'Perdi minha juventude': como incêndio na boate Kiss afetou sobreviventes

Os traumas ligados à Boate Kiss mudaram para sempre a vida de alguns sobreviventes. As lembranças da tragédia levaram o atual chef de cozinha Daniel Fabris, 36, a abandonar o sonho de ser músico e cogitar "acabar com tudo".
Estudante de bacharelado em música da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) e violonista na época, ele escapou do fogo, mas quase perdeu a namorada e precisou dizer adeus a muitos amigos entre as 242 pessoas que morreram na madrugada de 27 de janeiro de 2013 em Santa Maria (RS).
Depois do incêndio, o gaúcho, que tinha sido o primeiro de sua família a entrar no ensino superior, largou a faculdade.
O incêndio afetou de uma maneira grave a minha juventude. Dediquei 17 anos da minha vida à música, já que comecei a tocar muito cedo, e vim de uma família muito pobre, então não foi fácil chegar na faculdade. Mas a tragédia arruinou meu sonho, porque não consegui continuar o curso.
"Apesar do apoio dos professores, eu não tinha mais forças", diz Daniel ao VivaBem. "A música está muito ligada ao nosso emocional, e toda minha energia emocional foi gasta ali. Cheguei a pensar em acabar com tudo na época".
Ele, que tinha 25 anos naquela madrugada, fez tratamento psiquiátrico até os 27 para lidar com o trauma. Daniel diz ter encontrado sentido para a existência quando se tornou chef de cozinha, anos depois (veja a história dele abaixo).
Assim como as vítimas da tragédia, que completou uma década neste ano —ainda sem nenhuma pessoa punida pela Justiça—, a maior parte dos 636 sobreviventes também era jovem. Em sua maioria, tinham entre 18 e 30 anos.
"São jovens que perderam amigos, companheiros, projetos pessoais e profissionais", diz o psicanalista Volnei Dassoler, coordenador do Santa Maria Acolhe, serviço psicossocial implantado pela prefeitura da cidade após a tragédia.
Os sobreviventes conseguiram preservar a vida, mas este ganho não foi sem perdas. Isso significa dizer que ser sobrevivente é um fardo com o qual é preciso lidar cotidianamente. Volnei Dassoler, psicanalista
Como tragédia afetou juventude dos sobreviventes
Atividades consideradas banais para a maioria das pessoas nessa faixa etária, como ir à aula ou sair com os amigos à noite, tornaram-se gatilho para ansiedade após o incêndio.
Como Daniel, alguns abandonaram a UFSM, que perdeu 113 alunos na tragédia.
Embora a instituição não tenha feito um levantamento, Dassoler afirma que muitos sobreviventes retornaram à casa dos pais e outros desistiram ou não tiveram condições de seguir com os planos prévios ao dia 27 de janeiro.
O alívio de sobreviver não foi vivido em paz. Ele cita alguns impactos relatados durante os atendimentos:
- A maioria sentia culpa por não ter conseguido ajudar outras pessoas;
- Carregaram sequelas e cicatrizes físicas, como quadros neurológicos, pulmonares e dermatológicos --algumas das quais permanecem até hoje;
- Alguns tiveram sintomas de curto prazo ou prolongados de transtorno de estresse pós-traumático, ou TEPT, como flashbacks de cenas e sonhos com fragmentos daquela noite ou com amigos que morreram.
A forma como as pessoas lidaram com a tragédia variou de acordo com o perfil (genético, psicossocial, familiar) e a história de cada um. Mas ninguém passou ileso —ao menos não na UFSM.
"A UFSM foi atingida em seu coração. O incêndio abalou não só os sobreviventes, como também estudantes que não estavam na boate e professores que perderam alunos", diz Vitor Crestani Calegaro, coordenador do ambulatório de psiquiatria do Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes, o Ciava, centro de referência criado pela UFSM para os sobreviventes da Kiss.
A seguir, VivaBem conta como a tragédia afetou a juventude de quatro sobreviventes.
"É fogo!"
Grande parte do público da boate naquela noite tinha ido para a festa universitária "Agromerados", organizada por estudantes de seis cursos da UFSM para arrecadar dinheiro para a formatura. Este não foi o caso de Daniel nem da estudante de pedagogia Naiara Marquezan, hoje com 33 anos.
