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Barbeiro faz sucesso cortando cabelo de crianças autistas: 'Meu propósito'

Mallas cortando cabelo de Artur - Arquivo pessoal
Mallas cortando cabelo de Artur Imagem: Arquivo pessoal

Bárbara Therrie

Colaboração para o VivaBem

12/05/2023 04h00

Pela barbearia dele já passaram alguns ex-jogadores de futebol, mas Carlos Henrique Camilo, 29, o Mallas, ficou conhecido mesmo pelo atendimento humanizado que oferece a crianças com autismo.

Com 19,4 milhões de visualizações, um vídeo no Instagram em que aparece cortando o cabelo do pequeno Theo e recebendo um abraço dele no final poderia resumir as técnicas que utiliza no processo. "A humanização começa em identificar as necessidades da criança, em respeitar os limites e espaço dela, em não ter pressa e não querer impor o que acho", diz.

O que para a maioria é algo comum e rotineiro, para crianças autistas e suas famílias, cortar o cabelo pode ser motivo de grande estresse, pois envolve diversas questões sensoriais que podem desorganizar a criança, a ponto de ser aversivo e doloroso para ela, explica a terapeuta ocupacional Ellen Mendes, que atua na área de desenvolvimento infantil, síndromes, distúrbios comportamentais e transtorno do espectro autista na clínica Emedi, em Belém, no Pará.

As primeiras vezes que cortou o cabelo de crianças com TEA (transtorno do espectro autista), Mallas não sabia que elas eram autistas e muito menos o que era autismo, mas o "feito" do barbeiro gerou uma repercussão positiva entre os pais que passaram a divulgar seu trabalho e a procura pelo serviço aumentou.

Para atender a demanda, Mallas pesquisou sobre autismo na internet e passou a estudar os atendimentos que fazia para ver o que funcionava e o que não funcionava, levando em consideração as peculiaridades de cada criança. A partir daí foi criando estratégias e fazendo testes.

Não existe fórmula mágica, mas de acordo com a neuropsicóloga e psicopedagoga Luciana Garcia de Lima, o profissional deve estar preparado, saber o que a criança gosta, o que não gosta, se é verbal, se usa algum tipo de comunicação alternativa, se possui alguma alteração sensorial, se é a primeira vez que corta o cabelo ou se já teve experiências anteriores e como foram.

Além disso, acrescenta a terapeuta ocupacional Mendes, o cabeleireiro precisa ser paciente, estar disponível e se envolver de forma lúdica com a criança, para que ela ganhe sua confiança e o veja como um amigo e não como uma ameaça.

Foi o que aconteceu com Artur, de 3 anos, que teve uma crise de choro ao chegar na porta da barbearia de Mallas devido a experiências ruins que teve em outros estabelecimentos.

"Saí do salão por alguns minutos e os deixei lá para ele se acalmar e se familiarizar com o ambiente. Depois enfileirei os carrinhos por cor que nem ele estava fazendo, ele até se aproximou, mas voltou a chorar quando mexi no cabelo dele. Demorei duas horas nesse atendimento, mas preferi não cortar o cabelo e pedi para os pais para retornarem posteriormente, porque tinha observado algumas coisas importantes. Na semana seguinte, eles voltaram e atingi o objetivo. A paciência é minha grande aliada", revela.

Estratégias que fazem diferença

Entre tentativas, erros e acertos, Mallas desenvolveu algumas estratégias. Uma delas é ligar o ventilador para diminuir o barulho da maquininha e/ou esconder a maquininha atrás de um urso de pelúcia. Outra é umedecer a mão com água ou dar o borrifador para a criança, para que ela mesma borrife água no próprio cabelo ou fique menos reativa quando ele ou os pais borrifam, pelo fato de todos estarem "brincando".

Mallas e Artur - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mallas levou duas horas no atendimento de Artur
Imagem: Arquivo pessoal

Para driblar o trauma que muitos têm da cadeira, Mallas liga a TV no desenho ou vídeo que as crianças gostam. Outra estratégia é sentar e girar a cadeira por alguns segundos, mostrando que nada de ruim acontece quando ele faz isso. Algumas até se arriscam e fazem o mesmo, mas, no geral, o barbeiro corta o cabelo das crianças no sofá, no chão, no carrinho ou correndo atrás delas enquanto brincam. "Fica cabelo espalhado pelo salão todo, o corpo cansa, mas a sensação é boa", diz.

