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Cirurgia para endometriose: falta de experiência médica afeta resultados

O namorado de Hannah Ribeiro Parnes registrou sua recuperação após a cirurgia para tratar a endometriose  - Teogenes Moura/Arquivo pessoal
O namorado de Hannah Ribeiro Parnes registrou sua recuperação após a cirurgia para tratar a endometriose Imagem: Teogenes Moura/Arquivo pessoal

De VivaBem, em São Paulo

10/04/2023 04h00

Após sofrer vários episódios de cólicas menstruais intensas, muitas vezes incapacitantes, uma mulher com endometriose é encaminhada para a mesa de cirurgia sob a promessa de que o procedimento irá trazer alívio para as suas dores. Um mês depois, porém, o incômodo ainda persiste.

Especialistas ouvidos por VivaBem afirmam que isso é comum entre pacientes que passam por esse tipo de tratamento no país. A cirurgia é considerada segura e eficaz, mas, alertam os médicos, o despreparo da maioria dos profissionais de saúde para realizá-la compromete os resultados.

De acordo com o ginecologista e obstetra Alexandre Pupo, que atende nos hospitais Sírio-Libanês e Albert Einstein (SP), a maioria das mulheres com endometriose que buscam ajuda nos consultórios já passaram por pelo menos uma cirurgia, mas continuam sentindo dor. Pupo explica que este é um sinal de que o procedimento ao qual elas foram submetidas pode ter sido "incompleto".

É assim que os médicos definem as cirurgias que, ao contrário do que deveria ter acontecido, não removeram todos os focos de endometriose da paciente. Isso geralmente acontece devido à "falta de preparo ou inexperiência do cirurgião", diz o ginecologista, e é a principal causa do retorno dos sintomas após o procedimento.

"Há muitos casos de pacientes com endometriose que sofreram danos enormes pela falta de prática, para não dizer imperícia, de quem as operou da doença", afirma Pupo.

hannah - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Hannah Ribeiro Parnes sofre com cólicas intensas desde a primeira menstruação, aos 12 anos
Imagem: Arquivo pessoal

"Só estava sobrevivendo à dor da endometriose"

Foi o que aconteceu com a cientista política Hannah Ribeiro Parnes, 24. Ela recebeu o diagnóstico de endometriose profunda —a forma mais grave da doença— no ano de 2020.

A endometriose acontece quando o endométrio —tecido que reveste o útero (e todo mês descama, formando a menstruação)— cresce em outras partes do corpo, como ao redor dos órgãos reprodutivos, intestino e bexiga.

No Brasil, estima-se que a doença, que é benigna, mas causa muita dor e pode levar à infertilidade, afete 1 a cada 10 mulheres.

No caso de Hannah, além de dores na relação sexual, ela conta que sentia cólicas "insuportáveis", que a impediam até de ficar sentada.

Passei muitos dias da minha vida deitada, mas não estava descansando, não estava vendo um filme ou lendo um livro. Estava só sobrevivendo à dor causada pela endometriose. Hannah Ribeiro Parnes

Em 2020, a cientista política foi encaminhada para fazer uma cirurgia, já que o tratamento clínico não estava surtindo efeito. A maioria das pacientes não precisa de tratamento cirúrgico, mas, em algumas situações específicas, como quando os focos começam a obstruir órgãos ou a dor não diminui com a abordagem clínica, caso dela, pode ser necessário realizar a laparoscopia.

Trata-se de um procedimento "minimamente invasivo" que, através de pequenos cortes no abdome do paciente, tem o objetivo de "limpar" os focos da doença. Um dos resultados imediatos é o controle dos sintomas.

Mas Hannah diz que continuou sentindo dor após a cirurgia. "Então, o médico falou para eu fazer fisioterapia pélvica, eu fui, melhorei, mas continuei tendo muitas crises de dor", conta a estudante de mestrado da UnB (Universidade de Brasília). Ela diz que se surpreendeu com o que ouviu do ginecologista ao compartilhar a situação.

Quando contei que continuava tendo muitas crises de dor, ele disse que minha dor era psicológica, porque a cirurgia dele tinha sido 'perfeita'.

Logo após o procedimento, entretanto, Hannah conta que o próprio médico disse a ela que, embora a cirurgia tivesse sido "bem-sucedida", ele "não tinha conseguido tirar todos os focos da doença". "Ele disse que o foco era 'um pouco maior do que ele imaginava' e que, por isso, tinham sobrado alguns focos nos meus nervos".

