Tramontina fala sobre amor pela corrida: 'Terapia mais barata que existe'
O telespectador que se acostumou a ver Carlos Tramontina, 66, de camisa e calça social na televisão é surpreendido ao encontrá-lo trajando camiseta leve, shorts e tênis de corrida fora das telas, gastando fôlego nas ruas da cidade de São Paulo. Mas o que nem todo mundo sabe é que a corrida entrou em sua vida muito antes da TV.
"Comecei a correr na rua com 17 anos", conta o jornalista, que só seria contratado pela Rede Globo cinco anos mais tarde, em 1978. Para ele, o esporte é a "terapia mais barata que existe": nas ruas da capital ou em sua chácara no interior paulista, dispensa fones de ouvido e prefere dar ouvidos à própria mente.
Na época em que tinha o hábito de correr antes do trabalho, o ex-âncora conta que durante o treino pensava principalmente nas reuniões e tarefas previstas para o dia. Mas o conteúdo das divagações se expandiu desde que decidiu deixar a Globo, em abril deste ano, após 43 anos no canal. "Corro imaginando tudo que já fiz e aquilo que posso fazer no futuro: viagens, maratonas, novos projetos. Penso nos familiares, na minha netinha de oito meses e nos futuros netos também, por que não?"
Os pensamentos são o reflexo do que descreve como uma nova fase em sua vida, marcada por uma agenda de compromissos que, embora ainda não tenha esvaziado, desacelera e começa a dar mais espaço para o lazer e a família.
Nova fase
Em um parque quase vazio no bairro de Pinheiros, na manhã de uma quarta-feira de muito calor, Tramontina é parado por algumas pessoas, que afirmam sentir falta de encontrá-lo diariamente no "SP2", programa que comandou por 24 anos. Frequentemente, ele se depara com mensagens semelhantes em suas redes sociais.
"Tramonta", como é conhecido pelos mais íntimos, é simpático e aceita tirar selfies com quem estica o celular em sua direção. Ele, que entrou na Globo como estagiário nos anos 70 e passou por todos os telejornais em rede nacional da emissora —desde o matutino "Bom dia Brasil" até o noturno "Jornal da Globo"—, entende e acolhe o sentimento do público, mas diz que não está saudosista do posto que ocupava.
Não é que eu não tenha saudade do jornal. Sinto falta da apresentação do jornal, mas estou sendo profissionalmente preenchido por um monte de outras coisas que nunca pude fazer e sempre quis. Foi uma despedida radical para o público que me acompanhava e também precisei me reorganizar. Continuo sendo jornalista, mas virei a página para viver uma nova fase
Uma avalanche de convites chegou até Tramontina nos últimos meses. Ele foi chamado para escrever livros sobre a profissão e sua carreira; assinou um pré-contrato para narrar um documentário que será em gravado em 2023 —cujo tema é o padre e cientista Roberto Landell de Moura, gaúcho considerado o pai do rádio no Brasil—; dá palestras sobre comunicação quase todas as semanas em empresas e universidades. "O mercado, assim que eu saí da Globo, me redescobriu", diz. Sem poder divulgar detalhes, acrescenta que irá participar de "um projeto que vai explodir no começo do ano que vem".
Também passou a ir a eventos organizados por entidades sem fins lucrativos que o apresentador diz que sempre admirou, mas nunca tinha conseguido testemunhar, seja pelo rigor dos compromissos jornalísticos, seja pelo vínculo de sua imagem com a emissora —na véspera da entrevista, havia ido à festa de comemoração dos 25 anos da Campanha do Teleton, em prol da AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), e, poucos dias antes, estivera ao lado da esposa em um jantar de gala do GRAAC (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer).
Seu hobbie favorito não ficou de fora dos novos acenos: um pool de companhias de viagem chamou o jornalista para correr e compartilhar em suas redes sociais uma prova em Ushuaia, cidade conhecida como "fim do mundo", no sul da Patagônia argentina —Tramontina ainda não sabe em qual mês do ano que vem irá correr nem quantos quilômetros fará.
Sua expectativa, entretanto, é que a rotina perca ritmo nos próximos meses: foi justamente para ter mais tempo livre que, em comum acordo com a Rede Globo, o veterano decidiu, "numa boa", deixar a emissora, depois de concluir que tinha estrutura familiar, profissional e financeira para abandonar o cargo.
