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Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


Barco-hospital e cesárea inédita: projeto leva saúde à região do Tapajós

Médicos e estudantes de medicina atenderam 16 comunidades ribeirinhas e 3 comunidades indígenas situadas na região do tapajós no município de Belterra (PA) - Raphael Martinelle/Missão Amazônia
Médicos e estudantes de medicina atenderam 16 comunidades ribeirinhas e 3 comunidades indígenas situadas na região do tapajós no município de Belterra (PA)
Imagem: Raphael Martinelle/Missão Amazônia

De VivaBem, em São Paulo

13/12/2022 04h00

Quem passasse pela região do Tapajós do município de Belterra, a 1.294 km de Belém (PA), naquela quarta-feira, dia 29 de setembro, teria a impressão de estar diante de um hospital a céu aberto.

De um lado, dezenas de estudantes e professores de medicina atendiam a população local dentro do barco Abaré, clínica móvel cujo nome significa "amigo" em tupi guarani. Em terra firme, as calçadas de casas simples também haviam se transformado em ponto de atendimento: duas ou três cadeiras, uma mesa e uma árvore fazendo sombra e os consultórios ao ar livre estavam de pé.

Outro grupo oferecia consultas na UBS (Unidade Básica de Saúde) e no hospital municipal. A descrição de quem viu a cena é que os voluntários corriam de um ponto a outro com medicamentos, instrumentos médicos ou macas nas mãos, para atender comunidades ribeirinhas e indígenas que vivem às margens do rio Tapajós, onde o acesso aos serviços de saúde é considerado precário.

O mutirão de assistência médico-hospitalar se repetiu do nascer ao pôr do sol até o dia 10 de outubro. O projeto, batizado de "Missão Amazônia", reuniu 10 professores e 40 alunos de medicina que estão na reta final da graduação, vindos de diferentes estados do Brasil, do Rio Grande do Norte a Santa Catarina.

Ao longo da expedição, a equipe percorreu 16 comunidades ribeirinhas e três aldeias indígenas, dentro da Floresta Nacional de Tapajós. No total, foram realizados 3.000 atendimentos, incluindo:

  • Consultas clínicas e odontológicas;
  • 35 cirurgias em pacientes que já estavam na fila de espera do SUS (Sistema Único de Saúde) em Belterra (PA), entre elas de vesícula, para remoção de cálculos, e ginecológicas, para retirada de miomas;
  • Realização de exames preventivos contra o câncer, como o papanicolau (principal forma de detectar lesões que podem vir a desenvolver o câncer de útero);
  • Partos naturais e uma cesariana de caráter inédito;
  • Atualização de vacinação de rotina e da covid-19.

Quem organizou? A iniciativa, realizada pela Inspirali, vertical de medicina do grupo Ânima Educação, também contou com a participação da Ufopa (Universidade Federal do Oeste do Pará) e da RDH (Rede Integrada de Desenvolvimento Humano), além da secretaria de saúde do município de Belterra.

Outras expedições deverão ocorrer em 2023 e nos anos seguintes na região. Segundo os coordenadores da missão, o objetivo é, a longo prazo, contribuir para melhorias nos índices de saúde de Belterra, ao mesmo tempo que instiga os doutores da próxima geração a desenvolverem um pensamento crítico e reflexivo sobre as necessidades de comunidades menos favorecidas.

VivaBem conversou com alguns dos voluntários e conta histórias de atendimentos que marcaram os 15 dias da primeira missão.

Missão Amazônia - Raphael Martinelle/Missão Amazônia - Raphael Martinelle/Missão Amazônia
Voluntários transportam maca para atender comunidades ribeirinhas e indígenas às margens do rio Tapajós, no Pará
Imagem: Raphael Martinelle/Missão Amazônia

De volta ao passado, com um pé no futuro

Tanto no barco-hospital quanto nas ruas, saíram de cena as condições clássicas com que os estudantes estavam acostumados a lidar em estágios anteriores, em grandes centros de saúde, e entraram novos desafios.

Possuir conhecimento, boa vontade e criatividade parecia mais importante do que ter em mãos instrumentos médicos de última geração, contam os voluntários.

  • A estudante Luiza Rodrigues Muniz, 28, lavou o ouvido de uma mulher à beira do Rio Tapajós. "Era uma paciente que relatava que há anos estava com uma dificuldade de ouvir, aí nós tínhamos pequenos instrumentos, mas nos adaptamos e conseguimos fazer a lavagem na beira do navio", relembra a aluna da faculdade Unisul, em Palhoça (SC).
  • Uma garrafa pet com água serviu de recipiente tanto para diluir um medicamento para uma criança quanto para abrigar soro fisiológico, relembra Julia Canfild, 21, que estuda no campus Cubatão (SP) da Universidade São Judas. "Quando você ia deixar um soro numa garrafa PET para entregar à mãe de um paciente? Mas foi aquilo que resolveu a situação", diz a voluntária.
  • Pequenas cirurgias, como a retirada de tumores de pele, também foram realizadas dentro do Abaré, veículo fluvial que pertence à Ufopa.

