Cada vez mais pessoas rompem com família: 'Laço sanguíneo é insignificante'
O estabelecimento de núcleos familiares, ainda na pré-história, permitiu ao ser humano lograr sucesso sobre o mundo hostil à sua volta, com predadores e intempéries. Mas se antes a mais antiga instituição social era constituída pelos laços sanguíneos, hoje abarca múltiplas formações. Qualquer que seja a concepção, entretanto, permanece a ideia de que é na família que encontramos afeto, segurança e apoio.
Cada vez mais pessoas restringem contato ou se afastam dos parentes em busca de liberdade, para fugir de relações tóxicas ou em busca de amparo emocional. Pesquisa realizada pelo professor de sociologia Karl Andrew Pillemer, da Universidade de Cornell (EUA), e publicada em 2020 no livro "Fault Lines: Fractured Families and How to Mend Them", demonstrou, por exemplo, que 65 milhões de americanos se distanciaram de algum familiar. Essa também parece ser a realidade do Brasil. Embora faltem evidências científicas, psicólogos relatam que têm ocorrido com mais frequência casos de afastamento familiar.
De acordo com a especialista em terapia sistêmica familiar e pesquisadora do Lesplexos (Laboratório de estudos dos casais, família e comunidade), vinculado ao programa de pós-graduação em psicologia da Unifor (Universidade de Fortaleza), Larissa Alves Teixeira Castelo, antigamente havia um pensamento de que família era algo sagrado, e estava acima de qualquer coisa. Hoje, entretanto, entende-se que as escolhas individuais de cada sujeito devem ser consideradas.
"O afastamento familiar decorre principalmente dessa intransigência em aceitar o outro como ele é, com as suas escolhas pessoais, de religião ou por sua filiação política", explica.
Vanessa Correia, 27, moradora do Rio de Janeiro, diz que se afastou do avô por não compartilhar das mesmas ideias e valores defendidos por ele. "Ele passou a fazer comentários que tinham todo tipo de preconceito, e o fascínio que eu tinha por ele, por ter me criado, foi estremecido", conta ela, que durante as eleições de 2018 chegou a sair da casa do avô, com quem então morava.
Muito além da política
Embora em voga, a polarização política não é o principal fator que leva ao afastamento familiar. Nas redes sociais, por exemplo, é comum encontrar depoimentos de pessoas que se afastaram porque a família era disfuncional ou tóxica.
Sara Martins Pacheco, 22, de Canoas (RS), foi vítima de múltiplas violências dentro de casa e há um ano decidiu romper definitivamente com a mãe. "Com 16 anos eu passei a ter consciência das coisas que tinham me acontecido, quando então saí de casa pela primeira vez. Eu ainda ia visitar a minha mãe de vez em quando, mas acabava absorvendo todos os problemas dela e fiquei com depressão", diz.
Sara afirma que apesar de se sentir emocionalmente estável, ainda entende que sua 'criança interior' está ferida. "Eu nunca tive a quem recorrer, então o laço sanguíneo para mim é insignificante."
Lúcia Freire, diretora do Cecaf (Centro de Estudos, Consultoria e Atendimento Familiar) de Recife (PE), defende que as agressões, quaisquer que sejam, não devem ser relativizadas em prol de uma unidade familiar. Para ela, que é coautora do livro "Terapia Familiar: Múltiplas Abordagens com Casais e Famílias", a saúde mental do indivíduo deve ser priorizada e a culpa pelo afastamento, quando ocorrer, deve ser levada à terapia.
"É importante buscar o autoconhecimento, para que o indivíduo tenha condições de construir laços significativos e positivos com outras pessoas", pondera.
Às vezes, afastar-se é solução para preservar saúde mental
Expectativas frustradas, comportamento considerado inadequado, divergência de valores e desrespeito também causam desavenças no núcleo familiar, principalmente naqueles em que há rigidez de normas e costumes. O músico Marcos*, 34, de Acaraú (CE), saiu da casa dos pais com 17 anos porque sentia que não era bem-vindo ali.
"Sou filho de vaqueiro e minha família é bem machista, então ter um filho gay não é exatamente o que se esperava", alega.
A estudante de administração Thábata*, 23, mudou-se para São Paulo há cinco anos, depois de entender que seus familiares, do interior do Ceará, nunca lhe aceitariam como ela se entendia, uma mulher trans.
"Cresci em uma família conservadora formada por oito irmãos e sempre ouvi piadas. Agora tenho afeto, fui acolhida e respeitada nessa nova família da Casa Florescer", conta ela, que reside em uma casa de acolhimento para travestis e mulheres transexuais da capital paulista.
"O sofrimento gerado por não poder ser quem somos de fato é de uma proporção realmente existencial. Então o afastamento dessas pessoas e consequentemente dessas agressões é uma opção importante em se tratando de saúde mental", avalia Castelo.
Desconstrução de hierarquia
Especialistas afirmam que é natural haver conflitos no interior de uma família e que a forma como se lida com ele é que mudou.
"Antigamente havia uma hierarquia de poderes e isso foi sendo desconstruído ao longo do tempo. Hoje as relações são mais horizontais e o jovem se sente mais à vontade para contrariar os pais, por exemplo", analisa Fabrício Rocha, doutorando e pesquisador do Núcleo de Pesquisa Dinâmica das Relações Familiares na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
Para Rocha, isso traz um lado bastante positivo, pois há um equilíbrio nas relações e a diminuição de violências, tanto verbais quanto físicas. "Nossa geração já entende que bater em uma criança para educá-la não faz sentido justamente por essa ideia de que todos somos iguais e merecemos respeito", pontua.
Os especialistas ouvidos pela reportagem dizem que muito embora a família tenha um papel importante, é plenamente razoável buscar se sentir parte de um grupo em que se é acolhido, respeitado e amado. Para eles, entretanto, antes de haver a dissolução do laço familiar, é preciso, sempre que possível, buscar pela resolução do conflito.
"Na terapia familiar, os pacientes são levados a entender porque o outro pensa diferente e busca-se uma maneira para que possa haver o convívio respeitoso entre eles", ressalta Freire.
Redução de danos
Pesquisadora do Yale Center for Emotional Intelligence, Diana Divecha elaborou dicas para quem busca resolver conflitos com familiares:
- Reconheça o delito. Primeiro, tente entender a dor que você causou. Não importa se não foi intencional ou quais foram suas razões. Este é o momento de desligar seu próprio sistema de defesa e se concentrar em entender e nomear a dor ou raiva da outra pessoa.
- Expresse remorso. Aqui, um sincero "sinto muito" é suficiente. Não há fórmula perfeita para um pedido de desculpas, exceto que ele seja entregue de uma forma que reconheça a ferida e faça as pazes. E pode haver caminhos diferentes para isso. Desculpas podem assumir todos os tipos de tons e qualidades.
- Explique seu ponto de vista. Se você sentir que a outra pessoa está aberta à escuta, você pode fornecer uma breve explicação do seu ponto de vista, mas tenha cuidado, pois esta pode ser uma ladeira escorregadia.
- Mostre que você quer fazer dar certo. Expresse sua sincera intenção de corrigir a situação e evitar que ela aconteça novamente. Lembre-se de se perdoar também. O amor está no reparo.
*Nomes modificados a pedido dos entrevistados
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