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Por que a 'doença da vaca louca' impede alguns de doar sangue no Brasil

Restrição está ligada à epidemia que atingiu o Reino Unido entre as décadas de 1980 e 1990 - iStock
Restrição está ligada à epidemia que atingiu o Reino Unido entre as décadas de 1980 e 1990 Imagem: iStock

De VivaBem, em São Paulo

21/03/2023 04h00

Acostumada a doar sangue na França, onde nasceu e viveu por muitos anos, S.Y.* foi barrada ao tentar repetir o gesto quando se mudou para o Brasil. "Pessoas que moraram na Europa depois de 1980 não podem doar sangue no país", explicou a médica na triagem do hemocentro, citando uma regra do Ministério da Saúde.

A proibição consta na portaria nº 158, de 4 de fevereiro de 2016, que detalhou 59 critérios para a inaptidão definitiva à doação de sangue para a encefalopatia espongiforme humana (EEB), doença popularmente conhecida como "mal da vaca louca", e suas variantes.

O que diz a portaria do Ministério da Saúde

Segundo o artigo 59 da portaria, "será definitivamente excluído como doador" a pessoa que se enquadrar, entre outros pontos, em uma das seguintes situações:

  • tenha permanecido no Reino Unido e/ou na República da Irlanda por mais de três meses, de forma cumulativa, após o ano de 1980 até 31 de dezembro de 1996;
  • tenha permanecido cinco anos ou mais, consecutivos ou intermitentes, na Europa após 1980 até os dias atuais.

Embora a portaria tenha sido revogada, a regra foi mantida pela portaria de consolidação 5, de 2017, que consolida as normas sobre ações e serviços de saúde do SUS.

Como a doença é transmitida e qual a relação com ter morado na Europa?

Na época, a restrição foi adotada seguindo recomendações da Cruz Vermelha Americana e de pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde dos EUA, para evitar a possibilidade de contaminação pela proteína que provoca a doença.

Oficialmente chamada de doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ), a enfermidade é a "versão humana" da EBB (Encefalopatia Espongiforme Bovina), que foi diagnosticada pela primeira vez em bovinos em 1986. No caso dos humanos, ela recebe o nome de EETH (Encefalopatia Espongiforme Transmissível Humana), condição rara e degenerativa que afeta o sistema nervoso central.

Ela é causada pelo acúmulo de uma proteína anormal no cérebro —o chamado príon—, que cria pequenos "buracos" no órgão, como uma esponja (daí o termo "espongiforme"). Não há cura e a expectativa de vida após o início dos sintomas é de cerca de cinco meses.

A Europa foi o "berço" da doença entre os anos 1980 e 1990. Entenda:

  • Segundo o ECDC (Centro Europeu de Prevenção e Controle das Doenças), a EETH foi identificada pela primeira vez em março de 1996 no Reino Unido.
  • A doença também foi registrada em outros países europeus na época, entre eles Irlanda e França.
  • Sua incidência no Reino Unido atingiu o pico entre 1992 e 1993, quando foram registrados quase 100 mil casos, e diminuiu a cada ano a partir de 2000, após a adoção de medidas de controle sanitário.
  • Existem quatro formas conhecidas de DCJ: esporádica, hereditária, iatrogênica e a nova variante (vDCJ) --não existe tratamento para nenhuma delas.

Nenhum dos tipos é transmissível de uma pessoa para a outra. "Em quase 90% das ocorrências, o paciente desenvolve essa doença rara de forma espontânea, que começa com alterações de equilíbrio e coordenação e evolui rapidamente para um quadro de perda de controle de força dos membros e psicose", explica Saul Almeida, neurologista e diretor da Emergência Neurológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

No caso da vDCJ, que causou o surto no Reino Unido, a transmissão ocorre através do consumo de carne ou derivados contaminados com a EBB, que afeta o sistema nervoso central de bovinos.

  • Clássica X Atípica. Essa versão é diferente da chamada "variante atípica" da EBB, que pode aparecer espontaneamente em todas as populações de gado. É o caso daquela que recentemente foi identificada em um animal em Marabá (PA).
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O surto no Reino Unido aconteceu porque os animais costumavam ser alimentados com ração feita com restos de carne, miúdos e medula óssea, que muitas vezes estavam contaminados com os príons
Imagem: iStock

A doença pode ser transmitida por transfusão sanguínea?

Casos de transmissão da vDCJ por transfusão sanguínea são considerados muito raros, diz Almeida.

O neurologista cita dados do sistema de saúde pública do Reino Unido, o NHS: segundo o órgão, há registros de cinco casos em que a doença foi transmitida por transfusão de sangue.