Já o espaço da UBS e do Hospital Municipal de Belterra foram cedidos pela prefeitura para os procedimentos mais especializados. Os alunos também podiam utilizar recursos modernos para apoiar os diagnósticos, como a telemedicina. A mistura de experiências fez parte de uma tentativa de "resgatar a medicina humanitária a partir de uma conexão da medicina antiga com a moderna", dizem os coordenadores.

Acaba sendo confortável para o aluno de medicina aprender a clinicar, porque a gente tem uma profissão que a gente sabe que vai ter um retorno financeiro. Só que temos uma sociedade muito desigual e a gente precisa compreender esses 'Brasis', até para a gente pensar em políticas de saúde pública. Sara Tomaz, estudante de medicina e voluntária do projeto

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Parte dos atendimentos foi feito dentro do Abaré, barco-hospital cujo nome significa "amigo" em tupi-guarani e tem capacidade para hospedar consultas clínicas e odontológicas
Imagem: Raphael Martinelle/Missão Amazônia

O que a ação mapeou

  • Todos os atendimentos foram registrados em prontuário eletrônico e deverão ser entregues à Prefeitura de Belterra até o final de dezembro para ajudar no planejamento de políticas públicas municipais na área da saúde.
  • Na análise dos coordenadores, saúde da mulher, saúde do idoso e planejamento reprodutivo são áreas que demonstraram maior necessidade de atenção e investimento.
  • "Chegamos a fazer o papanicolau em mulheres que nunca tinham feito o exame na vida", conta Rodrigo Nunes, professor e um dos coordenadores da missão.

A história de um parto

No dia 5 de outubro, a voluntária Luiza Muniz realizou, pela primeira vez, uma cesariana. Alguns minutos depois do procedimento, no entanto, a estudante de Palhoça (SC), que foi supervisionada pelo obstetra Rodrigo Nunes, descobriu que o ineditismo do procedimento ia além de sua trajetória pessoal: envolvia também a do próprio centro cirúrgico.

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No dia 5 de outubro, a estudante Luiza Muniz, com o auxílio do obstetra Rodrigo Nunes, realizou, pela primeira vez, um parto cesáreo, no Hospital Municipal de Belterra
Imagem: Raphael Martinelle/Missão Amazônia

"Quando o doutor Rodrigo perguntou ao hospital se ele estava autorizado a realizar o parto, as enfermeiras falaram 'olha, Dr. Rodrigo, não estamos acostumados a realizar isso aqui no hospital, mas se o senhor quiser, fica à vontade'", relembra Muniz. O médico foi autorizado pelo prefeito de Belterra a realizar a intervenção cirúrgica, no Hospital Municipal de Belterra. "Depois, eles nos contaram que foi o primeiro parto cesáreo feito ali", diz a estudante.

A cesariana foi indicada após avaliação médica, já a que gestação alcançava 42 semanas e o risco de fazer um parto natural aumenta a partir da 41ª. Encaminhar a mulher para Santarém, cidade vizinha situada a cerca de 50 km —atitude até então adotada pelo hospital nesses casos— era arriscado. No caminho, tanto a mãe quanto o bebê poderiam não sobreviver.

Após o parto, que foi bem-sucedido, e a saída dos voluntários da região, a equipe foi notificada que o estabelecimento passou a realizar cesarianas em casos nos quais a intervenção era indicada.

"Conseguimos provar que o hospital tinha capacidade de fazer uma cesárea, porque a gente montou o atendimento à criança e fizemos a capacitação das enfermeiras", comemora Lena Peres, médica e também coordenadora da missão. A reportagem pediu para o Hospital Municipal de Belterra comentar o caso, mas não houve retorno até a publicação deste texto.

Intercâmbio de saberes

No meio de um atendimento, a estudante Sara Tomaz, 26, se viu diante de um dilema: pedir ou não para a paciente deixar de comer farinha? A mulher, diagnosticada com diabetes tipo 2, contou que consumia o alimento em quase todas as refeições.

Apesar de saber que o item não é o mais indicado para quem precisa fazer restrição de carboidratos, Sara concluiu que não podia simplesmente pedir para que ela excluísse a farinha de sua dieta.

