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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Dias sem comer, diurético antes de gravar cenas: atriz fala sobre bulimia

A atriz Juliana Lourenção Imagem: Reprodução

Do VivaBem, em São Paulo

18/01/2023 04h00

Atenção: a reportagem abaixo contém conteúdo sensível e pode ser gatilho para algumas pessoas.

Quando tinha 15 anos, a atriz Juliana Lourenção parou de comer em público. Toda vez que era chamada para almoçar fora, a ex-bailarina dizia aos amigos "não estou com fome" ou "já comi em casa".

Sozinha, comia tudo que via pela frente: ovo cru com açúcar, farinha de trigo, feijão gelado. Em seguida, ia ao banheiro e botava tudo para fora.

O comportamento se estendeu, entre altos e baixos, até meados de 2021, quando a artista, hoje aos 33, teve alta de um tratamento multidisciplinar para a bulimia, transtorno alimentar que fazia com que ela comesse exageradamente e depois se sentisse culpada, provocando vômito para evitar o ganho de peso.

Enquanto conversa com a reportagem de VivaBem, Lourenção, conhecida por interpretar a personagem Bruna na série brasileira de suspense "Vale dos Esquecidos" (HBO), come uma porção de pão de queijo e toma uma xícara de chá, sem pressa. O simples comportamento é celebrado como um "sinal de liberdade" pela catarinense.

"Em épocas atrás, eu jamais teria pedido o pão de queijo, ou teria comido tudo em cinco segundos. E ainda saberia dizer de cabeça quantas calorias teria ingerido", diz ela.

A obsessão por contar as calorias de tudo que colocava na boca e o consumo de diuréticos antes de se apresentar no balé ou de gravar cenas, para parecer mais magra, eram rotina.

A sensação de quem tem transtorno alimentar é de que está sozinho no mundo. Gosto de me expor para estimular que pode ter uma saída, que tem tratamento e que as pessoas não estão sozinhas. Juliana Lourenção, atriz e ex-bailarina

Ao VivaBem, ela compartilhou sua história com a bulimia, contou sobre a pressão que recebeu no meio artístico para perder peso quando era adolescente e como conseguiu controlar o distúrbio alimentar. Veja a seguir:

"Comecei a dançar balé aos 7 anos, impulsionada por minha avó paterna, que dançava e era atriz. Como eu era uma criança magra, tinha o corpo padrão que o balé clássico, naquela época, adorava —é um preconceito que sinto que hoje está mudando.

Mas, depois que tive a primeira menstruação, aos 13, meu corpo começou a mudar. Com 14, 15 anos, eu, que costumava ser 'reta', me vi cheia de curvas: cresceu peito, bunda, coxa. Isso ficava nítido quando eu vestia meia calça e collant. Foi quando comecei a receber cobranças para ser 'mais sequinha'.

A cobrança vinha principalmente do balé. As coreógrafas falavam, sem pudor nenhum, que eu tinha que emagrecer, que 'estava com a bunda muito grande'. Diziam que 'bailarina tinha que ser leve, não podia ser pesada'.

Várias amigas minhas também passaram pela mesma coisa.

Em casa, lembro que meu pai dizia que eu estava 'cheia, gordinha', e que mulheres lindas tinham que ser 'ossudas', com os ossos da saboneteira e das vértebras da coluna à mostra. Minha mãe também fazia umas dietas malucas.

Para Juliana Lourenção, o principal gatilho que fez com que ela desenvolvesse bulimia foi a pressão estética do balé clássico Imagem: Arquivo pessoal

Ser adolescente nos anos 2000 também era, por si só, difícil, com aquela propagação imensa de dietas que prometiam perder 5 kg em dois dias, e as celebridades eram magérrimas.

Com 15 anos, comecei a fazer as dietas malucas que via nas revistas. Não estava acima do peso, mas perdi cerca de 6 kg em dois meses.

No balé, aplaudiram o meu emagrecimento. Disseram que eu era uma inspiração. Aquilo foi um gatilho. Olhando para trás, é como se, naquele momento, eu entendesse que ser magra significava receber reconhecimento e carinho das pessoas.

Dali para frente foi ladeira abaixo, comecei a emagrecer cada vez mais.

Não acho que tenha um vilão nessa história. Tanto a coreógrafa quanto meus pais estavam reproduzindo comportamentos que foram impostos sobre eles. A sociedade reproduz muita coisa e, agora, a gente vai refletindo e construindo novas formas de se relacionar.