Uma das coisas que ele diz que pretende fazer depois que a maratona de novos compromissos se encerrar é se dedicar ainda mais à atividade física. Recuperar a massa muscular que perdeu durante o isolamento social causado pela pandemia de covid-19, quando precisou dar uma pausa nos treinos, é uma de suas metas para 2023 —além de se preparar para a jornada na Patagônia.
Corro para estar bem hoje, amanhã e no futuro. Quando for velhinho, quero estar bem fisicamente para viver bem e continuar correndo.
Corredor (e repórter) de rua
A cerca de 600 km de São Paulo, na cidade de Adamantina, Tramontina já tinha o hábito de participar das provas de corrida de revezamento nas aulas de educação física do colégio em que estudou. Mas foi depois de sair de sua terra natal e vir morar na capital paulista, aos 17 anos, que começou a correr.
No começo, corria sozinho. Fazia de ponta a ponta a Avenida Sumaré, que corta o bairro de Perdizes, onde dividia um apartamento com um amigo. "Muitas vezes, andava 6 km num dia só", diz ele, que veio para a capital a fim de cursar jornalismo. A pé, ele conhecia as ruas e problemas da cidade que, mais tarde, ia se tornar o assunto principal de seu trabalho como repórter na Globo, onde começou cobrindo o chamado "buraco de rua" —jargão jornalístico usado para se referir às matérias que têm repercussão local, e não nacional— para o "Bom dia São Paulo".
O interesse pela corrida aumentou em 2002, quando passou a correr com orientação de uma treinadora que o acompanha até hoje. O objetivo inicial era se preparar para enfrentar um grande desafio de outra modalidade que amava praticar nas férias: o alpinismo.
Com muito treino, chegou ao cume do acampamento base do Monte Everest, no Nepal, a 5.300 metros. Também foi ao Kilimanjaro, na Tanzânia, a quase 6 mil metros de altitude, e até 6.200 metros no Aconcágua, na Argentina.
O jornalista desistiu das montanhas ao perceber que elas estavam o isolando da família: nem sua esposa, Rosana Gerab, nem os filhos Caio ou Nathália, tinham disposição para acompanhá-lo em suas "maluquices". "Foi quando decidi focar só na corrida. Então, desde 2005, corro regularmente e comecei a participar de provas."
Tramontina já fez duas maratonas (42,195 km). "Na primeira fui logo para a mais grandiosa, que é a de Nova York, o sonho de todo corredor", diz. A segunda foi a de Porto Alegre.
O calendário de corridas de rua passou a ser a primeira coisa que ele olhava antes de planejar qualquer viagem. Em 2005, por exemplo, escolheu ir com a família para Berlim em maio, pois sabia que naquele mês ocorreria a BIG 25 Berlin, competição de 25 km que acontece anualmente na capital da Alemanha.
Março foi o mês escolhido para conhecer a República Tcheca, onde correu a Meia maratona de Praga. Também já marcou presença nas meias de Lisboa, Nice, Amsterdã, San Diego, Buenos Aires e Montevidéu. No Brasil, completou provas de 21 km no Rio de Janeiro e Fortaleza, além das tracionais Volta da Pampulha e São Silvestre.
Quando chego numa cidade que nunca conheci, sempre corro na rua. Não corro na esteira da academia do hotel. Adoro me perder pela cidade, porque no dia a dia a gente não vê a cidade, a gente dirige ou tá dentro do ônibus. Mas quando você corre, enxerga a cidade onde você vive e conquista lugares em que parece que nunca esteve antes. A rua é sempre reveladora.
Tramontina diz que tem vontade de correr a Maratona do Sol da Meia Noite, em Tromsø, na Noruega, que começa às 22h e só termina depois que os ponteiros do relógio se sobrepõem. "É exatamente o inverso daquilo que eu normalmente faço, que é correr de manhã, antes das 9h."
Seu grande sonho, diz, é ter preparação física para repetir a experiência de Nova York e, por que não, completar o circuito das maiores provas de 42 km do mundo —que é formado por NY, Chicago, Boston, Londres, Berlim e Tóquio.