E, segundo o NHS, "não é certo se a transfusão de sangue foi a causa da infecção, pois os envolvidos podem ter contraído a variante da DCJ por meio de fontes alimentares".

No entanto, uma característica da proteína causadora da doença, o príon, levou diversos países a adotarem, a partir da década de 1990, medidas para minimizar o risco de contaminação nesse contexto: sua capacidade de permanecer "silenciosa" no organismo por décadas. A média de aparecimento dos sintomas é de 5 a 10 anos.

Portanto, alguém que estivesse assintomático poderia transmitir a doença pela transfusão de sangue. "Apesar de ser um mecanismo de transmissão muito raro, é uma preocupação que fazia muito sentido para uma época em que ainda não se havia as medidas de controle sanitário que temos hoje", explica Almeida.

O médico lembra que a implementação de medidas de controle —como impedir que os animais se alimentem com ração feita com restos de carne, que muitas vezes podem estar contaminados com os príons— resultou no declínio da variante clássica em todo o mundo.

Mas é possível que uma pessoa que comeu carne contaminada na década de 1990, por exemplo, esteja com o príon "incubado" até hoje? Embora exista um relato de caso de um paciente que só foi manifestar os sintomas 50 anos após a infecção, Almeida diz que a hipótese é pouco provável.

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É considerado pouco provável que uma pessoa que comeu carne contaminada na década de 1990 esteja com o príon "incubado" até hoje
Imagem: iStock

Carolina Costa Lima Salmoiraghi, diretora do serviço de coletas do Hemocentro da Unicamp, explica que a restrição no que diz respeito à transfusão sanguínea é de caráter preventivo.

Como não existe um exame de larga escala para identificar esses príons antes de a pessoa doar, é adotado o princípio da precaução, ou seja, é uma atitude que vamos tomar no banco de sangue para prevenir ao máximo essa doença, que é fatal, de chegar a um receptor. A chance de transmissão é pequena, mas existe. Carolina Costa Lima Salmoiraghi, diretora do serviço de coletas do Hemocentro da Unicamp.

  • Mão dupla. Na Europa, também existe uma restrição para todos os brasileiros quando o assunto é transfusão sanguínea, pois o país é considerado como área de malária. Para doar sangue, o brasileiro deve passar de seis meses a um ano no continente.

Qual é o impacto da proibição nos bancos de sangue do Brasil?

Casos como o de S.Y.*, citada no início da reportagem, não são encontrados todos os dias nos hemocentros do país, diz Yêda Maia, gerente do Hemope (Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco), o principal da região Nordeste. A médica citou o exemplo da cidadã como um dos "casos muito raros" com que já se deparou na fundação, onde atua desde 2001.

"Eu tenho uma média de 8.000 candidatos por mês. Só para dar um exemplo, a inaptidão na triagem clínica de fevereiro de 2023 foi 18% e não tinha nenhum caso relacionado à morada na Europa", diz ela. No Hemope, segundo Maia, os principais fatores que inviabilizam a doação de sangue são a presença de anemia e tatuagens recém-feitas.

  • Clique aqui para saber quais são os pré-requisitos para doar sangue.

Salmoiraghi, da Unicamp, afirma que a proibição também não traz impactos significativos aos estoques. De acordo com a médica, dos cerca de 86 mil candidatos que compareceram no local em 2022, menos de 1% foram barrados por esse motivo.

Ela pondera, no entanto, que não é possível quantificar quantas pessoas que viveram na Europa nas décadas de 1980 e 1990 deixam de procurar um hemocentro no Brasil por já saberem que não poderão doar sangue.

Procurado no dia 28 de fevereiro para informar qual é o impacto da restrição nos estoques de sangue, o Ministério da Saúde ainda não havia dado um retorno até a conclusão desta reportagem.

  • Nos EUA, FDA atualizou regras. Salmoiraghi lembra que a agência americana reguladora de alimentos e medicamentos dos EUA (o FDA) recentemente atualizou suas recomendações sobre o assunto e ter morado no Reino Unido entre 1980 e 1996 ou na França e Irlanda entre 1980 e 2001 não é mais um impedimento para a doação de sangue nos EUA.
  • Além disso, não é mais uma restrição ter recebido transfusão de sangue no Reino Unido, França e Irlanda de 1980 até o presente.
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Risco atual de transmissão de vCJD por sangue ou componentes sanguíneos no Reino Unido é mínimo, segundo análises de risco
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As novas orientações estão em documento publicado em maio de 2022 destinado aos hemocentros do país.

*A sigla é fictícia e foi criada para se referir à candidata à doação de sangue atendida pela hematologista.