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Comunidade acreditava que mortes causadas por doença rara eram 'maldição'

Teste genético identifica mutação da mucopolissacaridose - iStock
Teste genético identifica mutação da mucopolissacaridose Imagem: iStock

Do VivaBem, em São Paulo

28/02/2023 14h05

Médica da família em uma comunidade de 1.100 habitantes no Sudeste*, Flávia Gameleira se surpreendeu com a morte precoce de uma paciente próxima aos 20 anos com uma síndrome sem diagnóstico.

Soube que casos assim eram comuns na região. Para os moradores, algum tipo de crença popular que os rondava. Decidiu investigar e descobriu que casamentos consanguíneos (entre pessoas da mesma família) levaram a quadros de mucopolissacaridoses (MPS), doenças genéticas raras causadas por deficiência na atividade de enzimas. Leia o relato abaixo:

"Comecei a trabalhar nessa comunidade em 2016 e, 15 dias depois, me deparei com a morte de uma paciente em parada cardíaca. Tentei reanimar, mas não consegui. Ela era jovem, tinha em torno de 20 anos, e estava com um quadro sindrômico sem diagnóstico. Fiquei assustada, porque soube de outros casos parecidos.

Conversei com a agente comunitária, e ela me respondeu: 'Aqui é assim, eles morrem'. A comunidade dizia que ali era desse jeito, como um castigo que levava à repetição de quadros semelhantes. Por décadas, sofreram com a difícil situação de vivenciar entes queridos morrerem vitimados por uma doença desconhecida.

Tomei um susto e pensei que não poderia ser assim. Ou eu tinha que descobrir o que acontecia, ou não ia conseguir trabalhar.

Peguei prontuários e analisei os que já haviam morrido com quadros semelhantes. Ao montar a árvore genealógica, vi que isso acontecia há pelo menos três gerações.

Não foi possível fechar o diagnóstico daqueles que já tinham morrido, mas eram em torno de seis casos semelhantes.

Já existia a suspeita de mucopolissacaridoses. Mas é aquela doença que eu achava que nunca ia ver, porque é muito rara.

Vi que era compatível. Pedi ajuda aos órgãos, mas notei que o fluxo seria mais demorado. Então, soube de uma associação mineira de pais de pessoas com a doença, que fez a ponte com um laboratório para fazer a testagem ainda em 2016.

Realizamos a coleta de 12 pacientes e chegou a confirmação de quatro deles com a doença [sendo três de MPS IIIB e um de MPS I].

O médico de família está inserido na comunidade e precisa conhecê-la. Isso faz parte do método clínico. É necessário entender a doença, mas também como o paciente a entende, saber as suas competências culturais, respeitá-las para atuar nessas localidades.

A fala de que eles 'morriam mesmo' foi muito marcante. Então, trazer a explicação científica de que há uma causa para isso foi bastante importante. Por ser uma comunidade pequena e afastada, eles acabam tendo relações consanguíneas e isso favorece a maior ocorrência de uma doença genética.

Explicamos isso para a população, orientando sobre buscar parceiros de fora. Mostrar como podemos resolver desmistifica muita coisa. Não tem nenhuma maldição, não há nada de errado. Só é preciso trabalhar essa conscientização e as pessoas entenderem.

Percebi que a maioria viu com alívio a informação. Algumas são mais resistentes, ficam desconfiadas, acham estranho chegar com uma causa, mas cada vez mais pessoas vão entendendo.

Fazemos o acompanhamento de pré-natais, tudo acontece de forma tranquila, sem nenhum novo caso suspeito. As pessoas têm acompanhamento multidisciplinar, com fisioterapia, nutricionista, psicólogo, terapeuta ocupacional.

Infelizmente, tivemos óbitos pela doença, porque é uma condição sem cura, e não conseguimos melhorar o tempo de vida. Por isso, o tratamento foca na qualidade de vida. Mas perdemos esses pacientes sabendo o que estava acontecendo e dando o melhor suporte até onde conseguíamos ajudá-los."

O que são as mucopolissacaridoses?

  • As mucopolissacaridoses são doenças genéticas raras causadas pela falta ou redução das ações das enzimas --responsáveis por quebrar um tipo de açúcar, chamado glicosaminoglicanas (GAGs).
  • Essa função é essencial para ao bom funcionamento do organismo e, quando há o déficit, as consequências surgem no corpo todo: principalmente nas artérias, esqueleto, olhos, articulações, orelhas, pele e dentes.

Existem tipos e subtipos da doença, causadas por diferentes questões genéticas:

MPS I: síndrome de Hurler, síndrome de Hurler-Scheie, síndrome de Scheie
MPS II: síndrome de Hunter
MPS III: síndrome de Sanfilippo
MPS IV: síndrome de Morquio
MPS VI: síndrome de Maroteaux-Lamy
MPS VII: síndrome de Sly
MPS IX: deficiência de Hialuronidase

As mutações que causam MPS são raras na população, porém quando os pais têm uma relação consanguínea, ou seja, são pessoas aparentadas, eles têm maiores riscos de carregar as mesmas mutações e, assim, aumenta-se o risco de um filho do casal nascer com MPS. David Schlesinger, doutor em genética pela USP e CEO da Mendelics (laboratório brasileiro especializado em diagnóstico genético) e do meuDNA

Quais são os sintomas da doença?

  • A doença é silenciosa, mas os primeiros sintomas podem surgir nos primeiros dois anos de vida (em várias partes do corpo).

É comum o paciente ter:

  • Baixa estatura;
  • Problemas na visão;
  • Rigidez nas articulações;
  • Perda de audição;
  • Problemas cardíacos e lesões na pele;
  • Problemas neurológicos e cognitivos.

Como é o diagnóstico?

  • Exames de sangue e urina iniciais ajudam a identificar níveis anormais de GAGs e das enzimas associadas à doença. No entanto, apenas testes genéticos analisam a mutação das mucopolissacaridoses.

O diagnóstico pode demorar, em média, de quatro a cinco anos. Por ser rara e, consequentemente, pouco conhecida, a identificação da MPS é desafiadora. Além dos primeiros sinais e sintomas serem inespecíficos, podendo ser confundidos com outras doenças. David Schlesinger

*O nome da comunidade foi ocultado para preservar a identidade dos pacientes.