Após acidente, empresário cria app de namoro para pessoas com deficiência
Em 2007, aos 22 anos, durante uma viagem aos Estados Unidos, o empresário Ricardo Alonso Jorge sofreu um acidente de wakeboard que provocou uma lesão cerebral, deixando-o impossibilitado de andar e falar.
Nos três anos seguintes, sua vida se resumiu a ficar na cama e na cadeira de rodas, fazendo diversos tratamentos, incluindo fisioterapia e fonoaudiologia, para reverter o quadro. Mesmo assim, ele estava decidido a não interromper seus sonhos. Em 2012, ele se casou com sua namorada desde antes do acidente e teve uma filha dois anos depois. Em 2016, entretanto, o casamento acabou, e o empresário teve que encarar o desafio de voltar a se relacionar. Sua experiência em aplicativos de relacionamento foi frustrante.
Se eu deixava no perfil que sou deficiente físico, ninguém me dava like. Quando eu retirava essa informação e conversava com algumas pessoas, elas percebiam que eu tinha disartria na fala (perda da capacidade de articular as palavras) e logo mostravam desinteresse. Ricardo Alonso Jorge
Assim, Ricardo decidiu criar o Devotee, um aplicativo gratuito de relacionamento voltado para pessoas com deficiência —apesar de também ser aberto para quem não tem algum tipo de deficiência. Ele funciona como outros apps do tipo: você pode curtir quem o interessar e, se der match, pode conversar e mandar mídia. A diferença é que as pessoas podem filtrar as buscas por tipos de deficiência e ver se ela usa algum tipo de auxílio físico, como cadeira de rodas ou muleta.
Estruturei a plataforma de um jeito que o usuário pode colocar sua CID (Classificação Internacional de Doenças) para as pessoas se encontrarem mais rápido pelo filtro. Também é possível visualizar quem faz uso de cadeiras de rodas, muleta, cão guia... Ricardo Alonso Jorge
Hoje, o aplicativo conta com 14.568 pessoas cadastradas. Felipe de Lima Naliato, 25, está em seu segundo relacionamento com alguém que conheceu através da plataforma. Ele, que tem distrofia muscular congênita (doença genética que promove a degeneração progressiva da musculatura), acredita que o fato de o app ter pessoas com situação de vida semelhante facilita muito a conversa.
"Como temos muita coisa em comum, desde o uso de medicamentos até frustrações parecidas, o papo acaba fluindo", diz.
Dificuldades na hora de se relacionar
Daniele Nazari, psicóloga da plataforma Zenklub - startup de saúde mental, explica que há dois tipos de dificuldades que pessoas com deficiência podem enfrentar ao se relacionarem.
O primeiro é o preconceito que ainda existe. "A pessoa que não tem deficiência e se relaciona com alguém que tem é vista como a 'cuidadora', como se não fosse possível ter um envolvimento amoroso", diz. O segundo é o quanto essa questão preconceituosa pode influenciar na autoimagem de quem tem deficiência, provocando dores emocionais, baixa autoestima, pessimismo e fazendo a pessoa acreditar que não será capaz de ter um relacionamento.
Para Cleciane Cruz, psicóloga e coordenadora do GT Psicologia e Defesa dos direitos das Pessoas com Deficiência, do Conselho Regional de Psicologia da Bahia, aprendemos quem devemos escolher amar/desejar e, dentro de uma estrutura social que privilegia corpos brancos, cisgênero e magros, as pessoas com deficiência ocupam o lugar do descarte e preterimento. Seus corpos e existências são tidos como incapazes de corresponder e performar os padrões que sustentam o modelo normativo dos afetos e sexualidade vigente.
Na dinâmica das relações, não somos percebidos como corpos atraentes, desejáveis, possíveis de amar e ser amados. Cleciane Cruz, psicóloga
Segundo Cruz, a lógica de funcionalidade, atrelada aos padrões de masculinidade e feminilidade, produz diferentes estereótipos para homens e mulheres com deficiência. "Os homens com deficiência são percebidos como incapazes de performar o homem forte, viril e provedor. Por outro lado, as mulheres com deficiência são lidas socialmente como não correspondentes aos padrões estéticos e incapazes de exercer os papéis de cuidado e reprodutividade que são designados compulsoriamente ao gênero feminino", explica.
Cuidados para não reforçar fetichismo
O nome do aplicativo Devotee vem de uma gíria usada para designar pessoas que sentem atração por quem tem alguma deficiência física. Ainda que apps do tipo possam se apresentar como algo positivo, segundo a psicóloga Cleciane Cruz, é preciso cuidado justamente para não reforçar a segregação, fetichização e manutenção dos estereótipos.
"O próprio nome do aplicativo levanta uma grande problemática. Afinal de contas, o devoteísmo não se refere meramente à atração por pessoas com deficiência, mas a objetificação pautada na representação desse corpo dentro de uma sociedade capacitista: frágil, incapaz, desviante exótico", diz.
De acordo com a especialista, no curto prazo, não há uma resposta que seja suficiente para romper com os entraves que pessoas com deficiência enfrentam no estabelecimento de relacionamentos. "Afeto, desejo, atração e amor são políticos, mudar o modelo relacional vigente é algo que leva tempo", diz.
Questionar a forma como estabelecemos os nossos relacionamentos, acolher as contradições e se dispor fazer movimentações, individuais e coletivas, que possibilitem romper com as hierarquias afetivas e construir relações em que toda diversidade de corpos possam pertencer, amar e ser amados, é o início do caminho. Cleciane Cruz, psicóloga
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