Encontrei blogs na internet que estimulavam anorexia e bulimia, e passei a pegar dicas sobre como contar as calorias dos alimentos, como passar dias sem comer, técnicas para vomitar.

Comecei a comer 1 colher de arroz, 1 colher de feijão, um pouquinho de carne e um monte de alface, para fingir que meu prato estava cheio. Parei de tomar café da manhã. Comia um sanduíche natural e ia ensaiar por seis horas seguidas.

Durante os ensaios, a coreógrafa dizia para comer duas castanhas e um polenguinho light. No café da manhã, ela sugeria tomar 'só um cafézinho com leite, porque é menos calórico'.

Cheguei a passar 24 horas sem comer, várias vezes. Ou até dois dias sem comer. Nunca consegui ficar três dias inteiros de jejum, mas às vezes comia só alface ou só ovo cozido.

Quando me olhava no espelho, via tudo distorcido. Me enxergava muito maior do que eu era. Ficava muito chateada se não conseguisse dar a volta no meu pulso com a minha própria mão. Qualquer gordurinha me incomodava.

A atriz Juliana Lourenção é ex-bailarina Imagem: Arquivo pessoal

A partir dos 16, 17 anos, comecei a ter episódios de compulsão alimentar. Então, passei de não comer nada para comer absolutamente tudo. Comia ovo cru com açúcar, farinha de trigo pura, feijão gelado, pão com doce. Tudo misturado, coisas horríveis. Comia de madrugada para ninguém ver.

Eu comia, comia, comia, até minha barriga doer. Foi aí que descobri o poder de vomitar. Porque a culpa depois de você ter comido 'vem na lua'. Você pensa: 'como é que eu vou me livrar disso?'.

Às vezes, indo para escola ou faculdade, parava no terminal de ônibus e comia três, quatro coxinhas, e ia para o banheiro vomitar. Se meus amigos me chamavam para comer fora, eu dizia que já tinha comido ou estava sem fome.

Também me cortava durante a noite e bebia e fumava muito. A situação foi escalonando para níveis horríveis.

Mais tarde, entendi que isso tudo fazia parte do transtorno, das compulsões, das tentativas de expurgo. O expurgo não se dá só no vômito, eu também tomava laxantes, diuréticos, ficava até com cãibras nas costas.

De tanto vomitar, meus dentes desgastaram muito, por causa do ácido do vômito. Até hoje, os dentes da frente são fininhos igual papel, por isso, de anos em anos, tenho que passar por um procedimento para refazê-los.

Foi meu pai quem percebeu que eu precisava de ajuda. Ele reparou que, toda vez que eu ia para o banheiro, ligava o chuveiro [para disfarçar o barulhos do vômito]. Ele sentou para conversar comigo e eu contei o que estava acontecendo. Parece dicotômico, mas foi ele quem me acolheu e me incentivou a buscar terapia.

Minha mãe demorou a entender o que eu tinha, mas depois entendeu e os dois me encaminharam para o tratamento. Tive muita sorte, minha família foi uma rede de apoio muito boa para mim.

Fui diagnosticada com bulimia e, a princípio, fiz um ano de terapia, mas abandonei o tratamento porque não queria assumir que estava doente. Achava que a psicóloga estava mentindo para mim. Era muito jovem, tinha 19 anos.

Aos 20 anos, saí de Florianópolis, onde nasci e fazia faculdade de cinema, e me mudei para São Paulo, para estudar artes cênicas. Então, os trabalhos que eu fazia começaram a migrar da dança para a atuação.

Quando ia para uma sessão de fotos ou uma diária como atriz, tomava diurético para ficar mais sequinha. Já tive agentes que me disseram que, se eu não emagrecesse ou não 'diminuísse minhas coxas', não ia conseguir trabalhar como atriz.

Imagem: Arquivo pessoal

O que é mais alucinante disso tudo é que nunca fui uma pessoa gorda. Sou uma 'mulher padrão' dentro da nossa sociedade. Isso mostra como o padrão de beleza é completamente inventado e inatingível. É doentio.

Na pandemia, voltei a ter episódios absurdos de compulsão e vômitos. A ansiedade, a interrupção das gravações por causa da covid, minha família na linha de frente, o isolamento social...Tudo isso serviu como gatilho. Foi aí que meu noivo, que eu conheci na pandemia, me incentivou a voltar para a terapia.

