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'Sensação indescritível': por que algumas mulheres têm orgasmo ao parir

Aline teve um orgasmo no parto de seu segundo filho Imagem: Arquivo pessoal

Lívia Inácio

Colaboração para VivaBem

03/01/2023 04h00

Partolândia é o metaverso para onde mães dizem ir durante um parto natural. A ciência explica: além das terminações nervosas atingidas no momento em que a criança sai pela vagina, uma enxurrada de hormônios entra em cena, levando a gestante a uma espécie de transe.

E há quem diga ser possível ter também um orgasmo no momento. O fenômeno começou a ser pesquisado na segunda metade do século passado, mas só ganhou destaque na mídia com o documentário "Parto Orgásmico" (2008). Nele, a doula e diretora Debra Pascali-Bonaro mostra mães que pariram felizes, quebrando a ideia de que nascimento é sinônimo de dor e colocando o prazer nessa equação.

Não é só dor

O termo "parto orgásmico" ainda não tem definição científica, apesar de haver estudos desde os anos 1950 investigando as relações entre nascimento e êxtase sexual. A ginecologista e obstetra Liduina Rocha, da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), explica que o nome é usado atualmente para se referir não apenas ao prazer vaginal, mas a qualquer outra forma de satisfação física que a mãe sinta enquanto o bebê nasce.

O número de mulheres que vivenciam o fenômeno não é preciso, mas algumas causas já foram mapeadas, de acordo com uma revisão da Revista Britânica de Obstetrícia. Segundo o texto, o toque, o beijo e a estimulação genital podem ajudar a aliviar a dor.

O artigo aponta também que hormônios associados ao prazer, como a ocitocina e as beta-endorfinas, são liberados quando a cabeça da criança começa a sair. Nesse momento, conhecido como círculo de fogo, a mulher sente uma ardência intensa na região e estimular esses agentes pode tornar o momento prazeroso, mesmo que a dor não pare.

O contato com o clitóris é um meio para isso, mas não o único. Se no sexo o orgasmo feminino tem diferentes causas (pode vir pelo toque em zonas como os seios, o clitóris e o canal vaginal), no parto orgásmico é a mesma coisa. "Ninguém sabe ao certo quantos caminhos existem. Por isso é importante que a mulher conheça seu corpo e as particularidades dele", diz a ginecologista e obstetra Natália Piovani Banzato, professora na UP (Universidade Positivo), em Curitiba.

Lugar seguro

Uma das condições mais importantes para um parto orgásmico é um espaço seguro e tranquilo, em que a mulher possa parir com privacidade, explica a ginecologista e obstetra Catiane Ribeiro, que atende no SUS (Sistema Único de Saúde) e na Clínica AmorSaúde em Juazeiro, na Bahia.

A adrenalina e a noradrenalina geram uma sensação de alerta na hora do parto e, em meio a um estresse iminente, a mãe deve estar em um contexto acolhedor, com alguém em quem confie e sem pressões. É também por isso que desde 2005 uma lei federal estabelece que toda mulher tem direito a um acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato.

Parir com prazer

A doula e fonoaudióloga neonatal Aline Sudo, 46, teve o primeiro filho em hospital e foi muito prazeroso, segundo ela. "O espaço acolhedor em que estava e a relação libertária que eu sempre tive com meu corpo contribuíram para isso", diz.

Mas foi no segundo parto que veio um orgasmo propriamente dito. Ela leu muito sobre o tema e resolveu parir em casa, acompanhada por uma equipe de saúde. "Meu companheiro estava ao lado, mas sem nenhuma intervenção sexual. Quando o bebê passou pela vagina, foi uma sensação indescritível", lembra.

Hoje, atuando como doula, ela aconselha suas pacientes a se masturbarem antes e durante o trabalho de parto, desde que isso faça sentido para elas.

O prazer é muito relativo. O que pode ser bom para uma mulher pode não ser para outra. A mãe precisa ter autonomia para encontrar satisfação do seu modo. Aline Sudo

Marina Ritter Waskow, 27, também viveu um parto orgásmico. A doula e aprendiz de parteira pariu em casa e foi acompanhada pelo companheiro o tempo todo. Ela não teve estimulação genital, mas entrou em êxtase durante o círculo de fogo. "Até a luz do quarto mudou de cor", lembra.

Marina entrou em êxtase durante parto Imagem: Betina Tirra

Parto e tabu

Apesar de o nascimento ser uma fonte de satisfação, o prazer no parto ainda é raro, argumenta a doula e educadora perinatal Vivian Pasini, que integra a Adouc (Associação de Doulas de Curitiba e Região Metropolitana). A primeira razão para isso é a cultura. No ocidente, a mãe é vista como pura, imaculada e não pode sentir prazer. "É necessária uma mudança de paradigma para que as mulheres possam parir com leveza", diz.

Outro entrave é a associação direta entre parto e sofrimento. Um dos resultados disso é o elevado índice de cesáreas. No Brasil, elas correspondem a 88% dos nascimentos em hospitais particulares e 43% do SUS, segundo dados da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz). A orientação do médico que faz o pré-natal é decisiva nessa escolha, mostra uma pesquisa da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

Mas o problema não para por aí. Mesmo quando o parto normal é a primeira opção da mulher, um nascimento prazeroso para a mãe é inacessível à maioria das gestantes, sobretudo às periféricas, lembra Aline, que é também doutoranda em bioética.

Não dá para falar em parto orgásmico sem fazer um recorte de classe e raça. A maior parte das mulheres sequer escolhe como parir e se vê sujeita a diversas formas de violência. Aline Sudo

Entre as situações, estão agressão física, verbal e a aplicação de técnicas médicas invasivas como a episiotomia, corte cirúrgico no períneo que é aplicado sem necessidade em muitos partos. A mais recente pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz, estima que em torno de 53,5% das mulheres são submetidas ao método no país.

Desde a última década, pesquisadores e autoridades em saúde têm reunido parâmetros para combater ocorrências assim. Um dos marcos desse movimento é um texto da OMS (Organização Mundial de Saúde), de 2015, que reconhece a violência no parto como um problema global. É também nesse contexto que nasce a ideia de violência obstétrica, outro termo recente em debate.

A doula Kalu Gonçalves, 47, viu de perto essas discussões ganharem corpo. Nos anos 2000, trabalhava como jornalista e produzia matérias sobre o assunto para a emissora em que atuava. O nascimento do seu filho, hoje com 15 anos, foi durante um parto orgásmico e levou apenas 40 minutos.

Ao passar pela experiência, resolveu trabalhar para que mais mulheres pudessem viver esse momento de forma respeitosa. Já acompanhou mais de 1,2 mil partos humanizados, tendo presenciado três orgasmos vaginais, além do dela. "Não acho que a mulher deva desejar um orgasmo no parto. Mas parir com prazer, seja ele qual for, tem uma potência que não pode ser ignorada", diz.

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