Namorados há três meses na época, os dois foram à casa a convite de algumas amigas de Naiara. Ela já tinha ido ao endereço anteriormente, mas seria a primeira vez de Daniel. Pouco antes das 3h da madrugada, o casal saiu para fumar. Na volta, um tumulto chamou a atenção.
— "É briga?", questionou a jovem.
Mais alto do que ela, o violonista olhou em direção ao palco e se assustou com o que viu.
— "É fogo!", gritou.
Às 3h17, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, um dos réus no caso da Kiss, tinha acendido um artefato pirotécnico que, ao atingir a espuma de isolamento sonoro no teto, fez o fogo se alastrar. Este foi um dos vários erros que, em poucas horas, colocariam a boate no ranking dos 10 maiores incêndios do século 21.
A fumaça era tóxica, rica em componentes como o cianeto, o que causou a morte por sufocamento da maioria das vítimas.
Naiara teve depressão e crises de pânico
Daniel e Naiara estavam no salão do meio da boate, de frente para um bar, no sentido diagonal ao palco. Eles tentaram seguir em direção à porta, mas a casa estava tão lotada que não havia espaço no chão para pisar.
Caíram e foram pisoteados dezenas de vezes antes de completarem a fuga.
Depois do incêndio, a jovem passou 10 dias hospitalizada, três deles em coma, devido à fumaça tóxica que inalou. Não carregou sequelas físicas nos anos seguintes, mas emocionais: crises de pânico e ansiedade, que prejudicaram sua vida social e acadêmica. Naiara se sentia culpada por estar viva —chegou a enxergar vultos de pessoas sujas de fuligem.
Fiz um esforço enorme nos últimos anos para não sofrer mais com as lembranças do que vivi. Por três anos, tomei remédios para depressão, pânico, ansiedade e fobias diversas. Tive dificuldade para voltar a estudar, reprovei em várias disciplinas, tinha medo de ir aos lugares.
Ela desmaiou pouco tempo após sair da Kiss, depois de ficar na frente da boate esperando pela saída das amigas. Por ter colocado a própria camisa no nariz, Daniel inalou menos fumaça e não chegou a desmaiar —ele passou uma noite em observação no hospital.
Daniel desistiu de faculdade
De olhos abertos, o violonista viu cenas de horror. "Na viatura da polícia que levou Naiara para o hospital, tinha um jovem ferido. Mas ele não tinha nenhum sinal, estava morto. Segurei o rapaz morto até o hospital", relembra. Ainda é viva a memória de um sobrevivente com quem se deparou ao chegar no Hospital de Caridade: "O couro de suas duas mãos estava caindo".
Após o incêndio, Daniel diz que perdeu a vontade de viver. Morando nos fundos da casa da avó junto com Naiara, em Santa Maria, largou a faculdade e passou a trabalhar em áreas como indústria e aviação. Para ajudar nas despesas, vendeu o violão. Encontrou novo ânimo para a vida em 2016. "Foi quando decidi me tornar chef de cozinha. A gastronomia salvou minha vida."
Depois do julgamento da Kiss, algumas pessoas me perguntaram 'ai, Dani, como é que você tá?'. Eu respondi 'cara, eu tô seguindo a minha vida, torcendo para que nem eu nem a Naiara tenha um câncer e morra precocemente por causa daquela tragédia, como aconteceu com alguns sobreviventes.
Gabriel ficou 8 anos sem conseguir falar sobre a tragédia
O psicólogo Gabriel Rovadoschi Barros, 28, descreve a tragédia como a "espinha dorsal" de sua juventude. O então adolescente de 18 anos ia pela segunda vez em uma boate na noite em que conseguiu escapar da fumaça tóxica.
"Toda minha vida se construiu tentando dar conta do que eu vi no incêndio e dos sentimentos que isso causou em mim. Não existe Gabriel antes da Kiss. Muita coisa se perdeu", diz ao VivaBem. Entre as perdas, dois amigos.