Fiz um ano e meio de tratamento multidisciplinar, que incluía terapia comportamental com psicóloga e terapia nutricional com a nutricionista, ambas especializadas em transtornos alimentares. É inacreditável o quanto isso mudou minha vida.

Antes, eu abria a geladeira e via um monte de números. Sabia quantas calorias cada coisa tinha. Nunca imaginei que pudesse ter a liberdade que hoje tenho com a comida.

Também comecei a cozinhar minha própria comida. Hoje em dia, como muito mais em casa do que fora.

A sensação de quem tem transtorno alimentar é de que está muito sozinho, de que 'essas coisas esquisitas que eu faço de compulsão, mutilação, ninguém mais no mundo faz isso'. E eu gosto de me expor para estimular que pode ter uma saída, que tem tratamento e que as pessoas não estão sozinhas.

Eu tive alta, mas não tem cura definitiva. Cada corpo é um corpo e está aí para te fazer feliz, então cuide dele e não tenha medo de pedir ajuda se necessário."

O que é bulimia e como funciona o tratamento

A bulimia nervosa é caracterizada por episódios frequentes e recorrentes de compulsão alimentar, seguidos por comportamentos compensatórios, que têm o objetivo evitar o ganho de peso. Veja os principais:

  • Vômito autoinduzido;
  • Jejum ou uso de diuréticos para induzir a perda de peso;
  • Uso de laxantes para reduzir a absorção de alimentos;
  • Exercícios extenuantes para aumentar consideravelmente o gasto de energia.

Normalmente, esses comportamentos ocorrem dentro de uma hora após a compulsão alimentar.

A pessoa que tem bulimia usualmente vai para o banheiro logo após a alimentação para fazer esse mecanismo de compensação, por causa do excesso de comida ingerida. É um transtorno que causa enorme sofrimento físico e mental, além de provocar alterações fundamentais na relação com o outro. Fábio Gomes de Matos, psiquiatra e coordenador do Cetrata (Centro de Tratamento de Transtornos Alimentares), projeto de extensão da UFC (Universidade Federal do Ceará).

  • Pessoas acometidas pela bulimia também apresentam preocupação excessiva com o peso ou a forma de seu corpo. Monitorar constantemente o conteúdo calórico dos alimentos, evitar roupas apertadas ou não querer ter espelhos em casa são comportamentos comuns.
  • Comorbidades como o transtorno de ansiedade, depressão e o transtorno de personalidade borderline também podem estar associadas ao distúrbio alimentar.
  • Segundo a nova versão da Classificação Internacional de Doenças, a CID-11, da OMS (Organização Mundial de Saúde), o início do transtorno alimentar geralmente ocorre durante ou logo após a puberdade.
  • A condição é mais comum em mulheres e sua prevalência é maior em culturas caracterizadas por um ideal de corpo magro.

Vários fatores causam a bulimia e eles podem ser divididos entre psicológicos, culturais, biológicos e nutricionais. É por isso que o tratamento precisa ser multidisciplinar. Deve ter, no mínimo, um psiquiatra, um psicólogo e um nutricionista, todos especialistas em transtornos alimentares. Marcela Kotait, nutricionista do Programa de Transtornos Alimentares do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo)

  • O papel da terapia nutricional é melhorar a relação com a alimentação, já que, muitas vezes, é comum a classificação dos alimentos entre "proibidos" e "permitidos".
  • O nutricionista também deve ajudar a pessoa a reestabelecer seus sinais físicos internos de fome e de saciedade.
  • Já o psiquiatra poderá, dependendo do caso, prescrever medicamentos, como a fluoxetina, um antidepressivo indicado para o tratamento da bulimia.
  • O papel da psicoterapia, por sua vez, é desenvolver técnicas para melhorar a relação com a imagem corporal, ensinar o controle dos episódios de compulsão, aumentar a autoestima do paciente e ajudá-lo a lidar de modo funcional com emoções intensas, por exemplo.
  • Outros profissionais como endocrinologistas, gastroenterologistas e assistentes sociais também podem fazer parte do tratamento.

Os transtornos alimentares têm remissão. Com tratamento especializado, há um aumento das chances de remissão. É possível você ter uma relação mais saudável e mais pacífica tanto com a comida quanto com a forma corporal. Marcela Kotait, do IPq-USP

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