'Médicos mal informados': ele descobriu síndrome de Down só aos 16 anos
Caíque Aimoré, de 30 anos, coleciona medalhas na natação e tornou-se campeão mundial. O amor pelas piscinas surgiu ainda na infância, mas foi só na adolescência que ele descobriu ser uma pessoa com síndrome de Down.
Mãe de Caíque, Denise Domingues, de 59 anos, conta ter percebido características da condição genética no filho logo após o nascimento.
Ela diz que Caíque era um "bebê molinho", que colocava a língua para fora com frequência. Além disso, não tinha traços que lembrassem a feição da mãe, do pai ou do irmão.
Os pediatras, no entanto, não tinham a mesma percepção: diziam que ele tinha nascido de oito meses ou questionavam se houve negligência no pré-natal — algo que Denise nega.
"Desde as primeiras consultas, após o nascimento, eu perguntei. Mas tentavam achar um novo caminho, porque não enxergavam características. Todos os profissionais por onde passei na minha cidade estavam muito mal informados", explica a mãe, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo.
Na escola, Caíque não tinha desenvolvimento parecido com o de colegas da mesma idade, mas a família nunca identificou doenças no coração ou gastrointestinais na infância, comuns em pessoas com síndrome de Down.
O que percebiam era uma dificuldade maior no desenvolvimento motor — algo que nunca atrapalhou os planos de Caíque de nadar.
A mãe insistia na busca por um diagnóstico, mas teve de esperar até que o exame genético — chamado cariótipo, que analisa os cromossomos — fosse coberto pelo plano de saúde, pois a família não tinha condições de bancar o procedimento.
Quando Caíque tinha 9 anos, fez o primeiro teste: não acusou nada. Na segunda vez, aos 12, o resultado veio como "síndrome de Down com um ponto de interrogação", conta a mãe.
Um neurologista explicou depois que o caso era de mosaicismo, um tipo raro da síndrome de Down, que ocorre quando algumas células apresentam a trissomia do cromossomo 21 e outras não.
Foi muito difícil carregar sozinha, por 12 anos, a luta pelo diagnóstico. Foi difícil convencer professores de que ele [Caíque] tinha uma deficiência intelectual e precisava de apoio, mesmo sem diagnóstico
Denise Domingues
"Não conseguia conversar com ele [Caíque] sobre isso, mesmo depois da certeza foi complicado", afirma a mãe.
Caíque seguiu por mais quatro anos sem saber sobre o seu diagnóstico. Aos 16, fazendo natação, ele foi inscrito pela mãe para sua primeira competição paralímpica — e só então soube da condição.
'Ficavam surpresos'
Caíque começou a nadar aos 6 anos de idade, como uma atividade física que poderia auxiliar em seu desenvolvimento e ajudá-lo a criar disciplina. A família já era amante do esporte.
Dos 10 aos 15 anos, ele já se destacava em competições regionais.
Por ter a natação como uma das principais atividades de sua vida, a mãe usou o esporte como meio para dar a notícia ao filho.
No início, segundo conta, ele não aceitou muito bem, mas aos poucos passou a compreender a situação, conforme lia sobre o tema. Caíque também foi às redes sociais, com a ajuda do irmão mais velho, para ressaltar sua identidade como homem com síndrome de Down.
Não sei explicar como me senti quando soube que tenho síndrome de Down. Eu percebi que as pessoas ficavam surpresas com as minhas vitórias e eu fico feliz com isso
Caíque Aimoré
No esporte
Caíque, que é graduado em marketing, teve dificuldades nos estudos, mas diz que seu maior desafio tem sido provar para a sociedade que uma pessoa com síndrome de Down tem condições de ser um atleta de alto rendimento.
O nadador conquistou uma medalha de bronze logo em sua primeira competição paralímpica, aos 16 anos.
Subir no pódio como estreante o impulsionou e, com muito treino, no ano seguinte já estava competindo internacionalmente. Aos 19 anos, foi campeão no primeiro mundial para o qual foi convocado.
Hoje já são 40 medalhas mundiais, sendo 23 de ouro. Em 2022, Caíque se tornou pentacampeão mundial nos 100 metros livres.