"Depois que vi que o Drauzio Varella correu as seis maiores, pensei: 'também posso'", em referência ao feito alcançado neste ano pelo médico de 79 anos. "Agora, levantar às 5h da manhã para treinar todo dia, como ele faz, não dá", ri.
Seis e ônibus
Diferentemente de algumas mulheres de meia-idade, a primeira coisa que um grupo de jovens que aparenta ter entre 20 e 25 anos faz ao cruzar com Tramontina no parque não é pedir uma selfie. Em uníssono, gritam: "Tramontina, seis e ônibus!". O jornalista cai na gargalhada.
O comentário faz referência a um "erro" que o apresentador cometeu ao vivo, em fevereiro de 2019, quando se confundiu no "Radar SP" e disse que eram "seis e ônibus". Ele iria informar o horário, 6h11 da tarde, e acabou misturando com a notícia que falaria na sequência, sobre os ônibus de São Paulo. "A internet virou de ponta cabeça", relembra. O ato falho não virou meme só nas redes sociais. "Os colegas de trabalho também brincavam: 'Tramonta, seis e ônibus?", conta.
Até fotos de pessoas que tatuaram a fala na própria pele o jornalista conta que já recebeu. No último Carnaval, viu placas com a mensagem inscrita em trios elétricos. Com tanta repercussão, decidiu pedir o registro das marcas "seis e ônibus" e "6 e ônibus" no Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial).
Ele aproveitou o meme para batizar a série de vídeos que inaugurou em julho deste ano em suas redes sociais, com o auxílio da filha, formada em administração de empresas, e do genro jornalista. O programa "6 e ônibus" dá dicas culturais, mirando em eventos e lugares que costumam receber pouca cobertura da imprensa. São vídeos sobre "cantinhos de São Paulo", resume o apresentador.
Olhei a repercussão do meu erro na internet e falei 'opa, na verdade o erro no ar só me humanizou', e as pessoas perceberam isso antes de mim. Falaram 'poxa, o cara é humano, o cara erra, é um ser humano, ele não é perfeito'. Na Globo, a gente foi criado ao longo do tempo numa busca incessante pela perfeição absoluta, como se não houvesse erros e como se nós não pudéssemos errar. Não é uma crítica, mas é o registro de um fato, numa empresa de altíssimo padrão.
Rotina flexível
Ser perfeito não está nos planos de Tramontina. No passado, houve uma época em que se recorda de agir de maneira "absolutamente radical" com sua dieta, por exemplo. "Colegas faziam aniversário e levavam aquele bolo de chocolate maravilhoso para a redação e eu era o sujeito que não comia", diz. "Hoje, já me dou alguns prazeres. Se antes não pedia sobremesa quando ia ao restaurante, agora, eu como."
Em casa, contudo, afirma que tenta evitar doces, para não prejudicar os treinos e "porque tudo tem um preço". Além disso, só come "fritura" se o alimento for feito na air fryer, sem óleo, e em quase toda refeição não deixa faltar um "pratão de salada". Evita lactose por causa da esposa, que é intolerante, mas não se priva de beber cerveja ou vinho. "Antes, tomava pouquíssimo por causa das provas de corrida, que fazia com mais frequência."
Também não vê problemas se, às vezes, a rotina de treinos não sai como o esperado. "Viajei para Manaus para mediar um debate entre governadores do estado e encontrei uma temperatura de 28°C às 7h30 da manhã. Como é que treina assim? Fui fazer musculação na academia, mas não aguentava treinar."
Tramontina foge do que diz ser um risco de quem busca a perfeição: ficar antissocial e chato.
"Quem treina demais, por exemplo, sempre arranja aquelas desculpas 'não vou ao aniversário no sábado à noite porque domingo tenho de correr 25 km'; ou 'se for ao aniversário, preciso voltar cedo porque no dia seguinte tenho treino'. Você começa a ficar um sujeito chato e, hoje, estou tentando não ser chato, nem com a minha mulher, nem com os meus amigos e com a minha família."
Perto de chegar aos 70 anos, ele procura um meio-termo, buscando uma rotina em que os novos projetos não atrapalhem seu lazer e vice-versa. "Estou tentando encontrar o equilíbrio. É uma fase muito zen, um pouquinho de cada coisa, com calma. Tem muita coisa para eu fazer ainda."
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