A situação levou a pesquisadora a sair de Brasília, onde ela mora, e vir para a cidade de São Paulo, em busca de tratamento em um centro de referência de endometriose na capital paulista.

Relatos como o da brasiliense são encontrados em diferentes regiões do país.

"Posso dizer que 90% das pacientes que chegam na rede pública ou na rede privada já passaram por cirurgias incompletas. Infelizmente, é quase uma regra", diz Heron Cangussu, coordenador do Serviço de Endometriose do Hospital da Mulher - Maria Luzia Costa dos Santos (BA), centro de referência do SUS (Sistema Único de Saúde) para o tratamento da doença na região Nordeste.

Quando essas pacientes chegam aos consultórios, o desafio, segundo Alexandre Pupo, de São Paulo, é justamente tentar "corrigir" o quadro deixado pelas cirurgias de baixa qualidade.

A cirurgia de endometriose não é banal. Precisa ser feita por especialistas, pois é uma cirurgia que a gente chama de 'one shot only', ou seja, ou você faz a primeira cirurgia direito, removendo todos os focos sem danificar os órgãos, ou vai ser uma sucessão de cirurgias para corrigir a primeira. Alexandre Pupo, ginecologista e obstetra

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Imagem: iStock

Por que 'cirurgias incompletas' acontecem?

Segundo os especialistas consultados pela reportagem, a principal causa das cirurgias incompletas é a precariedade das investigações pré-operatórias. Muitas vezes, o profissional não escuta as queixas da paciente ou deixa de realizar exames importantes para entender onde estão localizados os nódulos da doença.

Como a endometriose está dentro do abdome e não dá para acessá-la de forma direta a não ser por laparoscopia, exames como o de toque, ultrassom com preparo intestinal e ressonância magnética, de preferência feitos por médicos com competência para avaliação de endometriose, são essenciais para saber os órgãos que possam estar acometidos pela doença e para que o médico não seja surpreendido na hora da cirurgia e acabe encontrando mais focos do que ele imaginava, deixando de retirá-los por não ter se planejado. Alexandre Pupo, ginecologista e obstetra

Outra situação que resulta em cirurgias de baixa qualidade é a ausência de equipes multidisciplinares. É o que aponta a ginecologista Luzia Salomão, responsável pelo Ambulatório de Endometriose do HU-UFJF (Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora), ligado à rede Ebserh.

Salomão explica que, dependendo dos órgãos acometidos pela endometriose, na sala de cirurgia pode ser necessária a presença de ginecologista, urologista, cirurgião do aparelho digestivo e outros especialistas.

Se o cirurgião começou a cirurgia e se deparou com um cenário extremamente complexo e não consegue retirar todos os focos sozinho, a cirurgia vai terminar e as pacientes vão continuar com os focos e com os sintomas da doença.

Esperança

No centro de atendimento especializado em endometriose, a primeira coisa que Hannah ouviu de um ginecologista lhe deu esperança. "Ele me disse 'Hannah, você só tem 24 anos, não pode viver com dor desse jeito, precisamos mudar isso'".

Ela não foi encaminhada para mais uma cirurgia de remoção de focos da doença. Como os nódulos que "restaram" são considerados superficiais —e não profundos, como eram os outros—, ela conta que a equipe médica responsável pelo seu caso achou melhor adotar procedimentos alternativos para a redução da dor.

Professor da Faculdade de Medicina da USP envolvido em diversos estudos sobre endometriose, Sérgio Podgaec explica que os médicos geralmente evitam fazer mais de uma laparoscopia para não criar mais "aderências pélvicas".

"Salvo algumas exceções, o ideal é que os focos da doença sejam removidos em uma única cirurgia, porque cada laparoscopia a mais pode trazer aderências pélvicas, ou seja, um órgão pode acabar ficando próximo ao outro, como o ovário colado no útero, ou as trompas coladas no ovário, como se estivessem grudados, e isso pode causar dor", explica Podgaec, que também é vice-presidente do Einstein e não atendeu Hannah.

A cientista política também segue um tratamento multidisciplinar, que é considerado fundamental para garantir qualidade de vida às pacientes com endometriose. O acompanhamento é feito não só com o ginecologista, mas também com nutricionista, fisioterapeuta, psicólogo e psiquiatra.

