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Ele mordeu a língua e descobriu hemofilia: 'Sangramento até ao escrever'

Neder Gustavo dos Santos fazendo tratamento de hemofilia  - Arquivo pessoal
Neder Gustavo dos Santos fazendo tratamento de hemofilia Imagem: Arquivo pessoal

Rebecca Vettore

Colaboração para VivaBem

03/04/2023 04h00

O empresário Neder Gustavo dos Santos, de 40 anos, tem hemofilia, doença rara, genética e hereditária que afeta a coagulação do sangue. O empresário foi diagnosticado aos 5 anos e, na infância e juventude, qualquer coisa causava sangramentos graves. Ao VivaBem, Neder, hoje presidente de uma associação de hemofílicos em Mato Grosso do Sul, conta sua história:

'Enxaguante e sangue'

"Acordei um dia de uma soneca usando meia e, ainda meio zonzo de sono, escorreguei na sala, caí e mordi a língua. Isso deu início a todo o problema. Precisei ficar hospitalizado por quase um mês e quase todos os dias sentia gosto de enxaguante bucal e sangue.

No tempo em que fiquei no hospital, fizeram várias transfusões porque sangrava continuamente e só descobriram o que era quando um hematologista veio acompanhar o caso.

Naquela época [ele tinha 5 anos], não se sabia muita coisa sobre hemofilia. Antes dessa mordida na língua, já tinha tido sangramento no tornozelo quando comecei a andar, mas isso não chamou a atenção dos meus pais.

Apesar de saber que era hemofílico, na infância não sabia qual era a gravidade. Perto dos meus 13 anos, um exame revelou o diagnóstico: hemofilia do tipo A grave. No meu caso, produzo menos de 1% do fator VIII [uma das proteínas responsáveis pela coagulação sanguínea].

Nem precisava ter um trauma que já sangrava espontaneamente. Meu organismo simplesmente entrava em colapso e gerava o quadro de hemorragia, principalmente nas articulações

Foto - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Neder Gustavo dos Santos ainda criança
Imagem: Arquivo pessoal

A doença me fez ir para o hospital várias vezes. Em certa ocasião, tive uma hemorragia interna oriunda de uma úlcera. Precisei ficar 15 dias internado, porque foi um sangramento mais complicado de tratar.

Tive sangramentos nos joelhos e cotovelos várias vezes. Sentia uma dor insuportável e não dava para aguentar em casa, por isso parava no hospital. Só andar já causava sangramentos nas articulações.

Escrever muito também já causou sangramento extremo —eu precisava parar a atividade e colocar gelo em cima do local para melhorar a dor.

'Ficava roxo e sofria bullying'

Na escola, fazia atividades físicas mais leves, como pingue-pongue. Em casa, tinha brinquedos mais didáticos como tabuleiros, para não me machucar, e a única bola era do meu irmão mais velho.

Eu não percebia muito quando criança, mas minha mãe tinha um olhar mais atento para mim, selecionava os amigos que me visitavam em casa.

Na infância, sofria preconceito pela hemofilia. Quando tinha algum sangramento mais aparente ou tomava uma bolada no rosto e ficava roxo, os colegas faziam bullying comigo

Com 15 anos passei a sentir sequelas desses sangramentos, um tipo de artrose.

Como na minha família não tinha ninguém com hemofilia, creio que teve alguma mutação genética na minha mãe, que passou a doença para mim. Tenho uma filha e, se ela tiver um filho, meu neto pode nascer também com hemofilia.

'Hoje, ando de bicicleta'

A partir de 2012, passei a fazer reposição do fator três vezes por semana. Foi esse tratamento que me deu uma certa qualidade de vida. Depois dele, peguei confiança para me jogar mais.

Antes, eu tinha receio de fazer as coisas, porque poderia 'dar ruim' e eu teria de ficar hospitalizado. Era mais oprimido e tinha medo. Hoje, ando de bicicleta e faço hidroterapia de forma bem tranquila.

Foto - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Neder Gustavo dos Santos andando de bicicleta com a esposa
Imagem: Arquivo pessoal

Apesar disso, sinto que, com o passar dos anos, como consequência da doença, perdi bastante mobilidade e sinto dor. Tenho artrose nas pernas, joelho direito e tornozelo esquerdo.

Perdi a rotação do meu cotovelo direito, com movimento apenas no pulso e no ombro, e também perdi a sensibilidade na mão direita. Mas tudo acontece muito devagar quando se é hemofílico e a gente vai se adequando.

Criação da associação

Me uni em 2015 às famílias de outros hemofílicos para criar uma associação no estado de Mato Grosso do Sul [onde mora atualmente]

Foto - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Neder em uma evento da Associação dos Hemofílicos e de Outras Coagulopatias Hereditárias
Imagem: Arquivo pessoal

Antes da criação da associação, a gente não tinha nenhum ambulatório específico, fazia o tratamento em um serviço de hematologia geral.

Depois de batalhar muito, conseguimos um espaço com equipe multiprofissional que acompanha e entende o problema. A associação também me ajudou na parte pessoal. Essa proximidade com outros pacientes me abriu um leque de relacionamento enorme.

Entenda a doença

Diagnóstico e origem

70% dos casos vêm de histórico familiar — a mulher tem o gene, mas raramente desenvolve a doença.

Em cerca de 30% dos casos, em que não há histórico familiar, a doença é resultado de mutação genética.

O diagnóstico costuma ocorrer nos primeiros anos de vida, quando as crianças com hemofilia apresentam os primeiros hematomas depois de caírem. Os hematomas também costumam aparecer após a aplicação de vacinas intramusculares.

Existem dois tipos de hemofilia: o tipo A, quando a pessoa tem deficiência do fator VIII — que atinge um a cada 10 mil nascidos; e o tipo B, que está relacionado com a falta do fator IX da coagulação e atinge um a cada 40 mil nascidos.

Os fatores são umas das proteínas do sangue, as chamadas cascatas da coagulação que são produzidas pelo fígado e circulam pelo corpo de forma inativa. Quando temos um trauma ou uma lesão no vaso, as proteínas são ativadas para formar o coágulo. Quem tem hemofilia tem o gene alterado, por isso não consegue formar o coágulo
Luany Mesquita, diretora de Hematologia do Hemoce (Centro de Hematologia e Hemoterapia do Ceará)

Um caso é grave quando a quantidade do fator produzido pelo paciente é menor que 1%; entre 1 e 5%, é considerado moderado, e entre 5% e 40%, é leve.

Tratamento

O mais comum é a reposição da proteína concentrada que o paciente não tem. Entretanto, em alguns casos ele pode desenvolver resistência, um anticorpo contra esse fator, e outras medicações serão indicadas.

Pacientes que começaram o tratamento depois de muitos anos podem ter dificuldade de locomoção porque cada sangramento ao longo da vida nas articulações cria uma espécie de cicatriz no local, que depois de um tempo deixa a articulação doente. Como os joelhos e cotovelos sofrem mais impacto, um simples subir de escada pode gerar essa cicatriz, explica Luany.

Quando não há tratamento, podem acontecer sangramentos com mais gravidade dependendo da quantidade de fator presente no plasma.

Os sangramentos mais comuns nos casos graves e moderados são a hemorragia dentro das articulações, com aparecimento de manchas roxas no corpo e hematomas.