Mulheres sofrem assédio ao buscarem tratamento para o alcoolismo
Embora existam cerca de 120 grupos de AA (Alcoólicos Anônimos) na cidade de São Paulo, apenas seis são direcionados exclusivamente a mulheres. Uma pesquisa etnográfica da USP mostra que o alcoolismo e o seu tratamento são fortemente influenciados por marcadores sociais de gênero.
O estudo revela que ao buscar apoio em grupos mistos do AA, as mulheres se sentem pouco à vontade para falar de sua vivência com o consumo de bebidas e dificuldades para expor questões íntimas em ambientes frequentados por homens; declararam também serem vítimas de assédio sexual, preconceito, discriminação e sexismo.
Esses relatos —"dor da alma", como disse uma delas— fazem parte da pesquisa feita com 30 mulheres com transtorno do uso do álcool e que buscaram apoio em uma reunião feminina de AA em um grupo da zona Norte de São Paulo.
Os resultados do estudo foram publicados em artigo na revista Alcoholism Treatment Quarterly Journal, com autoria de dois professores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP: o antropólogo Edemilson de Campos, coordenador da pesquisa, e a professora Nádia Zanon, especialista em saúde da mulher.
"A experiência do alcoolismo é diferente para homens e mulheres e a forma de comunicar essa experiência também é distinta. Por terem demandas específicas, reconhecemos que há a necessidade de ampliação de espaços exclusivamente femininos, lugares elas possam ser mais bem acolhidas para partilha de suas vivências", diz Campos ao Jornal da USP.
Os AAs são comunidades de caráter voluntário de pessoas que se reúnem periodicamente para tratar de questões relacionadas ao alcoolismo e para encontrar força e acolhimento uns nos outros.
O objetivo principal é ajudar os alcoolistas a alcançarem a sobriedade. Foi fundada em 1935, em Ohio, EUA, e hoje se encontra espalhada por todo o mundo.
No Brasil, o AA chegou em 1947 e possui 5.081 grupos mistos. Segundo o antropólogo, em um inventário feito recentemente pela organização, as mulheres representam apenas 13% dos participantes, o que, a seu ver, é um número que pode estar subnotificado em virtude do preconceito que elas sofrem por se encontrarem nessa condição.
No Brasil, o alcoolismo, um problema considerado de saúde pública, atinge cerca de 2,3 milhões de pessoas, entre 12 e 65 anos, segundo pesquisa realizada pela Fiocruz em 2017, sendo que, considerando a totalidade da população da pesquisa, a dependência de álcool nos últimos 12 meses foi 0,7% só do sexo feminino.
Maria, Andreia, Elsa… quem eram elas?
A coleta de dados foi realizada por meio de observação participante em reuniões de AA feminino paulistano e entrevistas com 30 mulheres que participaram das reuniões, de forma que elas tivessem liberdade para responder o que quisessem.
O perfil do grupo era variado: elas tinham idade entre 31 e 77 anos, sendo a maioria casadas (12) ou divorciadas (9).
Em relação à escolaridade, 12 mulheres relataram ter ensino médio; 13, ensino superior completo; uma, ensino superior incompleto; três, pós-graduação; e uma, doutorado.
A maioria trabalhava em serviço e/ou profissões de sua área de formação, e todas eram donas de casa. Algumas eram recém-chegadas ao grupo do AA, com um ou dois meses de abstinência de álcool, e outras com mais anos de grupo, com 31 e 38 anos de abstinência.
Analisando os dados, a professora Nádia Zanon lembra que algumas mulheres mostraram ter dificuldade em permanecer em programas mistos do AA devido à insegurança dos companheiros (marido ou namorado), uma vez que a presença majoritária de homens no grupo era vista como uma "ameaça" ao relacionamento.
''Ele me dizia que eu estava ficando muito chata e que preferia quando eu não participava das reuniões do AA porque fazia tudo que ele queria; contudo, sei que agora estou bem melhor". Maria, 48 anos, 2 anos de AA.
Segundo a pesquisadora, essa pressão sobre a mulher, quando ela ainda está nos estágios iniciais de recuperação, pode levá-la a optar por preservar seu relacionamento e deixar o AA. Em outros depoimentos, Andreia, Elsa e Cássia descrevem a importância de frequentar grupos exclusivamente femininos.
Antídoto à cultura patriarcal
Segundo Edemilson Campos, o alcoolismo é permeado por assimetrias de gênero e isso acaba resvalando para os grupos de recuperação, como os AAs.
Reuniões exclusivamente femininas seriam um antídoto à cultura patriarcal de meados do século passado, quando foi criado o AA, nos Estados Unidos, que ainda permanece na mentalidade de homens que integram os grupos mistos do AA.
Nádia Zanon diz que o alcoolismo na mulher vem carregado de culpa, de vergonha e sofrimento social.
Ela é vista como transgressora da moral, das regras e do papel social que é esperado dela, seja como mãe, mulher ou dona de casa. Cita como exemplo a fala de uma das depoentes, Helena, de 45 anos, casada e 16 anos de AA.
"Reiteradamente, ouvia de minha mãe que eu só pensava em beber e que uma bêbada como eu não tinha responsabilidade com a vida nem com os filhos." Helena lamenta também que, por conta da bebida, não conseguiu ir ao enterro de sua irmã gêmea. "Bebi tanto que não fui."
Segundo o estudo, o relato de Helena traduz o sofrimento social vivido pela mulher alcoolista.
A fala "você só pensa em beber" dita pela mãe censurando o comportamento da filha se encontra na categoria de acusação baseada nas relações sociais de gênero, delineando contornos da identidade de Helena como uma mulher irresponsável. "A fala de Helena expõe o sofrimento de mulheres que não atendem às expectativas sociais de gênero", diz a professora da EACH.
Solidão
Ainda segundo o estudo, entre outros dramas, as mulheres que sofrem de alcoolismo estão mais propensas ao isolamento. Em geral, a sociedade vê com olhos condescendentes os homens que bebem em bares, já a mulher não tem o mesmo julgamento.
O sentimento de vergonha por beber em público leva as mulheres a beberem sozinhas, muitas vezes na solidão de suas casas, acentuando assim a perda da autoestima e de amizades, como mostram relatos da Elisa e da Berenice.
Os pesquisadores reconhecem que os Alcoólicos Anônimos (AA) são uma importante forma de apoio e tratamento para mulheres com transtorno alcoólico, embora elas ainda enfrentem problemas compartilhando sua intimidade em reuniões mistas.
Os resultados da pesquisa mostram que é necessário ampliar espaços exclusivamente femininos de modo a atender com mais eficácia às demandas das mulheres, principalmente em questões em que o estigma de gênero é mais acentuado, como relacionamentos amorosos e sexuais, além das especificidades do uso indevido de álcool por mulheres.
A pesquisa contou com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O professor Edemilson de Campos é autor do livro Nosso Remédio É a Palavra: uma etnografia sobre o modelo terapêutico de Alcoólicos Anônimos.
*Os nomes descritos nos relatos desta matéria são fictícios, a fim de preservar a identidade das participantes da pesquisa.
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