Ela tem doença rara que causa sono o tempo todo: 'Já dormi 3 dias direto'
No último sábado (21), a funcionária pública Cecília Carmo, 47, saltou de paraquedas pela primeira vez, seu sonho desde os 21 anos. Ela se lembra de colocar os equipamentos e pular do helicóptero, mas não se recorda do pouso. Ela chegou ao chão dormindo e foi colocada em uma poltrona confortável. Ficou lá por uma hora e meia, em sono profundo.
Dormir é um hábito mais comum na vida de Cecília do que na de outras pessoas. A culpa é da hipersonia idiopática, doença rara e sem cura que causa sono excessivo.
Quando criança, ela brincava e estudava entre bocejos. "Os relatos da minha mãe eram que eu dormia o tempo todo." Cecília morava ao lado da escola e mesmo assim chegava atrasada pela dificuldade para acordar. Na sala de aula, terminava as atividades antes dos colegas para cochilar. Com o tempo, a situação piorou.
Meu primeiro emprego foi de babá, eu fazia a criança dormir e dormia junto. Cecília Carmo
Anos mais tarde, quando trabalhava em uma gráfica, quase assinou a demissão porque os chefes a pegaram cochilando. "Mas o meu rendimento acordada era melhor do que o das outras meninas, então resolveram me manter. Quando o sono vinha, eu ia pro banheiro, dormia, depois me acordavam e davam café."
Nessa época, o médico da empresa prescreveu remédios indutores do sono, porque disse que o cérebro de Cecília não descansava durante a noite. Os diagnósticos errados se acumularam ao longo da vida: reumatismo, cansaço mental, síndrome do pensamento acelerado, depressão, estresse.
Apenas há sete anos um neurologista suspeitou da condição. O diagnóstico da hipersonia idiopática é difícil e ainda não existem exames específicos para comprová-la. A descoberta ocorre pela exclusão de outras doenças que também causam sono.
Entenda a doença
- A hipersonia idiopática tem causas ainda desconhecidas.
- De maneira simples, a doença anula o mecanismo reparador do sono.
- Além de ter necessidade de dormir por tempo prolongado à noite --mais de 10 horas, em geral--, a pessoa apresenta sonolência excessiva durante o dia. Nem cochilos tiram o sono e a sensação de cansaço.
Foi um alívio descobrir o que eu tinha, porque eu era tida como preguiçosa. As pessoas falam que querem ter esse sono, muitas acham que dormir é um privilégio. Eu falo que o sono dói. Quando estamos com muito sono, o corpo dói. E eu sinto isso o tempo todo. Cecília Carmo
É comum que diagnósticos de saúde mental, como ansiedade e depressão, coexistam em pessoas com a hipersonia idiopática e outros distúrbios do sono. Julgamentos impulsionam esses casos, que atrapalham o tratamento.
"Muitas vezes, o paciente é tratado como indisposto e isso gera desconforto muito grande quanto ao seu papel social. Quadros depressivos e ansiosos devem ser sempre observados e tratados, para evitar que exacerbem ainda mais a dificuldade com a sonolência e a inclusão social", diz o médico do sono Samir Magalhães, chefe da divisão médica do Hospital Universitário Walter Cantídio, da UFC (Universidade Federal do Ceará).
Como é o tratamento
- A hipersonia idiopática não tem cura. O tratamento serve para garantir qualidade de vida ao paciente.
- As intervenções são, em sua maioria, para que a pessoa entenda o problema e reconheça seus gatilhos.
- Podem existir abordagens terapêuticas e, se necessário, remédios estimulantes para reduzir o sono.
- A FDA (Administração de Alimentos e Medicamentos), agência regulatória dos EUA, aprovou em 2021 o uso do primeiro medicamento contra a hipersonia idiopática, o Xywav.
- Também é necessário organizar o padrão de sono a partir de mudanças do comportamento e estabelecer uma agenda de cochilos para tentar equilibrar a sonolência.