Barreiras de acesso

Hannah usa um implante hormonal para bloquear sua menstruação. Segundo Sérgio Podgaec, essa é uma recomendação médica para todas as pacientes que fizeram laparoscopia —exceto as que querem engravidar—, pois estudos mostram que parar de menstruar diminui muito o risco de a endometriose voltar.

Alguns dos bloqueadores hormonais estão disponíveis pelo SUS, mas esse não é o caso da opção que a pesquisadora utiliza. "Demorei dois anos para conseguir colocar esse implante, porque ele custa R$ 5.000 e dura só 1 ano", diz ela.

No total, Hannah afirma que já gastou pelo menos R$ 60 mil com o tratamento da doença —incluindo a cirurgia de laparoscopia e os outros dois procedimentos para controle da dor. "Tive apoio do meu marido e da minha família para pagar pelo tratamento, mas e uma mulher que depende exclusivamente do SUS? O tratamento da endometriose é extremamente caro", afirma a cientista.

De volta a Brasília, Hannah diz que está melhor do que antes, principalmente em razão do tratamento com diferentes profissionais, mas ainda lida com as consequências da cirurgia incompleta. "Continuo batalhando junto com meus médicos todos os dias da minha vida para conseguir ter uma vida normal", diz ela.

JULIANA - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Juliana Turini, 37, ficou seis anos na fila do SUS à espera de uma cirurgia para tratar a endometriose
Imagem: Arquivo pessoal

Sete anos para fazer a cirurgia

A bióloga Juliana Turini, 37, procurou o sistema público de saúde para realizar uma laparoscopia em 2009. Naquele ano, ela foi diagnosticada com um grau avançado da doença —os focos já tinham alcançado seu intestino.

O dia da cirurgia, contudo, só chegou sete anos mais tarde, em 2016. Atualmente, o tempo de espera no SUS para fazer uma laparoscopia é de, no mínimo, um ano e meio.

"Fui ver o preço da cirurgia na rede privada em 2010 e, no meu caso, era em torno de R$ 56 mil", conta Juliana que na época havia acabado de terminar a graduação. "Era impossível".

A bióloga conta que na época não encontrou nenhum hospital público que realizasse a cirurgia em São Carlos (SP), onde ela mora. Ela foi atrás de um hospital público na capital paulista, refez todos os exames na cidade e foi colocada na lista de espera.

Até que chegasse sua vez, Juliana precisou viajar para a capital a cada seis meses para consultas de acompanhamento e para manter ativa sua posição na fila.

Durante esse período, a pílula anticoncepcional prescrita pelo ginecologista aliviava as dores, mas não era o suficiente. "Às vezes, as crises eram tão fortes que eu precisava sair de reuniões de trabalho ou deixava de ir em uma viagem, por exemplo", conta ela.

Depois da cirurgia, que removeu focos de endometriose, parte de seu intestino e um endometrioma de tamanho grande, "as dores sumiram como num passe de mágica".

Se os incômodos desapareceram, uma coisa, contudo, ela diz que permaneceu —sua dificuldade para engravidar.

Sabe-se que, na maioria dos casos, a fertilidade pode ser restabelecida com o tratamento adequado da doença. Juliana acredita, no entanto, que o tempo que passou na fila da cirurgia pode ter prejudicado sua capacidade reprodutiva.

Na cirurgia, como a doença já estava avançada e ainda tirei um endometrioma, os médicos disseram que eu perdi muito tecido ovariano. Hoje, tenho muita dificuldade para engravidar. Para mim, essa é a principal perda que a doença me causou. Juliana Turini

Nos últimos anos, ela sentiu que as cólicas excessivas no período menstrual foram, aos poucos, voltando a dar as caras. Numa consulta em 2019, veio a notícia que temia: alguns focos de endometriose voltaram e um novo endometrioma surgiu em seu ovário.

A ginecologista Luzia Salomão explica que, mesmo que uma cirurgia de remoção da endometriose tenha sido completa, a doença é crônica e precisa ser acompanhada durante toda a vida. Os sintomas tendem a desaparecer na menopausa, quando a produção de hormônios é interrompida.

Como tem o desejo de engravidar, Juliana conta que, junto aos médicos, decidiu que este não é o momento ideal para uma nova cirurgia de endometriose. Ela acompanha a evolução da doença em consultas de rotina e afirma que ainda não conseguiu ter acesso ao tratamento multidisciplinar pelo SUS.