Ser atleta é tudo na minha vida. Adoro o dia a dia de treinamentos, o ambiente das competições, viajar, conhecer lugares, encontrar os amigos. Quero continuar treinando forte e me manter preparado para representar o Brasil. Tenho ainda muito a conquistar dentro e fora das piscinas. Ser uma pessoa com síndrome de Down não me torna incapaz. É algo extra, nada menos
Caíque Aimoré
Síndrome de Down e mosaicismo
A síndrome de Down é uma condição genética causada pela presença extra de um cromossomo 21.
- A espécie humana possui 46 cromossomos. Desses 46 cromossomos, todos estão aos pares, numerados do número 1 ao número 22 (cromossomos autossomos) e um par de cromossomos sexuais.
- Cada par representa um cromossomo herdado da mãe e outro do pai. Quando ocorre um erro na divisão celular nos gametas (óvulo e espermatozoide) ou no zigoto (o que irá formar o embrião), ao invés de um par de cromossomos 21, existem 3 cromossomos, um trio.
O mosaicismo ocorre quando algumas células apresentam a trissomia do cromossomo 21 e outras não. Apenas 2% das pessoas com síndrome de Down têm o mosaicismo. A médica Ana Claudia Brandão, do Hospital Israelita Albert Einstein, explica a condição:
- No caso da síndrome de Down com mosaico, o embrião se forma com 46 cromossomos, mas em algum momento da divisão celular, acontece de uma célula desenvolver a trissomia no cromossomo 21. A partir disso, todas as outras células reproduzidas a partir daquela célula também passam a ter esse cromossomo extra.
- Dessa forma, um grupo de células fica com 46 cromossomos e outro grupo, com 47.
- No primeiro cariótipo que Caíque realizou, que não identificou a síndrome de Down, pode ter sido colhido pouco sangue concentrando células que, eventualmente, não apresentavam trissomia. Ou, então, pode ter sido o caso de poucas células analisadas pelo laboratório que realizou o exame -- não possibilitando um panorama geral, que identificasse a condição.
Ora temos de nos preocupar com a inclusão e às vezes combater os questionamentos sobre mosaico vindo de pessoas sem conhecimento sobre o assunto. Mas é só recorrer à ciência que tudo se explica. Nem sempre o respeito vem de todos, mas estamos sempre por perto para dar o apoio necessário
Denise Domingues, mãe do atleta
A médica Ana Cláudia Brandão, do comitê técnico científico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, explica que esse tipo raro de desenvolvimento da condição genética não significa que a pessoa seja menos afetada por problemas de saúde comuns a quem tem síndrome de Down ou que terão um comprometimento cognitivo menor.
Ela explica, ainda, que o mosaicismo, por si só, é raro. E pode acontecer, além disso, que alguém com essa condição tenha um percentual de menos de 15% de células com trissomia. Assim, ela pode ter menos características físicas comuns à maioria das pessoas com a condição genética. A probabilidade de isso acontecer, segundo a especialista, é muito baixa.
Essas diferenças não deveriam, segundo Ana Paula, levar a mais preconceitos ou estereótipos sobre a síndrome.
É comum que vejam uma pessoa com síndrome de Down de sucesso, que se destaque, e pensem: 'Nossa, deve ter mosaico'. Mas isso não é verdade. Pessoas com trissomia livre ou translocação [os tipos mais comuns] também se destacam, são pessoas com talentos. Precisamos desconstruir isso
Ana Claudia Brandão
Exame
O diagnóstico da síndrome de Down é dado por meio do exame cariótipo, normalmente solicitado na maternidade, como explica a especialista. Não é um procedimento obrigatório para todos os nascidos, mas indicado sempre que houver a suspeita, para confirmar ou descartar o diagnóstico.
A partir disso, podem ser detectadas três formas da condição genética: trissomia simples ou livre, translocação ou mosaicismo.
- A trissomia simples ou livre é a mais comum, quando o embrião já carrega a trissomia do cromossomo 21, possuindo 47 cromossomos em todas as suas células. A condição genética ocorre ao acaso, assim como no mosaicismo.
- Já na translocação, que acontece em cerca de 3% dos casos, há maior diversidade em relação ao cromossomo 21: às vezes inteiramente em trissomia, às vezes, apenas parcialmente. Nesses casos, a condição genética pode ser herdada e pode ser solicitado o cariótipo dos pais para investigação.
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