'Demorei um ano para voltar à terapia após a morte do meu psicólogo'
A estudante Aíse Euler, hoje com 23 anos, conviveu e compartilhou as suas emoções com o mesmo psicólogo por cinco anos. Ele a acompanhou desde a adolescência e foi essencial no diagnóstico do transtorno de personalidade borderline, doença sem cura em que os sentimentos são descritos como uma montanha-russa.
Após três anos e com a melhora progressiva, as consultas semanais viraram quinzenais. Depois, Aíse teve "alta" (o transtorno foi controlado) e fazia visitas esporádicas em emergências. A certeza desse suporte por perto era um porto-seguro. Mas um dia tudo mudou. O psicólogo que acompanhava Aíse morreu de maneira súbita, após um ataque cardíaco.
Foi uma perda muito grande, e eu nunca tinha perdido ninguém. Criamos um vínculo muito forte, porque ele era um grande amparo para mim, sabia tudo da minha vida, eu contava tudo. Aíse Euler, estudante
O luto foi intenso. E é natural que seja, porque a relação é o estabelecimento de um vínculo que gera empatia, confiança e afeto. Ao perder isso, é esperado que a pessoa sofra e viva as fases do luto, naturais a qualquer um, como negação, raiva, depressão até à aceitação.
O paciente não deve ter acesso pleno à vida do terapeuta, nem saber detalhes íntimos —essa é uma das mais importantes premissas éticas da relação. No entanto, o contato naturalmente gera apego, por ser um espaço de segurança, escuta ativa e afetiva.
A psicoterapia é um vínculo em que a pessoa confia no profissional. Todo o tratamento envolve a confiança. À medida que há essa interrupção brusca, a pessoa vive o luto. Vinícius Pedreira, psiquiatra e professor da Unime Lauro de Freitas (BA)
'É muito difícil contar tudo da sua vida de novo'
O baque da perda se estendeu por meses para Aíse. "Uma pessoa assim acaba virando alguém da família, não tinha um dia que eu não lembrasse dele, que eu não sentisse falta e quisesse contar coisas pra ele", diz.
A angústia se intensificava ao lembrar da última consulta, um mês antes da morte. "Eu estava em um dia meio depressivo e falei tantas coisas ruins. Fiquei pensando que as minhas últimas palavras para ele foram essas."
Quando o psicólogo morreu, Aíse vivia um momento sensível, com turbulências familiares e recaída dos sintomas depressivos. Fora as complicações inerentes à vida, o luto se tornou uma dificuldade para seguir e ela sabia que precisava voltar à terapia. O problema estava em achar um novo profissional.
Eu disse que nunca mais ia conseguir fazer terapia, porque sentia que estava colocando alguém no lugar dele. Aíse Euler
O receio da substituição, comum após uma perda importante, dissipou-se aos poucos. Após esse estágio, o luto virou uma tristeza sem explicação que surgia com a chegada do fim do mês, época em que o profissional morreu. "Eu começava a me sentir mal, mais para baixo, era muito triste. Olhava o calendário e o mês estava acabando."
Quando se sentiu pronta para retornar às consultas, um ano depois da morte do profissional, a comparação constante a impedia de criar um novo vínculo.
É muito difícil contar tudo da sua vida de novo, demorei um ano para voltar à terapia após a morte do meu psicólogo. Aíse Euler
Não deu certo de primeira: ficou insatisfeita com a psicóloga, porque sentia falta de sair diferente das sessões, como acontecia antes. "Meu antigo terapeuta sempre tinha respostas para mim", conta. Depois de mais um ano, tentou novamente.
Encontrei uma nova profissional. Hoje digo que ela é a minha segunda psicóloga favorita. A comparação sempre foi feita, nunca ninguém será igual a ele. Mas fiquei muito feliz e acredito que meu ex-psicólogo de alguma forma também tenha ficado, porque ele não queria me ver triste. Aíse Euler
O que acontece após perder um psicólogo
- O luto após a morte de um psicólogo pode entrar na categoria do não legitimado, aquele em que a sociedade minimiza a dor. Um exemplo são as perdas gestacionais. Nesses casos, é comum pessoas externarem incompreensão sobre a intensidade do sofrimento.
- Após a morte do psicólogo, é natural sentir desamparo. Há dúvidas sobre quem vai ajudar a buscar os recursos emocionais internos (papel do psicólogo).
- Não é proibido participar de rituais. O paciente pode ir ao velório, se quiser. Isso ajuda a assimilar a perda e lidar melhor com os sentimentos.
Esse ritual é extremamente organizador para o enlutado, para o seu processo de elaboração. É claro que vai chegar [ao enterro] e talvez fique acanhado, isolado, porque não tem aproximação com a família, mas teve vínculo com o terapeuta. Raquel Alves, psicóloga especializada em luto do Hospital Vera Cruz (SP)
- Sentimentos de angústia ao buscar um novo profissional são normais, assim como a "preguiça" em compartilhar as emoções. Isso se justifica, principalmente, pela incerteza sobre o acolhimento, identificação e receptividade do novo terapeuta.
A familiaridade traz tranquilidade, o diferente te coloca em xeque. Pensar o quanto o outro vai gostar de você, e o quanto você vai se dispor a gostar do outro. Além da comparação e da questão da culpa, porque você vai 'substituir' e descobrir que pode viver com outro analista. Lisiane Fachinetto, psicanalista e doutora em educação pela USP
- Mas é importante buscar ajuda para elaborar o luto, ainda mais se há acúmulo de mais demandas emocionais, como depressão, ansiedade e outros tratamentos em curso na terapia.
- Não buscar suporte é um risco para a evolução dos sintomas, regredindo no tratamento psicológico e prejudicando a saúde mental. Nesse caso, também há risco de desenvolver quadros patológicos do luto, o que aumenta a resistência em se vincular a um novo profissional.
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