de quais substâncias são usadas na sua composição, a quantidade de cada uma delas, até a segurança do local onde ela vai ser consumida.
"É preciso entender que no ritual nativo os indígenas estão acostumados, mas é diferente quando alguém faz uma viagem para esses locais para experimentar pela primeira vez, porque você não pode prever o que vai acontecer, uma coisa é uma microdosagem controlada em laboratório a outra é essa (do ritual). A diferença entre o veneno e o remédio é a dose", afirma a psiquiatra.
Carla Bicca cita uma reação pouco comentada sobre quem consome a ayahuasca, que pode vir a longo prazo, que é o que os psiquiatras chamam de transtorno de percepção persistente ou flashback, e pode ocorrer meses após o consumo da bebida, mesmo que tenha sido apenas uma vez.
"É uma reação que o indivíduo tem como se estivesse vivendo de novo a mesma experiência, como se tivesse acabado de tomar a ayahuasca e isso não tem aviso prévio, pode acontecer dias depois, ou até mais de um ano depois, dependendo da droga e do cérebro da pessoa", alerta.
A médica conta que já presenciou casos assim no hospital. "Pacientes que chegam com sintomas semelhantes a um AVC, alucinando e quando vamos ver o histórico lá atrás, descobrimos [o consumo da ayahuasca]".
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