Em busca de se adequar às necessidades de seus clientes mirins, Mallas tem uma única regra a qual não abre mão: ele não corta o cabelo de crianças segurando-as à força nem permite que os pais façam isso. "Às vezes, alguns pais ficam impacientes e propõem isso, mas não trabalho desta forma. Com pressão e sem paciência nada dá certo. A gente não pode traumatizar a criança, mas fazer com que ela perca o medo de cortar o cabelo e que aquele momento seja agradável para ela."

Na avaliação da neuropsicóloga Lima, segurar uma criança à força nunca é uma opção. "É preciso esperar ela se acalmar porque pode estar em sofrimento e desespero. Ela precisa se sentir segura e criar vínculo. Nesses momentos, sugiro que o profissional sente-se com ela, brinque, converse e vá introduzindo aos poucos as ferramentas de cortar o cabelo", diz.

Mallas  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O salão fica na região metropolitana de Curitiba
Imagem: Arquivo pessoal

Corte não é cobrado

Barbeiro há sete anos, Mallas trabalha sozinho em seu salão localizado em Quatro Barras, na região metropolitana de Curitiba. Desde o dia 1º de janeiro deste ano, ele não cobra mais pelo corte de cabelo de autistas e fecha sua agenda todas as terças para atender este púbico especificamente, embora os atenda nos outros dias da semana juntamente com os outros clientes. "Esse é o meu propósito, o pouco que tenho a oferecer, ou seja, o meu dom de cortar cabelo, pode ajudar outras pessoas e fazer diferença na vida delas."

Com 20 a 30 atendimentos semanais de crianças com autismo, Mallas coleciona e se emociona com as mais diversas histórias, como da família que percorreu mais de 400 km e encarou 6 horas de viagem entre São Paulo a Curitiba só para levar o filho para cortar o cabelo com ele, após diversas tentativas frustradas.

O barbeiro também se lembra dos pais que tentavam cortar o cabelo do filho de 6 anos enquanto a criança dormia ou durante o banho, porque ela tinha muitas crises e nenhum cabeleireiro conseguia se aproximar. Ou ainda da avó que chorou de felicidade ao ver que naquele dia seu neto não seria a única criança a ir à festa desarrumado, mas iria com o cabelo bonito.

Me solidarizo com o sofrimento das famílias. Minha recompensa é o sorriso e a alegria delas no final de cada atendimento. A inclusão é uma palavra bonita, mas pouco praticada. Espero que com o meu trabalho possa inspirar outros colegas para que tenhamos mais profissionais habilitados a cortar o cabelo de crianças autistas. Carlos Henrique Camilo, o Mallas

Mallas não cobra mais pelo corte de cabelo de crianças autistas - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mallas não cobra mais pelo corte de cabelo de crianças autistas
Imagem: Arquivo pessoal

A seguir, duas especialistas consultadas por VivaBem dão dicas para que o corte de cabelo seja uma experiência positiva para crianças com autismo:

Pais podem fazer uma visita ao salão sem a criança para conversar com o cabeleireiro sobre as dificuldades, sensibilidades e preferências dela em relação a brinquedos, temas, músicas, personagens.

Não leve a criança em dias e horários de grande fluxo de pessoas no salão.

Prepare a criança em casa com antecedência, não deixe para avisá-la sobre a ida ao cabeleireiro no dia. Coloque o compromisso no calendário. Previsibilidade é essencial.

Para fazer a dessensibilização, utilize ferramentas como bonecos com cabelos feitos de linha, papel ou massinha para a criança poder cortar. Isso ajuda a criar vínculo e dar segurança.

Leia historinhas criadas para preparar o pequeno para uma situação específica; neste caso, a ida ao salão.

Pais podem usar figuras de comunicação, apps e pranchas de comunicação alternativa sobre o que a criança pode encontrar no cabeleireiro.

Não deixe para cortar o cabelo da criança quando estiver muito grande, pois o tempo que o cabeleireiro levará no procedimento será maior e talvez seu filho não tolere;

Preferencialmente, leve a criança de banho tomado, talvez ela não aceite se sentar em lavatórios.

Cabeleireiro deve ser flexível em relação às regras. Pode ser que a criança não consiga se sentar na cadeira e o corte tenha que ser feito no colo dos pais, ou com ela em pé ou no chão brincando.

Nunca segure a criança à força para cortar o cabelo.

É importante atender às necessidades individuais da criança em relação às questões sensoriais e de comunicação.

Profissionais podem usar capas de super-heróis, os pequenos adoram.

Se possível, o salão deve ter um espaço mais reservado para atender crianças autistas e recursos como almofadões, cadeiras de balanço e brinquedos da preferência do cliente.

Reforce a coragem da criança ao deixar cortar o cabelo: a presenteie com brinquedos simples, medalhas, adesivos, figurinhas, certificado de campeão.