É possível ter uma vida normal mesmo usando crack? Dá para se reabilitar?
É possível vencer a dependência do crack? Especialistas garantem que sim, mas advertem: a saída é bem mais complexa do que uma internação. Além disso, a condição deve ser controlada por toda a vida.
A série "Onde Está Meu Coração", produzida pela Globoplay e agora exibida todas as terças na Globo, mostra os percalços desse caminho. Nela, a médica Amanda Vergueiro (Letícia Colin) tenta se libertar de uma relação problemática com a droga após colocar em xeque seu emprego e suas relações afetivas.
A história destaca dois pontos muito estudados por quem pesquisa o tema. Um deles é o caráter social da questão. "O abuso de substâncias é sempre consequência de um contexto mais amplo do que a droga em si", explica o psicólogo Bruno Logan, da Reduc (Rede Brasileira de Redução de Danos e Direitos Humanos). Em segundo lugar, embora tenha nascido nas periferias e seja mais barato do que a cocaína, o crack não está restrito a populações em situação de vulnerabilidade social.
No caso de Amanda, jovem branca de família rica, as longas jornadas de trabalho e a pressão do ambiente hospitalar se somam ao sentimento de culpa pela morte do irmão na infância, e a vínculos familiares frágeis e artificiais. É em meio a essa vida perfeita (mas só de longe) que a médica busca prazer e alívio na substância. Em muitas cenas, a série mostra a onipresença das drogas no cotidiano. Ao mesmo tempo, aponta o contraste que existe entre o uso recreativo e a dependência.
Essa linha é especialmente tênue quando se fala no crack, explica o médico Marcelo Kimati, que coordena o núcleo interdisciplinar de estudos sobre drogas da UFPR (Universidade Federal do Paraná). Como ocorre com outros entorpecentes, o dependente alterna fases de uso controlado, fissura (desejo pela substância) e abstinência (conjunto de sintomas físicos decorrentes da falta dela). O problema é que, devido à configuração química do crack, ele dá menos margem do que outras para fases intermediárias.
Existe uso recreativo?
O crack é feito com cocaína, que é derivada da coca, planta nativa da Bolívia e do Peru com potencial estimulante. Ao perceberem que mastigar a planta deixava as pessoas em alerta, cientistas europeus resolveram encontrar seu princípio ativo. Em 1859, o químico alemão Albert Niemann conseguiu a façanha, isolando a cocaína, que correspondia a 1% da folha, e levava à excitação em minutos. O crack surgiu mais de um século depois nos Estados Unidos, quando a cocaína foi misturada em uma pasta hidrossolúvel, acelerando sua ação para segundos.
O efeito rápido tinha a ver com a apresentação do composto, que facilitava sua entrada na corrente sanguínea. O organismo possui barreiras que o protegem de substâncias tóxicas e, ao ser fumado, o crack atravessa bloqueios que a cocaína demora mais para atingir. Por isso, seu efeito no sistema nervoso central é mais rápido que o da própria cocaína injetável, explica o professor da UFPR.
Além de imediato e intenso, o prazer do crack é breve. Isso faz com que o usuário queira buscá-lo mais vezes. Só que aí entra outro problema: o corpo vai criando tolerância à droga e são necessárias doses cada vez maiores para que se atinja a mesma sensação. Assim, por mais que hoje já se saiba que o primeiro contato nem sempre leve à dependência e que o uso recreativo ocorre, esse equilíbrio é difícil porque os riscos de dependência são especialmente altos do ponto de vista químico.
O uso contínuo tem complicações de diferentes ordens. A mais forte tem a ver com a constrição de vasos sanguíneos, que impede a chegada de sangue a várias regiões do corpo e a morte de diversos tecidos, levando até a perdas cognitivas. Há casos em que o consumo também leva à psicose: o sujeito pode se sentir perseguido e fora da realidade ao fumar.
Mas os complicadores vão além da esfera biológica. Conforme a dependência avança, a droga vira parte do cotidiano da pessoa por meio de associações difíceis de desfazer. "Há usuários que fumavam para fazer sexo e hoje só conseguem ter atividade sexual sob uso de crack, tamanha é a vinculação social", diz o professor. É por isso que o tratamento deve levar em conta as diversas esferas da vida.
Como tratar?
O primeiro passo para tratar a dependência do crack é compreendê-la como uma condição crônica, explica Kimati. É algo que vai acompanhar o sujeito por toda a vida, mas o controle adequado do problema o manterá saudável.
A internação foi o primeiro passo do tratamento de Amanda, cujo grau de dependência colocava em risco a própria vida e a vida de outras pessoas. Mas essa não é a única nem a principal alternativa. Pelo contrário, deve ser levada em diante só quando todas as outras possibilidades já se esgotaram.
Isso tem uma razão prática: isolar alguém em um ambiente fechado e diferente da sua zona de convívio pode ajudar em um primeiro momento, mas, quando o paciente sair da clínica, terá que lidar com a vida real, que inclui gatilhos e possibilidades de voltar para a droga.
É por isso que a internação deve ser curta, sem exceder muito mais de um mês, e o tratamento fora do hospital deve ser mantido, explica a enfermeira Lannuzya Veríssimo e Oliveira, professora da Escola de Saúde da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
A abordagem deve respeitar a autonomia do usuário, ser isenta de discursos morais e considerar a narrativa e as necessidades de cada pessoa. Também precisa ter caráter multidisciplinar, envolvendo enfermeiros, psicólogos, psiquiatras e atividades que ajudem a pessoa a ressignificar a própria vida. "Em Natal, temos um centro de convivência que oferece desde aulas de música até práticas de capoeira. Muita gente descobriu talentos que nem sabia ter e trocou a droga por um motivo maior", exemplifica.
Grupos de apoio entre pares também são bem-vindos, a exemplo das reuniões entre dependentes químicos e familiares que ajudaram Amanda a se reerguer após sair da clínica. Ainda, de acordo com Oliveira, esses ambientes precisam ser acolhedores e sem julgamentos.
Narrativas singulares
O foco na individualidade segue os pilares do chamado projeto terapêutico singular, preconizado pelo SUS nos Caps AD (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas). Em Curitiba, onde 13 unidades atendem 1,2 mil dependentes químicos, os usuários chegam espontaneamente, por intermédio da família ou encaminhados por alguma UPA (Unidade de Pronto Atendimento).
Depois de uma avaliação clínica, a pessoa é direcionada para um acompanhamento multiprofissional que converse com as suas demandas. Embora não haja uma medicação específica para dependência do crack, remédios para comorbidades como ansiedade e depressão podem ser receitados.
Internações são indicadas apenas quando a situação do usuário sai do controle, diz a psicóloga Cristiane Rasera, que coordena o setor de saúde mental do município. Os Caps dispõem de leitos de curta duração para pacientes que precisam se manter internos por até 15 dias. Caso seja necessária uma internação de até 45 dias, é solicitado um leito em um hospital psiquiátrico público.
A duração do tratamento no Caps varia. A média dos acompanhamentos é de seis meses, mas há usuários que se tratam por mais de um ano até a estabilização dos seus quadros. O retorno à droga pode ocorrer nesse processo, mas a ideia é que o dependente se sinta compreendido ao ponto de não ter vergonha de recomeçar.
"É um erro achar que é possível promover a abstinência a partir de um só ponto, como a internação. A dependência envolve muitos fatores e demanda um combinado de estratégias de acolhimento", diz Kimati.
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