'Uma torneira aberta': hemorragia pós-parto a fez perder 50% do sangue
Passadas 39 semanas e cinco dias de uma gestação tranquila, Lívia Guimarães, 40, gerente de operações, deu entrada na maternidade de Uberlândia (MG) para passar por uma cesariana necessária, já que o filho não estava na posição correta para um parto vaginal.
A cirurgia ocorreu sem intercorrências e ela logo foi para o quarto com o filho nos braços. Passadas duas horas, a mãe de Lívia observou um aumento do sangramento e resolveu chamar a enfermeira, que ignorou a gravidade da situação. A recém-avó precisou falar duramente: "Chamem a médica ou vou ligar para a polícia!"
Lívia teve um choque hemorrágico. "Parecia que tinha uma torneira aberta de sangue", relata a gerente, que perdeu 50% do sangue do corpo. Isso aconteceu há 7 anos.
O que os dados dizem?
- A hemorragia pós-parto é a principal causa de morte materna no mundo. No Brasil, cresceu 25% em 10 anos (2010-2020), segundo dados compilados pela reportagem de VivaBem no portal DataSUS.
Lívia sobreviveu depois de ter tido uma parada cardíaca e ficado cinco dias em coma. Quando acordou, soube que seu útero havia sido retirado.
"A histerectomia [retirada do útero] é feita quando as demais medidas intervencionistas falharam ou quando a paciente não está estável. É uma ação extrema, mas que às vezes se faz necessária para preservar a vida da mulher", explica Melania Amorim, professora de obstetrícia e ginecologia na UFCG (Universidade Federal de Campina Grande) e membro da Comissão de Mortalidade Materna da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).
- O número de histerectomias puerperais também vem crescendo no país e saltou de 160 em 2010 para 270 em 2020, aumento de 69%.
Era a primeira gestação de Lívia, que sonhava em ter mais dois filhos. A histerectomia, que retirou as chances de ela gestar novamente, talvez pudesse ter sido evitada. "A biópsia revelou que a hemorragia aconteceu porque tive placenta acreta [quando a placenta não está aderida corretamente ao útero]. Acho que houve um descuido da médica quanto ao problema no momento da cesárea", pondera Lívia.
O acretismo placentário representa 20% dos casos e acontece quando a placenta, que é um tecido, penetra na camada mais profunda do endométrio ou no miométrio.
Por que a hemorragia pós-parto acontece?
- A hemorragia primária é a mais comum e acomete a mulher imediatamente ou em até 24 horas após o parto. Quando ela acontece em até 12 semanas após o parto, é secundária ou tardia e mais grave porque possivelmente a mulher não está sob supervisão médica ou mesmo já teve alta da maternidade, demandando uma percepção acurada da parturiente quanto ao aumento do fluxo sanguíneo vaginal.
"A tendência é que o fluxo diminua com o passar dos dias do parto. Então se a mulher percebe mais sangue no absorvente ou uma secreção, às vezes com mau cheiro, isso requer atenção e ela deve procurar atendimento médico com urgência", garante Jorge Rezende Filho, professor titular de obstetrícia da Faculdade de Medicina da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e membro titular da Academia Nacional de Medicina.
Fatores que aumentam o risco para hemorragia:
- Sobrepeso
- Gravidez gemelar
- Bebê muito grande
- Mulheres que tomam anticoagulante
- Gestantes com placenta prévia (quando ela cobre a abertura no colo do útero)
- Parto prolongado ou parto muito rápido
- Cesárea
- Várias partos
- Hipertensão
- Gravidez após os 40 anos
Mas a principal causa dessa emergência em saúde da mulher, e que representa 70% dos eventos, é a atonia uterina, quando o útero perde a capacidade de contração.
"Nesses casos, o protocolo seguido é o uso de medicamentos, massagem uterina, tamponamento uterino com balão e suturas compressivas no útero", exemplifica Amorim.
Já a hemorragia por trauma é resultado principalmente de práticas médicas antiquadas e invasivas como episiotomia, fórceps e manobra de Kristeller. Bebês grandes ou várias gravidezes também podem lesionar o canal vaginal levando a um maior sangramento. Já as coagulopatias ocorrem em 1% dos casos, em gestantes que apresentam problemas na coagulação sanguínea.
Dá para prevenir?
Qualquer que seja a via de parto, logo após o nascimento do bebê a mulher recebe ocitocina profilática, que é um hormônio sintético que promove a contração do útero. A medicação faz parte do manejo de risco e diminui em até 60% a incidência de hemorragia pós parto.
Outra recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) é que a parturiente fique sob vigilância da equipe médica na chamada "golden hour".
"A primeira hora pós-parto é primordial para prevenir intercorrências e a equipe de enfermagem precisa observar a parturiente, medindo a pressão arterial e avaliando as características do sangramento", esclarece Rita Calfa, coordenadora do curso de enfermagem obstétrica da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e diretora-geral da Maternidade Estadual Tsylla Balbino, em Salvador.
Nessa primeira hora também é importante que a mãe seja estimulada a amamentar, pois o ato libera ocitocina no organismo. Por outro lado, a classificação de risco para hemorragia deve ser feita durante todo o pré-natal, por isso é importante que a gestante tenha acesso às consultas e aos exames recomendados para cada etapa da gravidez.
Como melhorar?
Os números de morte materna no país se movem na direção contrária aos objetivos estabelecidos na ODS 3 (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) da ONU (Organização das Nações Unidas). A meta é reduzir a taxa de mortalidade materna para no máximo 30 a cada 100 mil nascidos vivos no Brasil até 2030.
Desde 2017, o Ministério da Saúde, em parceria com a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), desenvolve o programa estratégia "Zero Morte Materna por Hemorragia". Por meio de nota, a assessoria de imprensa da pasta disse que atualmente 11 estados e o Distrito Federal estão em processo de implementação do programa, que deve ser concluído até dezembro. Ainda segundo a nota, entre 2020 e 2022, foram capacitados cerca de 1.030 profissionais de saúde.
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