É fundamental o paciente ser tratado por uma equipe composta por profissionais de áreas diferentes para alcançar boa qualidade de vida. O tratamento não farmacológico ajudará o indivíduo a cuidar do seu sono e do impacto na saúde mental. Katie Almondes, psicóloga do sono e professora da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Cecília, a "tia adormecida"
Histórias de pegar no sono do nada se acumulam na vida de Cecília. "Eu nunca vi meus filhos acordar à
noite. Se eles acordavam, eu nã o sei. Sempre falei que eles eram tranquilos, mas talvez seja porque eu nã o via."Ela deu aula por um período e ganhou dos alunos o apelido de "tia adormecida", por dormir com frequência nas aulas, incluindo de maneira súbita.
"Eu dava aquelas cabeçadas na lousa. Quando passava atividade para a turma, eu dormia na mesa", lembra.
Cecília já dormiu no banheiro da escola, durante o intervalo de aulas, e foi acordada só duas horas depois, quando a encontraram caída no chão, após supervisores notarem a sua ausência em sala.
Ela passou por ciclos de medicação após o diagnóstico correto. Mas, para ela, os remédios perdem efeito com o tempo, mesmo aumentando a dosagem.
Hoje, nem o namoro escapa: "Durmo até na hora H, não toda vez, mas pode estar o maior climão e eu apago."
Ela também voltou a dormir em locais públicos. No ônibus, uma vez foi acordada pelo motorista. O caso mais grave aconteceu no shopping. Lembra-se de subir a escada rolante e de despertar ao lado de atendentes do Samu.
As pessoas disseram que saí andando [da escada rolante] e encostei na parede da lanchonete. Pensaram que eu estava orando. Quando se deram conta, acharam que eu tinha desmaiado e me colocaram sentada, chamaram o segurança e os socorristas. Demorei uma hora e meia para acordar. Cecília Carmo
"O corpo não ajuda"
Tanto sono traz consequências. Cecília amava correr, mas com a piora da doença ao longo dos anos precisou abandonar a atividade. "Hoje eu mal consigo andar", diz. A hipersonia idiopática também tirou outros prazeres, como ler e assistir a filmes. Tudo amplifica a sensação de cansaço. Nessa queda de braço, vence a vontade de se deitar e dormir. Também parou de cozinhar após se queimar devido ao sono excessivo.
Os médicos recomendam que ela faça exercício pela manhã para conseguir se manter bem no restante do dia. Quando consegue, de fato ajuda. Mas com a rotina de trabalho nem sempre é possível. Mesmo assim, a recomendação é não se aposentar, porque sem a obrigação de uma atividade há o risco de dormir o dia todo.
Quanto mais durmo, mais sono tenho. É como se o sono fosse uma droga. Já dormi três dias direto, sem ir ao banheiro, sem comer. Cecília Carmo
Ela também não consegue mais participar como gostaria de movimentos sociais e sindicais, dos quais sempre gostou. "Uma vez, estava em um ciclo de palestras online e ouvi várias pessoas. Na minha vez de falar, eu dormi e só acordei no dia seguinte."
As ausências prejudicam a sua saúde mental. Estresse e irritabilidade são frequentes. A ansiedade surge com a incerteza de não fazer o que precisa nos prazos necessários, uma procrastinação involuntária.
"Quando tenho algo para fazer, sei que preciso, mas não consigo. Se vou lavar a louça, coisa que qualquer pessoa faria em 30 minutos, eu fico lá o dia todo. Não são todos os dias, mas vão ter aqueles em que o corpo não ajuda", conta.
Trazer visibilidade às pessoas com hipersonia virou uma meta para Cecília. Segundo ela, é uma luta para mostrar ser possível assumir funções mesmo sem as medicações específicas contra a doença.
"Podemos saltar de paraquedas, botar um bebê no mundo, escrever um livro, sermos o que quisermos. Somos poucos, raros, espalhados pelo Brasil, mas se nos juntarmos, unidos como a família que somos, podemos melhorar nossa qualidade de vida e evitar os desprazeres do dia a dia", diz.
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