O jovem só conseguiu falar publicamente sobre o incêndio em 2020, depois de muitas sessões de terapia. Antes, era como se estivesse com afasia, diz ele, citando o distúrbio da comunicação que se tornou tema de seu doutorado na UFSM.
"É uma situação parecida com a que eu vivi nos primeiros oito anos após a tragédia, porque, assim como uma pessoa com o distúrbio, eu sabia o que estava sentindo, mas não conseguia verbalizar. Só chorava, sem dizer nada", diz ele, que depois da tragédia trocou o curso de jornalismo pelo de psicologia.
Além do luto, o choro era porque se sentia culpado. Acreditava que tinha "roubado" o lugar de alguém que podia ter escapado na multidão em fuga.
A primeira vez em que sentiu a culpa cair de seus ombros foi no dia 10 de dezembro de 2021, nove anos após o incêndio, quando quatro réus da Kiss foram condenados. "Senti um efeito prático, imediato e profundo da Justiça."
No último verão, até consegui sair com meus amigos à noite para beber. Vivi isso com um pesar enorme, mas com um alívio de me dar a chance de viver algo que talvez aquele Gabriel de 18 anos gostaria de ter vivido. Senti o luto da juventude que eu perdi.
Mas a sensação de alívio foi arrancada com a anulação do julgamento, em agosto do ano passado.
A anulação da sentença bagunça tudo. Ela fere diariamente, nos amortece, nos anestesia no pior sentido possível. Ela tenta nos induzir ao silenciamento e eu vejo que é justamente nessa área que a gente precisa resistir. E fazer cada vez mais barulho para que a justiça seja feita.
Maike perdeu melhor amiga e teve queimaduras
Para entrar na boate, o designer gráfico Maike Ariel, 30, não precisou pegar a fila que às 23h já começava a subir a esquina da rua dos Andradas, número 1.925. Seu nome estava na lista de convidados da aniversariante Andrielle Righi da Silva, uma de suas melhores amigas.
Pouco antes de ter início o show da Gurizada Fandangueira, ele foi com dois amigos cumprimentar colegas de uma amiga no fundo do palco. Andrielle permaneceu sentada em uma mesa redonda de frente para o bar central, com quatro amigas. Foi a última vez que Maike a viu.
Ele foi resgatado com vida, mas sofreu queimaduras de terceiro grau em seus braços e pernas. O então jovem de 21 anos ficou internado cerca de um mês, com uma semana em coma. Mas o tratamento se estendeu por mais três anos. Estudante de design na época, ele quase perdeu o movimento dos dedos.
Além do desconforto de precisar usar meias de compressão devido às lesões, crises de ansiedade e ataques de pânico eram frequentes nos primeiros anos após a tragédia. "Tiveram situações em que eu só saía da sala de aula e ia embora, porque não conseguia ficar dentro de lugares com muita gente."
Hoje formado em desenho industrial pela UFSM, Maike diz não ter sequelas respiratórias, funcionais ou psiquiátricas, mas se sente "desamparado" pela Justiça.
A gente vai perdendo a esperança. Desde 2013, os sobreviventes foram culpabilizados por estarem na boate e não em casa. Os pais foram culpados por deixar os filhos saírem. Culparam as vítimas, culparam os pais, culparam os sobreviventes. Mas os culpados que segundo a Justiça eram culpados estão soltos e nós presos a essa impunidade.
Em seu trabalho de conclusão ele analisou se as placas de sinalização e o projeto da boate colaboraram para o resultado final da tragédia e quais alternativas poderiam ter mudado isso.
Um dos sobreviventes ouvidos pelo júri da Kiss, Maike considera que produções sobre o incêndio, como a minissérie ficcional "Todo Dia a Mesma Noite" (Netflix), inspirada no livro de mesmo nome da jornalista Daniela Arbex, e a série documental "Boate Kiss — A Tragédia de Santa Maria" (Globoplay), do diretor Marcelo Canellas, são tão importantes quanto requisitos de segurança para que tragédias como a Kiss não se repitam.
Documentar a tragédia é uma forma de prevenção como qualquer outra norma técnica da ABNT. Se a gente não tiver as tragédias documentadas, como vamos prevenir futuramente?
Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.