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A infectologista e coordenadora da missão Lena Peres atende paciente junto à estudante de medicina Sara Tomaz
Imagem: Raphael Martinelle/Missão Amazônia

Pouco tempo na região foi suficiente para que a estudante da Universidade Potiguar, no Rio Grande do Norte, percebesse que o alimento não é só um acompanhamento, mas um item básico na mesa de quem vive no município, especialmente às margens do rio Tapajós, onde geralmente é consumida a versão feita de mandioca, seja na forma pura ou misturada com sal, açúcar ou água.

Em alguns lares nos arredores do rio, a voluntária notou que essa era uma das poucas opções de comida disponíveis. Ela precisou pensar em uma alternativa para a paciente: "Olha, essa farinha acaba se transformando em açúcar no seu corpo, o que não é bom para quem tem diabetes. Então, quais são as outras coisas que a gente pode cortar ou diminuir no seu dia a dia, para que você consiga manter um pouco dessa farinha que a senhora tanto gosta?".

Entre uma consulta e outra, a importância de atender a população levando em conta as características socioculturais do lugar era reforçada aos futuros médicos pela infectologista Lena Peres.

"Se alguém dissesse 'ah, eu vou passar um soro fisiológico para o paciente lavar a narina', eu questionava 'e quando não estivermos aqui, ele vai buscar esse soro aonde?'", relembra a médica. "Quais são nossas alternativas para a gente explicar como é que um morador que vive às margens do rio pode fazer um soro, nem que seja uma água limpa em casa?", exemplifica.

Ao mesmo tempo em que a gente atendia a população, também aprendíamos muito com os saberes locais, principalmente em relação aos óleos anti-inflamatórios, como o de andiroba, que é muito usado na região. A gente aprendeu muito com os moradores. Luiza Muniz, estudante de medicina

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Médicos e estudantes de medicina atenderam 16 comunidades ribeirinhas e 3 comunidades indígenas situadas na região do tapajós no município de Belterra (PA)
Imagem: Raphael Martinelle/Missão Amazônia

Olho no olho

Sara guarda na memória a imagem de uma paciente que, apesar de ter sido diagnosticada com um câncer de mama avançado, não aparentava ter consciência da gravidade da doença, tampouco seus familiares.

A mulher, de 55 anos, contou à estudante que havia feito uma sessão de quimioterapia em um hospital no município vizinho Santarém, mas, pelo que a futura médica deduziu, ela desistiu de acompanhar o tratamento devido aos seus efeitos colaterais. "Parece que ela não teve a orientação se deveria fazer ou não a químio".

Os exames que denunciavam a presença do câncer estavam guardados dentro de uma pasta e a paciente também tinha dificuldades com a compra de medicações para tratar outro problema.

A estudante de medicina Julia Canfild, 21, foi uma das voluntárias do projeto - Raphael Martinelle/Missão Amazônia - Raphael Martinelle/Missão Amazônia
A estudante de medicina Julia Canfild, 21, foi uma das voluntárias do projeto
Imagem: Raphael Martinelle/Missão Amazônia

Wesley Mota Conceição, 25, viveu uma experiência semelhante no último dia do projeto. Um paciente que ele atendeu tinha indícios da presença de um câncer, mas o morador de Belterra ainda não havia ido ao hospital buscar o resultado da tomografia para confirmar a suspeita. "O homem tinha pavor de descobrir o que estava no exame, mas a vida dele dependia daquele papel", lembra o futuro médico.

Como convencê-lo de que era necessário ler o documento? O voluntário, que estuda na Universidade Salvador, na Bahia, encontrou a resposta depois de bater o olho em uma tatuagem no braço do belterrense.

Perguntou sobre a arte e descobriu que os quatro nomes marcados com tinta em sua pele eram de seus filhos, o que abriu espaço para uma conversa sobre laços e vida. "Conversei com a enfermeira e com a agente comunitária de saúde dele e tentamos montar um ambiente em que a gente pudesse verificar o resultado do exame juntos", conta.

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O estudante Wesley Mota Conceição, 25, é um dos voluntários do projeto Missão Amazônia
Imagem: Raphael Martinelle/Missão Amazônia

Os dois casos não demandaram um daqueles instrumentos médicos sofisticados com os quais os estudantes estavam adaptados a lidar no dia a dia, antes de chegarem em Belterra.

Para Sara, tudo que pareceu necessário diante da paciente oncológica foi o exercício de escuta entre médico e paciente. "Foi muito importante conversar olho no olho com ela e dar um conforto para que essa etapa final da vida dela fosse menos sofrida", diz. A futura médica, que entrou na faculdade com a intenção de uma dia se tornar oncologista, interpretou o atendimento como um sinal.